17 de agosto: Dia Nacional do Patrimônio Cultural - E a população LGBTI+ com isso?









Hoje, no Brasil, comemoramos o Dia Nacional do Patrimônio Cultural. A instituição dessa data ocorreu em 1998, quando se deu o centenário de nascimento de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rodrigo, advogado e jornalista, foi um dos que atuou de maneira determinante para a criação e consolidação do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – em 1936, experimentalmente e, em 1937, já oficialmente. Ele foi o seu primeiro presidente e dedicou 30 anos em sua defesa (Veja mais em IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Com a Constituição de 1988 tivemos a ampliação da noção de patrimônio, passando a contemplar também os bens imateriais e as variadas formas de expressão dos diversos segmentos sociais. Nela temos também o reconhecimento do acesso a esses bens como direito fundamental, com o que, como advoga Marilena Chauí, institui-se entre nós a noção de cidadania cultural (Chauí, 2006; Fernandes, s/d).
Os instrumentos constitucionais encontram-se nos artigos:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
Art.215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art.216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
(…)
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei (Constituição da República, 1988).
No entanto, embora tenhamos inscrito na Constituição o direito à memória e à história, como parte integrante dos direitos fundamentais, instituindo a cidadania cultural e todas as valiosas proposições do Congresso Patrimônio Histórico e Cidadania: O Direito à Memória, promovido pelo Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, sob a direção da historiadora Déa Ribeiro Fenelon, somente em 02 de dezembro de 2010, pela lei n. 12.343, foi instituído o primeiro Plano Nacional de Cultura (PNC), de vigência decenal. Entre os seus objetivos estava o reconhecimento da diversidade cultural, étnica e regional; a proteção e a promoção do patrimônio histórico e artístico, material e imaterial, bem como a promoção do direito à memória, através dos museus, arquivos e coleções e o acesso universal à arte e à cultura (art. 2º, I, II, IV e V).
O povo bajubá
No que toca ao povo bajubá[1] (LGBTI+), o vigor dos ativismos contemporâneos tem trazido ganhos significativos em termos da promoção de sua cultura como instrumento de ressignificação identitária[2] e reparação sócio-histórica, no percurso da luta mundial por uma vida livre da discriminação que vem de mais de um século[3].
Invisibilização
Afora esse boom da memória e história LGBTI+, temos muitos e sérios problemas. Seja na persistência de sua invisibilização, nos museus como nos demais lugares públicos de memória; seja na precariedade da preservação, conservação e acessibilidade de suas fontes, notadamente as processuais e digitais. Seja, ainda, no que respeita aos acervos recebidos por herança, tratados pelos sucessores ou como meros bens econômicos, ou como patrimônio exclusivamente privado, descuidados a relevância cultural para a comunidade e o dever de preservação – aspectos que também tenho procurado discutir e que não afetam somente o povo bajubá.
Outra questão que tenho buscado dar destaque diz respeito à não implementação ou implementação de baixa eficácia de canais de comunicação entre as instituições, sejam arquivísticas, sejam museológicas, como constou das Resoluções do Congresso de 1991 e determina o Estatuto de Museus (Lei n. 11.902/2009, regulamentada pelo Decreto n. 8.124/2013). Isso tem levado, por exemplo, a descartes realizados por instituições arquivísticas públicas, à revelia seja do doador, seja de instituições congêneres que poderiam receber as peças. Há casos em que parte do material, doado precisamente na esperança de sua preservação, foi vendido em sebos ou destruído, simplesmente porque não era atinente ao foco temático da instituição que o recebera, sem que se tivesse o cuidado prévio de consultar alguma outra instituição que pudesse recebê-lo.
Patrimônios em risco
Afora isso, há ainda a questão da preservação dos acervos – os nossos patrimônios em risco.
