Celebração dos 110 anos do nascimento de João da Goméia

Joãozinho da Goméia (João Alves Torres Filho) comanda um ritual na casa de Toloquê, sua filha de santo, em Santos, São Paulo (08/10/1968). Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Por Andréa dos Santos Nascimento*

      João Alves Torres Filho nasceu às 10 horas da manhã de 27 de março de 1914, em Inhambupe, município do estado da Bahia. Era neto materno da escravizada de origem nigeriana Jurandina Maria da Conceição, e filho do alfaiate João Alves Torres e da dona de casa, rezadeira, devota de Santa Luzia, Maria Vitoriana Torres. Foi iniciado aos 15 anos de idade no candomblé do caboclo Jubiabá, em 21 de dezembro de 1930, recebendo o nome iniciático de Londirá. Aqui nasce o famoso sacerdote João da Goméia, mencionado nos anos de 1940 pelo romancista baiano Jorge Amado como um maravilhoso bailarino, digno de palcos de grandes teatros, o que vem a ser confirmado por Pierre Verger em correspondência ao amigo Roger Bastide, na qual informa que João da Goméia, em 1946, havia se lançado “nos meios dos music halls e cassinos do Rio de Janeiro”. Nessa época, ele instala uma nova sede do seu terreiro na cidade de Duque de Caxias, inaugurando uma nova fase na sua trajetória de vida, e faz uso de suas redes de contato para conquistar prestígio e status em ambiente midiático e espaços culturais e políticos da Capital Federal da República. João da Goméia aprende a negociar com políticos, artistas, intelectuais e jornalistas, obtendo deles favores em troca de proteção espiritual e acesso a conhecimento sobre o candomblé, a cultura negro-baiana e a dança de matriz africana. Uma revolução de cores, brilhos, sons e passos que revela também aspectos da luta de um homem negro e gay, no período pós-abolicionista, bem como rompe o véu da invisibilidade e constrói um projeto de ascensão social no campo artístico e religioso, no qual fazia questão de ocupar todos os lugares que julgasse favoráveis ao seu projeto pessoal de ascensão social. 

       João da Goméia é um produto das formas culturais negras produzidas por um circuito afro-diaspórico, o que lhe proporcionou forjar uma identidade negra positivada impulsionadora da sua trajetória de vida. Sua comunidade de terreiro passa, então, a abrigar admiradores da arte negra e da religiosidade africana, transformando-se em referência para os estudos da cultura negro-africana, tanto para intelectuais como para profissionais da dança brasileira ligados ao corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, desde 1937, como ainda para as companhias de dança afro e de teatro negro folclórico que surgem nos anos de 1950 e têm em João uma importante referência, dispostas a transmitir os saberes e os fazeres cultuados dentro da tradição do candomblé banto, ou candomblé de Congo-Angola. 

      A partir de 1953, João da Goméia passa a ocupar espaços como os palcos dos teatros de revista. Contudo, apenas com a Companhia Baiana de Folclore Oxumarê ele descobre a possibilidade de se tornar um coreógrafo profissional e passa a reivindicar através da imprensa um destacado protagonismo no cenário da dança afro, que tem na bailarina e coreógrafa Mercedes Batista uma importante aliada para o reconhecimento da sua presença como mestre de danças de matriz africana. Isso revela as conexões existentes entre sujeitos negros em torno de processos de criação artística e de formação de redes de solidariedade e de sociabilidade, compreendidas a partir da perspectiva do terreiro da Goméia como um circuito negro da dança afro-atlântica, onde muitos artistas de fama nacional e internacional de origem cubana, caribenha e norte-americana passam a aprender a dança dos orixás. 

      Ao ser convidada pela historiadora e ativista LGBT Rita Colaço para escrever este breve artigo sobre os 110 anos do nascimento de João da Goméia, não poderia deixar de trazer dados sobre o seu protagonismo como bailarino, coreógrafo e mestre de danças de matriz africana, até porque quando se fala em JOÃOZINHO DA GOMÉIA, ainda se destacam olhares pejorativos que reduzem esse sacerdote de candomblé e multiartista a uma identidade sexual carregada de preconceito. Desde 2003, no decorrer da minha pesquisa sobre sua trajetória pública, muitas são as associações de João com o carnaval vestido de travesti. Ou apenas comenta-se que ele tenha transformado o candomblé em carnaval, desmoralizando o culto religioso. Minha pesquisa vem desde a graduação, dedicando-se a investigar com profundidade os rastros de João da Goméia e vesti-lo com seus trajes reais. A opção por pesquisar a sua trajetória artística dá visibilidade a um artista que foi de suma importância para a criação de uma arte performática, que impulsionou a produção artística de companhias brasileiras de dança afro e de teatro folclórico negro no alvorecer dos anos de 1950, como as do grupo Brasiliana; da Companhia Baiana de Folclore Oxumarê, de Sergio Maia; do Balé Folclórico Mercedes Batista e do Teatro Popular Brasileiro, do intelectual, coreógrafo e folclorista Solano Trindade. Acho de fundamental importância reivindicar este lugar para Seu João da Goméia, por reconhecê-lo como um potente intelectual orgânico e porta-voz dos interesses da sua classe. 

      Sendo assim, fica o questionamento: como falar de João da Goméia apenas tocando no sacerdote Tata Londirá? Como não abordar a sua multifacetada atuação no campo artístico brasileiro de 1937 a 1971? Como se referir a um personagem tão complexo apenas aludindo à sua atuação como folião e carnavalesco a partir dos desfiles das Escolas de Samba? Como negligenciar a sua atuação como coreógrafo, tão importante para a cena da dança afro-brasileira no período do Estado Novo (1937-1945)? Afinal, era no terreiro da Goméia, com sede em Salvador, onde se aprendia a dançar. Como apagar a importância de João da Goméia a posteriori, junto aos bailarinos negros com seus quadros coreográficos inspirados em África?

      Que os 110 anos do nascimento de João da Goméia tragam para ele o reconhecimento merecido, e que a minha pesquisa continue iluminando a sua passagem pela terra!

 

 

 

 

 

 

 

*Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Especialista em História do Brasil e Ensino de História e Ciências Sociais (UFF), Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa a trajetória pública do babalorixá, bailarino e mestre de danças de matriz africana, Joãozinho da Goméia, desde 2001.

http://lattes.cnpq.br/3595447110675485

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