Por Luiz Morando*
De acordo com o verbete da Wikipédia [1], o Dia Internacional da Memória Transgênero é celebrado todo dia 20 de novembro. A data foi instituída em 1999 pela ativista transfeminina Gwendolyn Ann Smith em referência ao assassinato de Rita Hester, uma mulher trans de Allston, no estado de Massachusetts (EUA). Sendo assim, há vinte e cinco anos lembramos e reverenciamos a memória de pessoas trans mortas. Habitualmente, nesse dia são realizadas cerimônias cujo ato central é a leitura dos nomes das pessoas trans assassinadas entre 20 de novembro do ano anterior e 20 de novembro do ano em curso.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) publica a cada mês de janeiro, no Dia Nacional de Visibilidade de Pessoas Trans e Travestis, um relatório no qual reúne os assassinatos cometidos no país contra pessoas trans no ano anterior. Em 2023, foram computados 155 assassinatos apenas desse público representado pela letra T no acrônimo LGBTQIAPN+. A Antra aponta que a falta de ações específicas e de compromisso pelo Estado contribui para o assassinato de pessoas trans. O impacto disso é multifatorial: pessoas trans se tornam menos otimistas sobre o futuro; saem menos de casa e acessam menos transportes coletivos e de aplicativos por medo de violência; acessam menos cuidados em saúde, provocando mais agravos sobre si; sofrem ataques transfóbicos em escolas e universidades; enfrentam desafios no mercado de trabalho e na geração de renda; não se sentem seguras para buscar ajuda; enfrentam mais rejeição social; são levadas ao autoextermínio; continuam sendo humilhadas e expulsas de banheiros; leis antitrans são aprovadas com mais facilidade; as redes sociais seguem permitindo mensagens de ódio transfóbicas. [2]
Todavia, em meio a esse quadro bastante relevante e lastimável, gostaríamos de celebrar essa data relembrando a memória de um homem trans que viveu em Belo Horizonte desde a década de 1930 até o ano de sua morte, em 1981. Em meio a um ambiente social no qual uma rede entrelaçada e intrincada de discursos – médico, jurídico, policial, religioso, moral – colaborava para reprimir, discriminar e acuar pessoas dissidentes de sexo e gênero, Edmundo de Oliveira encontrou meios para sobreviver e construir seus laços de sociabilidade.
Em julho de 1952, o jornal Diário de Minas publicou reportagem de quase uma página sobre um homem que fazia sua transição de gênero aos olhos do público. No texto, ele apresentou sua identidade de gênero ao relatar sobre seus hábitos, seu modo de vida, sua origem. Um homem trans surgia para o público leitor do periódico (embora a reportagem tenha sido feita com seu nome morto)! Não foi o primeiro episódio de visibilidade transmasculina em Belo Horizonte, mas foi inédito para a época como uma exposição consentida. O jornal não noticiou a repercussão de sua reportagem nos dias seguintes, e o caso pareceu ter caído em esquecimento…
Em agosto de 1981, os jornais de Belo Horizonte anunciaram com estardalhaço a morte de Edmundo de Oliveira, um rondante noturno de uma revendedora de automóveis. Ele havia passado mal do coração em seu turno de trabalho. Levado ao Pronto-Socorro, ele não resistiu e faleceu. Durante a preparação de seu corpo, verificou-se que Edmundo tinha seios e vagina.
Ao longo de uma semana, as investigações policiais rastrearam a vida de Edmundo, que pode ser resumida com estas informações: ele nasceu em 7 de agosto de 1914, em Alto do Rio Doce, em uma família de fazendeiros. Transferiu-se para Belo Horizonte em 1933, depois de diversos desentendimentos com sua família devido à sua identidade de gênero. Em 1934, relatou a uma prima: “Quero ser homem e pobre, viver do meu trabalho; não quero ser mulher, quero ser homem de qualquer maneira e ainda vou conseguir isso.” Ele viveu na capital mineira até morrer (e certamente testemunhou diversos casos de transgeneridade ocorridos na capital já documentados). Em 1954 – ou seja, dois anos após aquela primeira aparição no Diário de Minas –, Edmundo se dirigiu a um cartório de registro civil na capital mineira e relatou alguma narrativa para sustentar a necessidade de emissão de nova via de certidão de nascimento. Seja lá qual foi sua justificativa, o certo é que o atendente recebeu a demanda e o oficial emitiu uma certidão com seu nome. Veja esta segunda via emitida pelo cartório em 2022.
Em 1958, Edmundo deu mais um passo na consolidação de sua vida social. Naquele mesmo cartório, ele solicitou que fosse oficiado seu casamento civil com Maria Raimunda da Silva. A cerimônia ocorreu em 28 de abril daquele ano. Veja também a segunda via de sua certidão de casamento emitida em 2022 e ainda o edital de seu casamento publicado dias antes em jornal da cidade.
Edmundo ficou viúvo em 1976. Viveu como homem pobre e do seu trabalho até o momento de sua morte, como manifestara à sua prima.
Infelizmente, foi sepultado no Cemitério da Paz, em Belo Horizonte… com o nome que seus pais lhe deram ao nascer…
*Luiz Morando é co-fundador do Museu Bajubá, onde exerce a vice-presidência e a coordenação da Estação Belo Horizonte.
Referências
[1] Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Internacional_da_Mem%C3%B3ria_Transg%C3%AAnero
[2] Cf. post publicado no perfil da Antra no Instagram em 13 de novembro de 2024.
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