97 anos de nascimento de João Antônio Mascarenhas

- O ativista pelos direitos humanos

Integrantes do Grupo Triângulo Rosa. Mascarenhas, à direita, seguido de Caio Benévolo e dois outros integrantes. Jornal O Dia, RJ, 17 mar. 1988. Acervo: Museu Bajubá.

Por Rita Colaço-Rodrigues

       João Antônio de Souza Mascarenhas foi, entre os ativistas da geração Lampião da Esquina/Somos-SP, dos que mais lutou em prol do reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas homossexuais.  Fazendo do Grupo Triângulo Rosa a sua trincheira, Mascarenhas conduziu a reivindicação do então nomeado Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) junto ao Congresso Constituinte, para que na nova Constituição houvesse expressa proibição de discriminação por orientação sexual.  Foi o primeiro homossexual a, falando enquanto tal e representando uma demanda coletiva, fazer uso da fala no Congresso Nacional, numa época em que pouquíssimas pessoas ousavam se assumir, mesmo aquelas com grande visibilidade e volume de capitais econômicos e simbólicos.

       O bloco falso moralista, chamado pela imprensa de Centrão (formado por cristãos fisiológicos, dos quais, pelo menos 96 passaram a figurar na imprensa envolvidos inúmeras práticas previstas no Código Penal, conforme a compilação realizada por Mascarenhas e publicada sob o título A Tríplice conexão – machismo, conservadorismo político, falso moralismo), entendia – como ainda hoje entende – que homo, trans e bissexuais são pessoas que, pela sua dissidência da hipócrita moral heterossexual (sim, porque não nos esqueçamos que o Brasil é dos maiores consumidores de pornografia envolvendo pessoas travestis), devem, sim, ser alvo de toda a sorte de violência, permanecendo alijadas da cidadania. E tudo fizeram para inviabilizar o reconhecimento do nosso direito. Fomos vencidos.

            – Mas será? Fomos mesmo?

       Pela visibilidade alcançada, sendo a questão tratada com seriedade pela imprensa (escrita e televisionada) e por vários parlamentares, e por termos conseguido inscrever a proteção em Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, com certeza, não! É Robert Howes, autor de uma minibiografia de João Antônio, quem demonstra:

[…] A Lei de Organização do Município de Teresina, de 1990, estipulava que “Ninguém será discriminado ou privilegiado em razão de […] orientação sexual” (Art. 9). Dos textos consultados, verificou-se que a Constituição do Estado de Mato Grosso, a Constituição do Estado de Sergipe e a Lei Orgânica do Município de 71 cidades continham esta proibição explícita. No Rio de Janeiro, único Estado onde foram examinadas todas as Leis Orgânicas Municipais, 15 dos 70 municípios (21%) tinham suas leis favoráveis. HOWES, 2010, p. 306).

       Como todas, João Antônio foi uma pessoa do seu tempo, origem e classe social. Como todo mundo, trazia os seus preconceitos, contradições, vaidades, autoritarismos – quem não, principalmente numa sociedade forjada sob a égide das castas, do escravismo, da misoginia, do estupro e, nos dias que correm, da idiotia como fator de ufanismo? Embora gostemos de posar de seres perfeitos, prontos a apontar o dedo, acusando outrem das nossas mazelas humanas, somos, todas nós, pessoas – um amontoado de todas as imperfeições que caracterizam a nossa espécie. Algumas de nós, num constante trabalho de reflexividade, de autoconhecimento, se esforçam por mantê-las sob a administração possível. Outras, não. Se sentem autorizadas. Outras, ainda, orgulhosas! De todo modo, importa também recordar que cada interação nossa é única, cada qual dirá de nós segundo sua vivência. Uns carregam nalgumas tintas; outros, noutras – cada qual sabe como foi a sua. O que não significa, em absoluto, minimizar as ações equivocadas empreendidas por Mascarenhas (e aqui me refiro, especificamente, à sua fala discriminatória em relação às travestis, no seu discurso no Congresso Constituinte;  e à sua carta-circular aos demais grupos e ativistas recomendando não expressar solidariedade em relação Antônio Chrysóstomo, pois, a seus olhos, poderia “comprometer” a imagem do movimento homossexual perante a opinião pública). Mas apenas não usar essas atitudes para invalidar (“cancelar”, como gostam de dizer na atualidade) toda a sua longa e importante atuação.

       O que importa, nesse campo de disputa que se tornaram as memórias sobre o Movimento Homossexual Brasileiro, é recordar o quanto ele fez. E João Antônio fez, e muito! Sem buscar holofotes ou se arvorar o líder iluminado – mesmo sendo aquele que, na época, no Brasil, era dos que mais conhecia (ou o que mais conhecia) o ativismo internacional e a sua história, tendo se articulado com diversas entidades e militantes, tanto que jamais tratou Stonewall como “o início de tudo”. 

       Era uma época em que o ativismo se caracterizava pela paixão, pelo voluntariado. Ninguém pensava em transformar aquela luta, vista por nós como cívica, uma profissão. Seria mesmo absurdo completo imaginar, na ocasião, alguém pudesse disso fazer ofício remunerado ou vir a reivindicar grande distinção, por dela ter participado. Pagávamos uma mensalidade simbólica, enquanto membros do TR, para custeio de algumas atividades. Mas éramos muito poucos! Nos boletins do Grupo é possível ver a situação de penúria financeira, a quantidade de inadimplentes (que também não participavam das reuniões). Até onde participei (meados de 1986, 1987, não lembro mais),  para as despesas mais caras (interurbanos, correspondência nacional e internacional, reprografia, assinatura de periódicos nacionais e internacionais, era mesmo o João Antônio quem custeava, pessoalmente. Por não precisar exercer atividade remunerada, o seu ativismo era a tempo integral. 

