Marielle Franco, Carol Câmpelo, Dandara dos Santos, Crismilly Pérola, Luana Barbosa dos Reis
Por Leona Wolf*
Há mais de 130 anos de uma abolição incompleta, remetemos, em oposição, à luta de mulheres que não se dobraram ao patriarcado colonial e à sua dominação de gênero. Recordamos a característica histórica do gênero e denunciamos a persistência dos números continuamente ascendentes dos assassinatos de pessoas negras, cis, lésbicas, trans.
Aqualtune, Princesa do Congo, grávida, liderou um exército de dez mil combatentes do Reino do Congo contra Portugal. Derrotada e capturada, foi vendida como escrava em Recife. Já no Brasil, Aqualtune liderou uma fuga, rumo ao Quilombo dos Palmares. Ali, reconhecida como Rainha, seu conhecimento das táticas de guerra foram vitais para a resistência no Quilombo. Não há informações sobre a sexualidade de Aqualtune, mas sua trajetória nos remete a outra coisa: há algo distinto, presente nos relatos dos colonizadores, tanto na guerreira congolesa como nas guerreiras tupinambás, que copulavam com o mesmo sexo. Algo que fala do lugar imposto à raça, cuja construção nunca se descola do gênero. É que nossos padrões dominantes de gênero, que definem a masculinidade e feminilidade, são construções impostas colonialmente.
Como no discurso de Sojourner Truth, Aqualtune, Rainha dos Palmares, não performa o paradigma da mulher e, talvez, essa feminilidade, como definida, seja apenas um compósito imposto sobre as mulheres, moldando-as, nas sociedades feudais e burguesas. Isso é importante recordar, porque o ideal de mulher frágil, dependente de um homem, a ser protegida, nunca existiu para quem sempre lutou pela sobrevivência – as camponesas europeias (chamadas de bruxas), as campesinas e as operárias, brancas, negras e indígenas no Brasil, um país no qual a dominação racial cobra seu preço sobre a classe, o gênero e a sexualidade.
Embora implantada a Lei Maria da Penha, os feminicídios seguiram aumentando entre mulheres negras. Dentre os assassinatos de pessoas LGBT+, por exemplo, as pessoas negras aparecem como 58,57% das vítimas, segundo o GGB (2022), e, segundo o mapeamento anual da ANTRA (2022), pessoas negras mantêm há mais de dez anos uma média de 80% entre os assassinatos de pessoas trans negras, sendo 97,2% das mortes correspondentes a mulheres trans e travestis.
Entre as mulheres cis lésbicas, o Dossiê sobre lesbocídio no Brasil, produzido pelo Núcleo de Inclusão Social (NIS) e o Nós: dissidências feministas (2018), aponta que, no período de 2014 a 2017 – momento de disparo da campanha conservadora contra a “ideologia de gênero” –, o número de lésbicas não-feminilizadas entre as vítimas ultrapassou o de lésbicas feminilizadas, tanto brancas quanto negras, as negras feminilizadas mais vitimadas do que as brancas.
Nesse cenário se inscreve o assassinato de Luana Barbosa, mulher lésbica, negra, não-feminilizada.
Sua irmã, Roseli Reis, relata que:
Luana era frequentemente tratada de forma desrespeitosa e violenta, na base do ‘cabeça no muro, abra as pernas, mão na cabeça’. Também era comum que fosse confundida com um homem, pois Luana usava cabelo curto e roupas tidas como não femininas. No dia em que foi espancada, aconteceu o mesmo. ‘Ela quis dar uma de macho, tivemos que acalmá-la’, disse um dos policiais que a espancou. (Merlino, 2017, p. 46).
Esses são aspectos que trazemos à reflexão neste Dia Nacional da Consciência Negra.
Em memória das mulheres de luta, que não se dobraram, que divergiram do patriarcado colonial, prestamos homenagens às Aqualtunes, Luanas, Dandaras e Marieles.
*Leona Wolf é psicanalista, cientista social, mestra em Economia Política Mundial e doutoranda em Filosofia.
Referências:
ANTRA – BENEVIDES, Bruna G. Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasil: ANTRA, 2022. 140p. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf Acesso em: 2 maio 2022.
GGB – MOTT, Luiz; OLIVEIRA, José Marcelo Domingos (orgs.). Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: relatório 2021. 1ª ed. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2022. 77p. Disponível em: https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2022/03/mortes-violent as-de-lgbt-2021-versao-final.pdf. Acesso em: 2 maio 2022.
MERLINO, Tatiana. Luana Barbosa: morta por ser mulher, negra, pobre, lésbica. In: PRADO, Débora; SANEMATSU, Marisa (orgs.). Feminicídio #InvisibilidadeMata. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017. p. 43-50. Disponível em: https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2017 /03/LivroFeminicidio_InvisibilidadeMata.pdf. Acesso em: 8 maio 2022.
PERES, Milena Cristina Carneiro; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. 1ª ed. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. 116p. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf
Fotografias
1. Marielle Franco
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:-Luciana50_%E2%80%A2_Debate_PartidA_com_Luciana_Boiteux_%E2%80%A2_22_09_2016_(30443035460).jpg
2 Carol Câmpelo
https://athosgls.com.br/mobilizacao-em-sao-paulo-exige-justica-para-carol-campelo-uma-jovem-lesbica-que-foi-violentamente-assassinada-no-estado-do-maranhao/
3. Dandara dos Santos
https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinato_de_Dandara_dos_Santos
4. Crismilly Pérola
https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/travesti-negra-e-assassinada-com-um-tiro-a-queima-roupa-no-recife/ Imagem: Reprodução/Acervo da família
5. Luana Barbosa dos Reis
https://secure.avaaz.org/community_petitions/po/Governo_do_Estado_de_Sao_Paulo_Justica_para_Luana_
Barbosa_dos_Reis_mulher_negra_lesbica_morta_pela_PM/?pv=10
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