Dentre esses, citamos: o prédio que abrigou o Cabaré Casanova, o mais antigo e representative patrimônio material LGBTI+ nacional formalmente protegido pela Lei do Corredor Cultural – Lapa, mas em total abandono pelo poder municipal que inclusive é o seu proprietário. Veja a respeito a luta do Movimento Restitua o Nosso Patrimônio LGBTI+
As fantasias do museólogo e carnavalesco Clóvis Bornay
Em 2016, quando da exposição pelo centenário tornou-se público que, das vinte e uma luxuosas fantasias transferidas pelas suas filhas à Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e que compõem o acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro, apenas três foram higienizadas e restauradas – “as que estavam em melhor estado de conservação”. Dessas (“Arlequim”, “Dalai Lama” e Plenitude da Harmonia Universal”) foi dito que estavam mofadas, cheias de fungos e descozidas (Pennafort, 2016). Se essas eram as que estavam em melhores condições, pode-se imaginar o estado das demais, sobretudo passados todos esses anos. Ao que se tem notícia, nenhuma ação realizou até o presente o Museu da Cidade com vistas a restaurar as demais. Nem por si ou através de parceria com outras instituições, museais ou não, públicas ou privadas, deixando assim de cumprir com pelo menos duas de suas funções primordiais, que são a conservação e preservação de seu acervo e o intercâmbio institucional, conforme o artigo segundo da Lei n. 11.904/2009.
Em 2022 o Museu Bajubá, fez questionamentos junto à Prefeitura do Rio de Janeiro para que fossem restauradas, em vão.
Também o acervo de Darcy Penteado custodiado na cidade de São Roque, SP, encontra-se em situação de risco, acondicionado de maneira irregular, sem a garantia das condições técnicas apropriadas, sem restauração.
Outro aspecto que venho procurando sensibilizar, desde a pesquisa em história oral realizada no mestrado, em 2006 (e que também não se relaciona apenas com a cultura LGBT), é a necessidade da preservação e acessibilidade das fontes orais e audiovisuais constituídas em contexto de pesquisas acadêmicas, geralmente com recursos públicos. Por absoluta ausência de mecanismos institucionais para sua destinação e conservação que possibilitem sua consulta posterior por outros pesquisadores, elas terminam perdidas.
Sâo questões que estão a demandar nossa atenção e ações.
Sobre o patrimônio LGBTI+ em risco, pesquise no Mapa Interativo do Patrimônio LGBTI+, aqui na página do Museu Bajubá e, também, no blog Memórias e Histórias das Homossexualidades, para maiores informações.
Veja mais em:
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/173
https://memoriamhb.blogspot.com/2022/02/pela-salvaguarda-e-restituicao-do.html
https://memoriamhb.blogspot.com/2022/02/cabare-casanova-quando-o-inimigo-e-da.html
https://memoriamhb.blogspot.com/2022/04/cabare-casanova-ultimas-noticias-sobre.html
https://memoriamhb.blogspot.com/2022/08/cabare-casanova-dia-nacional-do.html
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Este texto traz trechos do artigo Cidadania Cultural LGBT: um direito sem efetividade, publicado originalmente na revista Museologia & Interdisciplinaridade, vol. 10, n. 20, jul./dez. 2021, pp. 82-101. Disponível em: Cidadania Cultural LGBT: um direito sem efetividade. | Museologia & Interdisciplinaridade (unb.br)
[1]Estendo o nome do socioleto ao próprio segmento, numa perspectiva política de valorização da cultura da comunidade e também para fugir à instabilidade da sigla. É, ainda, uma homenagem ao Acervo Bajubá, talvez o maior repositório privado de documentos da cultura e história LGBT.
[2]Programa Brasil sem Homofobia, de 2004; I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, convocada em novembro de 2007 e realizada em junho de 2008, sob o lema “Direitos Humanos e Políticas Públicas: o caminho para garantir a cidadania de” GLBTs, cujas propostas consolidariam o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais”, que exigiria “a articulação e a integração de esforços dos três poderes da República”. Cf.: https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/old/cncd-lgbt/conferencias/texto-base-1a-conferencia-nacional-lgbt-1.
[3]Tomo como momento inaugural o registro mais remoto conhecido no momento, que é a atuação de Karl Henrich Ulrichs, a partir de 1862.
