Cintilando e causando frisson

Eu apalpo as opiniões, o afinamento nervoso dos homens, nas pequenas coisas, nas emoções dos sentidos

É imenso orgulho abrir as atividades do Museu Bajubá homenageando João do Rio – o mulato gordo e afeminado que sambou na cara das despeitadas. Ele que denunciou a violência policial contra o povo, a exploração sexual de crianças e mulheres, as péssimas condições laborais, defendeu os direitos trabalhistas e os direitos civis às mulheres. João do Rio também registrou tipos, práticas e lugares de resistência na cidade. Ele nos inspira em nossa proposta de musealização dos territórios conquistados à hipócrita moral heterossexual.

Nosso homenageado nasceu em 5 de agosto de 1881, em um sobrado da rua do Hospício (hoje Buenos Aires), de n. 284, próximo ao Campo de Santana. Era o segundo filho de Florência dos Santos, mulata livre, e de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática e mecânica. Casaram-se em abril de 1877, ele com 23 anos e ela, 15 – sua aluna em uma escola para meninas pobres. Como sua obra e atitudes, também seu nome é controverso, tendo sido citado em documentos familiares tanto como JOÃO PAULO DOS SANTOS COELHO BARRETO quanto JOÃO PAULO ALBERTO COELHO BARRETO – o pseudônimo João do Rio surgirá em janeiro de 1904.

Morou muito tempo com os pais na rua Senador Dantas, 234, levantando mexericos sobre a ausência de namoradas. Após a morte do pai, morou na avenida Mem de Sá n. 91, aberta em 1917. Esse número ficava na esquina com a avenida Gomes Freire, perto da praça dos Governadores [depois praça João Pessoa]. Perto do final da vida, com a Gripe Espanhola, foi morar no distante areal de Ipanema.

Rua Evaristo da Veiga.

João do Rio profissionalizou a atividade jornalística, inovou na crônica, trazendo para ela a reportagem e o olhar etnográfico. De família abolicionista, pai republicano e positivista, sua obra exibe abundantemente profundo senso de justiça e irresignação diante da exploração e do aviltamento.

De família remediada, mulato, obeso e afeminado, João do Rio chegou causando!

Nós, os moços que se batem pela reação naturalista queremos o Socialismo, mesmo pelos mais violentos métodos como uma erupção primária da Anarquia, à bomba.

Entre o conselho de Oscar Wilde, para quem não se devia “estrear com um escândalo”, mas deixá-lo para a idade madura, “quando então dará um certo colorido à velhice ou imortalidade à memória”,
e o de José do Patrocínio, para quem o jornalista de talento era o que, nos seis meses da estreia já provocava a fúria dos leitores, Paulo Barreto optou pelo segundo.
– E pagou muito caro por isso.

Como crítico de arte (sob o pseudônimo de Claude, um dos 12 ou 13 que maneja, segundo Rodrigues), inicia aos 17 anos com um estilo cáustico e implacável.

Como contista, estreia com o escandaloso “Impotência”, em 1899, abordando os desejos homófilos não realizados do idoso personagem.

Jovem, vaidoso e sempre em busca de aprovação e reconhecimento, parece que o sucesso o fez ousar certas liberdades:
“amigos e populares o esperavam na porta do jornal [Gazeta de Notícias], para bajulá-lo, ou simplesmente admirar seu modo particular de falar”, seus maneirismos e gestos esvoaçantes, no dizer do seu amigo e admirador Gilberto Amado.

Atingiu o esplendor na primeira década do vertiginoso século:
O reconhecimento pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1907,
A eleição para a Academia Brasileira de Letras em 1910, com apenas 29 anos.

João do Rio foi o primeiro a usar o Fardão na ABL, aos 29 anos.

Ao conquistar reconhecimento e popularidade, João do Rio passou a ser alvo das mais cruéis campanhas de desqualificação pessoal, vindas de seus colegas da imprensa.
Sua obesidade, etnia e biótipo, seu jeito afeminado, os temas que abordava, tudo em si era motivo para ataques os mais grotescos e vis, sem qualquer limite ético.

Revista Careta, 21/05/1910, ridicularizando o escritor e a sua eleição para a ABL.

O homossexual João do Rio era hostilizado por muitos literatos e jornalistas que, encardumados nas redações famélicas, babavam de inveja diante de seu sucesso literário e mundano. (Ivo, 2012, p.17)

O amor dos pais e o apoio incondicional que sempre recebeu de sua mãe possivelmente lhe proporcionaram a base necessária, tanto para ousar quanto para enfrentar as resistências.

