Joãosinho Trinta - A revolução pela alegria
Para mim, o Brasil é que é irreal. Não se pode pensar num lugar tão rico com pessoas vivendo dessa maneira miserável – Joãosinho Trinta
Ele marcou a vida do Brasil, não o Carnaval; o Carnaval é um detalhe – Fernando Pamplona
[A sua] criatividade e ousadia viraram mito –
O Fluminense, 06/05/1996, p. 7
Por Rita Colaço-Rodrigues*
Em 23 de novembro de 2024 comemoramos 91 anos do nascimento de João Clemente Jorge Trinta, ou Joãosinho Trinta, o carnavalesco que revolucionou os desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro e do Brasil e que acreditava no futuro do país como resultado de seu povo alegre, lúdico, criativo.
Originário do Maranhão tinha 1,57m de estatura e exibia o biotipo característico do povo do norte do país. Em 1955, aos vinte anos de idade, rumou para a Capital Federal, vindo de São Luís, com a obsessão de estudar balé clássico no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Já trabalhava como dançarino no Maranhão. Aqui passou apertos financeiros, claro.
Em 1956 prestou exame para ingresso no Municipal. De tão bom que era, passou – testemunha Fernando Pamplona, também integrante do TMRJ. Ele era muito talentoso; um bom bailarino, dotado de muito boa técnica e muito inteligente, assegura Carlos Heitor Cony (Machline e Cedroni, 2009). A mesma opinião, porém, não é compartilhada pela ex-bailarina Zeni Lacerda Pamplona, esposa de Fernando, para quem ele não tinha muita técnica e só entrou porque não havia muitos candidatos, em razão do preconceito em relação aos homens exercerem o ofício (O Globo, 09/11/2014). Sua estatura, contudo, não lhe permitia futuro na dança – apenas era escalado para papéis secundários. Zeni e João chegaram a dançar juntos, na ópera Príncipe Igor, graças à existência de um número para bailarinos de baixa estatura no programa (O Globo, 09/11/2014). Mas João pode expressar o seu talento em outros campos que não a dança – aderecista, guarda-roupa, cenografia, iluminação. E já ali explodia sua inventividade, a sua capacidade de transformar sobras, restos, em maravilhas: Estando o TMRJ com poucos recursos, tomou elementos de outros espetáculos e produziu uma montagem da ópera Tosca, de Puccini, cujo resultado foi maravilhoso, revela Fernando Pamplona (Machline e Cedroni, 2009). Por três décadas Trinta integrou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Arlindo Cruz e Fernando Pamplona, ambos também do Teatro Municipal, o levaram para o ambiente das escolas de samba – a Acadêmicos do Salgueiro em primeiro lugar. Não parou mais. Nesse ambiente teve condições de dar azo a todo aquele seu lado Midas: com os elementos mais pobres produzir coisas riquíssimas – é de novo Pamplona quem dá o seu testemunho (Idem). Essa característica, aliada à sua verve onírica, produziu os carnavais mais inesquecíveis da cidade e do país.
Simples, reconhecia em Arlindo Cruz e Fernando Pamplona os seus mestres. Este, porém, retruca que não o foi jamais e “modestamente ou não, talvez a gente tenha aprendido mais com ele do que ele com a gente” (Machline e Cedroni, 2009).
Traço marcante de sua trajetória era o seu crescente compromisso social – a percepção de que, por meio da cultura, do lúdico, era possível melhorar as condições de miséria econômica e cultural das crianças do entorno das escolas de samba pelas quais passava. De forma parecida com Darcy Ribeiro, via o brasileiro como a gênese de um novo povo, capaz de, com a sua alegria contagiante, realizar a autêntica revolução.
Em 1992 foi enredado em notícias sensacionalistas sobre corrupção de menores, acusado de abrigar homossexuais junto com as crianças do projeto Flor do Amanhã, naquela velha lógica de que todo homossexual masculino é pedófilo. Afastado do projeto, se exila em Portugal, trabalhando no Cassino Estoril. Em 1994 retorna ao Brasil e à Viradouro, onde emplaca, no terceiro lugar, o enredo Teresa de Benguela. (Jornal do Brasil, 13/02/1997).
Dedicado à obsessão, se exauria no trabalho, descuidando inteiramente da saúde, da alimentação, do repouso, do exercício físico: “Ele não dormia, não comia. Ficava 24 horas no ar”, diz Fábio Miranda, auxiliar e amigo, em 1997, quando, já vitimado pela isquemia, ainda assim arrebatou o campeonato, pela Viradouro (JB, 13/02/97, p. 17, 1º cad.).
A isquemia o fez se confrontar com a finitude e as nossas intrínsecas incompletude e vulnerabilidade. Tornou-se menos nervoso, agressivo, preocupado. Aprendeu a ser solidário e a reconhecer o trabalho coletivo. “Antes, era ele só. Agora, ele depende, precisa de ajuda” – diz Fátima Bessil, mulher de Carlos Monassa, mecenas da Viradouro (JB, 13/02/97, p. 17, 1º cad.).
Depois que eu tive o AVC eu melhorei muito. Eu era uma pessoa estressada; difícil até. E hoje eu tô com um sorriso permanente porque eu tô feliz. Tô com saúde, com muita disposição. Eu sou jovem porque a idade é na cabeça. As pessoas que não pensam é que ficam velhas. As pessoas que não trabalham é que acabam morrendo. Eu não quero morrer (Machline e Cedroni, 2009).