       Tinha (e tenho) por ele profunda admiração. Pela sua determinação, pelo seu envolvimento pessoal total com a causa que escolheu se dedicar. Por saber, em razão de sua formação jurídica, que a luta precisava ser travada no campo normativo e no quadro dos direitos fundamentais. Sem jamais renunciar à independência e à autonomia do movimento – aspectos inegociáveis por parte de muitos de nós.

       Para quem desejar conhecer mais a respeito desse que foi o grande ativista de sua geração – que, como Darcy Penteado, Antônio Carlos Tosta, Néstor Perlongher, Herbert Daniel, Grupo Somos/RJ, Grupo Atobá, entre outros, teve a sua atuação invisibilizada por conta das disputas por protagonismo verificadas posteriormente (facilitadas pelo precoce falecimento daqueles), sugiro a leitura do artigo do Robert Howes, em Cadernos do Arquivo Edgard Leuenroth, cujo link consta das referências, logo a seguir. 

Boa leitura!

       Sobre o jornal Lampião da Esquina, trago a versão de Mascarenhas, presente  no seu trabalho de memória para Cláudio Roberto da Silva, durante sua pesquisa para o mestrado em história social:

Desde o início, já vi que o jornal nunca seria um órgão do movimento… por causa do papel predominante do Aguinaldo. Ele não sabia nada sobre o assunto, nem se importava com isso. Mesmo assim, achei que devia prestigiar o Lampião, pois parecia-me que era melhor ter este jornal do que não ter nada. […] Imaginava que o Lampião poderia agir como um catalisador…. o que acabou acontecendo! Os grupos começaram a surgir.
[…] Porém, sob a orientação do Aguinaldo, o jornal cada vez mais se afastava da minha ideia. Então, achei melhor dar minha cota ao Francisco Bittencourt. Pensei comigo: “- Bom! Não vou combater o jornal de maneira nenhuma! De qualquer forma, acho que ele é mais do que nada…, mas vou me retirar.” Assim, saí do jornal.
O Lampião ajudou, especialmente, a haver o despertar… demonstrar a muita gente que os homossexuais podiam fazer alguma coisa. Eles também poderiam atuar num outro campo, visto o que o grupo do Lampião estava fazendo… então, acho que foi isso: auxiliou. Porém, depois os grupos brigaram com o Aguinaldo. Nem me lembro direito porque foi, mas… em linhas muito gerais, era porque queriam que o Lampião desse apoio numa forma e num grau que o Aguinaldo não estava disposto. E o jornal era o Aguinaldo. Como já disse, ele nunca deu importância ao movimento como uma questão de ordem social. Nunca conversei com ele a esse respeito… assim não sei dizer precisamente, mas tenho a impressão [de] que[,] para ele[,] era mais importante a afirmação individual. É um pensamento radicalmente contrário ao meu… acho que o estamento social é mais importante! (MASCARENHAS apud SILVA,  1998)

* Agradeço a Luiz Mott, a generosidade de me enviar, em 10 de julho de 2010, por mensagem eletrônica, a íntegra da entrevista que Mascarenhas concedeu a Cláudio Roberto da Silva, por ocasião de sua pesquisa de mestrado em História Social, na USP.

Esclarecimento:
Este é um espaço aberto para contribuições de pessoas pesquisadoras. Os textos aqui publicados refletem a opinião pessoal da sua autoria. Quando se tratar de comunicação institucional, esta informação constará do texto.

Referências:
CÂMARA, Cristina. Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo triângulo rosa. Rio de Janeiro: Academia Avançada, 2002.


HOWES, R. João Antônio Mascarenhas (1927-1998): pioneiro do ativismo homossexual no Brasil. Cadernos AEL, [S. l.], v. 10, n. 18/19, 2010. Disponível em: <https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/ael/article/view/2516>. Acesso em: 20 out. 2024.


MASCARENHAS, João Antônio de Souza. A Tríplice Conexão – machismo, conservadorismo político e falso moralismo. Rio de Janeiro: 2Ab Editora, 1997.

MOTT, Luiz. Correspondência dirigida a João Antônio de Souza Mascarenhas. (manuscrita). Salvador, 23 nov. 1988 – Fundo Luiz Mott, Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Unicamp.

SILVA, Aguinaldo. “É o fim do mundo”, gritavam os jornaleiros. “Um jornal de veados!” In: Turno da noite – memórias de um ex-repórter de polícia. 1ª ed., Rio de Janeior: Objetiva, 2016, p. 101-120.

SILVA, Cláudio Roberto da. Reinventando o Sonho: História Oral de Vida Política e Homossexualidade no Brasil Contemporâneo. Mestrado em História (Dissertação). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998. Disponível em: <https://historiatransviada.net.br/2020/10/reinventando-o-sonho-historia-oral-de-vida-politica-e-homossexualidade-no-brasil-contemporaneo/>.

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