Florência dos Santos

Com o seu temperamento etnográfico (O’Donnell) e sua consciência da importância histórica de que o período de grandes e velozes transformações se revestia, João do Rio descreve os processos de mudança nos hábitos e mentalidades e os tipos sociais, tanto na alta sociedade quanto nos estratos mais baixos e segregados da população.

Na crônica “O Velho mercado”, João do Rio registrou o encerramento das atividades no Mercado da Candelária, situado na praça XV, próximo à praia do Peixe, em 29/02/1908.
No Mercado Municipal, situado no antigo bairro da Misericórdia, próximo ao Largo do Moura, em área resultante do aterramento da praia de D. Manuel, os vendedores ambulantes agora são majoritariamente brancos, imigrantes muitos deles e vários, sem sequer poder comprar calçados, como os escravizados.

Mas as marcas de origem que portava devem ter contribuído para a sua ânsia por ser aceito e por distinção, como por certa ambivalência e mesmo contradição: tanto retrata populares com sensibilidade, como reproduzindo os mais terríveis preconceitos da época. Ele próprio de ascendência e traços negros e sofrendo desqualificação em razão disso, como os demais no seu tempo não se reconhecia enquanto tal. Ora se afirma como civilizado, ora se diz filho semibárbaro da América; se critica o esnobismo, também abusa dos estrangeirismos:

“Éramos talvez uns dez traquinas com ideias de elegância, estudando a maneira fashion de andar, o tom up to date de cumprimentar, com o interesse com que nos atirávamos às capas amarelas das brochuras francesas. A nossa opinião sobre o Brasil fizera-se definitiva: tínhamos decretado que não existia (…) Nós éramos estrangeiros.”

No entanto, ainda em 1910, antes da divulgação pela imprensa das rotinas de espancamentos, estupros e toda a sorte de violência psicológica e física que marca a dominação masculina, ele a reconhece e denuncia:

“A totalidade dos cérebros masculinos não pensa no outro sexo sem um desejo de humilhação sexual.”

Defende a emancipação da mulher, os direitos trabalhistas, o direito de greve e tem páginas tocantes sobre a luta do trabalhador por melhores condições de vida, como a crônica “Os humildes”, de 23/05/1909, sobre “a greve do gás” e as condições de trabalho dos operários nos fornos do gás na cidade, as mortes abundantes e anônimas dos trabalhadores, muitos deles ainda crianças:

“Mais ou menos todo dia morre um (nas Obras do Porto)”

Muitos trabalhadores morreram na obra do Porto, registro na crônica “Os humildes”, de 23/05/1909, na coluna Cinematógrapho, da Gazeta de Notícias, p. 1.
“Morrem nas pedreiras, morrem na estiva, morrem no minério, morrem sob as carroças, um hoje, amanhã outro.”
Trabalhadores na descarga de carvão, para abastecer a ferrovia e a cidade. As condições de trabalho dos operários “do gás” (extraído do coque) em greve foi tema central da crônica “Os humildes”, mencionada anteriormente.

Em 1921, alijado das grandes honras e glórias vividas, relegado ao ostracismo, restringe sua presença aos círculos sociais mais populares, fazendo o caminho inverso de sua mãe e avó materna:

“O meu Carnaval no Rio de Janeiro foi transferido para a praça XI e adjacências, com o pessoal dos cordões, perfeitamente camaradas. Passo noites inteiras vendo samba e enervando-me com o modo indecorosamente violento pelo qual trata a polícia aos pobres que se divertem.”

Trecho da Pequena África, vendo-se a Praça XII, um de seus fortes pontos de sociabilidade negra, destruída para a construção da Av. Pres. Vargas

Em 23 de junho, com problemas de saúde devido à obesidade, trabalhando intensamente e sob forte pressão, política e financeira, falece num ataque cardíaco, dentro do táxi que lhe conduzia à casa, findo o expediente no seu jornal, A Pátria. A narrativa é de João Carlos Rodrigues:

“A notícia espalhou-se pela noite carioca como uma epidemia. (…) Mesmo os adversários não sabiam como agir. (…) Pela manhã, (…) começou a romaria de pêsames. Durante toda a sexta-feira e o sábado desfilaram milhares de pessoas (…).”

“Durante toda a sexta-feira e o sábado desfilaram milhares de pessoas (…). Dois ex-presidentes da República, um ex-prefeito, ex-ministros de estado, deputados e ex-deputados, jornalistas, literatos, autores teatrais, atores, cocotes, sindicalistas, rapazinhos do comércio, capoeiras retintos e espadaúdos espremidos entre pálidos diplomatas e senhoras vestidas com luxo (…). Telegramas e coroas de flores não paravam de chegar (…) Também do Senado Federal e dos governos de Portugal e da Itália. Os teatros suspenderam as sessões e boa parte do comércio fez o mesmo (…)”

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