Essa dificuldade que, dizem, ele exibia anteriormente, de reconhecer o trabalho dos demais integrantes do coletivo que produzia o desfile carnavalesco, fez surgir uma nódoa em sua trajetória de brilho sem igual. Paira sobre ele a acusação de haver se apropriado da ideia original que se transformou num dos seus mais magníficos enredos – Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia, Beija-Flor, 1989.
Consta que a ideia foi de Laila, Fernando Ribeiro do Carmo, então Diretor de Harmonia na Beija-flor. Laila teria lhe dito que via, como tema para o desfile, a imagem de “um Cristo mendigo saindo de dentro de uma favela ou abraçando a favela para amenizar a dor do nosso povo” (Correio Braziliense, 18/06/2021). João nada disse. Mas na reunião da diretoria apresentou a ideia como sua. Laila o interpelou após a reunião. João não reconheceu. A relação entre eles se estilhaçou aí e jamais se refez. Essa nódoa é testemunhada por outros personagens de sua rede de relações – o jornalista Aydano André Motta entre eles (Finep tira o chapéu, 07/11/2012, parte 2). Já no final da vida, confrontado com a vulnerabilidade, chegou ao seu máximo em relação ao assunto: limitou-se a dizer que, no Carnaval, a criação é coletiva.
Embora os que sustentem sua trajetória ter sido sempre no sentido de trazer para si a exclusiva autoria, na entrevista concedida em 1991 à Bruna Lombardi, no Gente de Expressão (disponibilizado em 2019, no canal da artista, no YouTube), o vemos exaltar a genialidade de crianças de rua de Corumbá, mostrando as pequenas esculturas de animais por elas criadas e que ele usou como alegoria no desfile (Lombardi, 2019).
Joãosinho Trinta faleceu em 17 de dezembro de 2011, no Maranhão, com 78 anos de idade. Não se encontram muitas referências à sua vida pessoal e sexual. Uma dessas consta da entrevista concedida à Bruna Lombardi, acima referida. Ali ele fala sobre sua orientação homossexual. Para ele esse desejo adveio da ausência da figura paterna.
Após o seu falecimento foi veiculada a notícia de que contraiu matrimônio com a sua cuidadora, uma técnica de enfermagem 51 anos mais nova do que ele. Segundo a moça, a iniciativa partiu dele e tinha como motivo o desejo de ajudá-la, para que ela, com a pensão de viúva, pudesse custear a faculdade de medicina, o seu sonho (O Globo, 03/08/2012). Fato que o aproxima de Clóvis Bornay que casou-se em Nova Iguaçu com a sua empregada, para ampará-la e as filhas (Jornal Metrópolis, 26/01/2016). A matéria de O Globo que traz a notícia do casamento de Trinta, diz que ele não tinha bens, diferentemente de Bornay, que deixou o apartamento onde morava e o seu acervo pessoal de fantasias.
Para conhecer mais sobre esse gênio de nossa cultura popular, convido a assistirem os vídeos mencionados a seguir – entrevistas e documentário.
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* Historiadora.
Referências:
FINEP Tira o Chapéu – Joãozinho Trinta – 7/11/2012 (Parte 2). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oqnUW–7a-s.
Jovem de 28 anos afirma ter se casado com Joãosinho Trinta. Jornal O Globo, 03/08/2012. Disponível em: G1 – Jovem de 28 anos afirma ter se casado com Joãosinho Trinta – notícias em Espírito Santo.
LOMBARDI, Bruna. Gente de expressão, 1991. Disponível em: https://youtu.be/8PimzwjVfHU?si=rqdlk3lZnGm9Cvlm.
Morre Laila, o diretor de carnaval do Rio de Janeiro, vítima da Covid-19. Jornal Brasiliense, 18/06/2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/06/4932198-morre-laila-diretor-de-carnaval-do-rio-de-janeiro-vitima-da-covid-19.html#google_vignette.
MACHLINE, Paulo e CEDRONI, Giuliano. A Raça Síntese de Joãosinho Trinta. Documentário, 2014. Disponível em: https://youtu.be/oRfkzmYElSE?si=w_XvO96dF2gWCq-Z.
O Big Bang de Joãosinho – mesmo abalado pela isquemia, o maior dos carnavalescos usou energia do trabalho em equipe para uma explosão de criatividade. Jornal do Brasil, Caderno Cidade, 13/02/97, p. 17. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_11&Pesq=Jo%c3%a3osinho%20Trinta%20%c3%a9%20acusado%20de&pagfis=293592.
O carnavalesco Clóvis Bornay é tema de exposição em cartaz no Museu da República do Rio. Jornal Metrópoles, 26/01/2016. Disponível em: O carnavalesco Clóvis Bornay é tema de exposição em cartaz no Museu da República do Rio | Metrópoles.
30 histórias curiosas de Joãosinho Trinta. Jornal O Globo, 09/11/2014. Disponível em: 30 histórias curiosas de Joãosinho Trinta – Jornal O Globo.
Fotografias:
1. Joãosinho Trinta, foto de Ivo González, O Globo
2. Imagem da internet, Sem autoria, Divulgação.
3. Desfile da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, com o enredo “O Paraíso da Loucura”, do carnavalesco Joãosinho Trinta, 26.02.1979, Fotografo Luiz Pinto. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Desfile_da_Escola_de_Samba_Beija-Flor_-_1979.jpg
4. As baianas da Acadêmicos do Grande Rio em 2003 representando o ouro no enredo “Nosso Brasil que Vale” do carnavalesco Joãosinho Trinta. A escola ficou classificada no terceiro lugar, sua melhor colocação até então. Foto de Fernando Maia. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Grande_Rio_em_2003.jpg
