Casamentos Dissidentes - Doze anos da conquista do direito ao casamento civil igualitário no Brasil
Imagens das capas dos dez episódios da série.
Por Paulo Iotti[i]
No dia 14 de maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução 175/2013, que impôs aos Cartórios de Registro Civil o dever de celebrarem o casamento civil entre pessoas do mesmo gênero (casais homoafetivos), com igualdade de direitos e segundo os mesmos requisitos garantidos e impostos a pessoas de gêneros opostos (casais heteroafetivos). Embora por ato formal fruto de decisão de seu Presidente, o então Ministro Joaquim Barbosa, o CNJ havia sido provocado para tanto primeiro pelo Instituto Brasileiro de Direito das Famílias (IBDFAM), em ofício redigido por Maria Berenice Dias, em dezembro de 2012, e depois por Pedido de Providências que redigi em nome do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e da Associação de Registradores de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro (ARPEN/RJ), em 12 de abril de 2013.[i]
Essa data merece ser celebrada, como ponto culminante da luta judicial pela plena cidadania de casais homoafetivos no Brasil no que tange ao Direito das Famílias.[ii] Essa aprovação foi resultado dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, nos dias 4 e 5 de maio de 2011, quando reconheceu o direito à união estável entre casais homoafetivos,[iii] e do Superior Tribunal de Justiça, nos dias 20 e 25 de outubro de 2011, quando reconheceu o direito ao casamento civil de um casal de mulheres que havia sido negado pelas instâncias inferiores.[iv] A Resolução CNJ 175/2013 encerrou a polêmica instaurada no âmbito dos distintos Tribunais de Justiça, no âmbito de sua competência administrativa de regulamentação estadual da competência dos Cartórios de Registro Civil, pois como a Constituição (art. 226, §3º, parte final) e o Código Civil (art. 1.726) afirmam que a união estável pode ser convertida em casamento civil, o que se faz mediante procedimento administrativo perante a Vara de Registros Públicos ou Vara Cível que lhe faça as vezes, alguns Estados estavam permitindo o casamento civil homoafetivo apenas por conversão de prévia união estável, outros o permitiram tanto dessa forma como independente de união estável e alguns não o estavam permitindo de forma nenhuma, pela compreensão simplista de que pelo STF ter reconhecido o direito à união estável homoafetiva sem falar expressamente do direito ao casamento civil homoafetivo, o tema supostamente careceria de nova decisão da Suprema Corte.
Como defendi no Pedido de Providências movido em nome do PSOL e da ARPEN/RJ no CNJ, considerando que a parte dispositiva da decisão da ADPF132 e da ADI 4277 tem força de lei, por seu efeito vinculante e sua eficácia erga omnes (art. 102, §2º, da Constituição), o que significa que ela é de obrigatório cumprimento no país inteiro, e considerando que nela o Supremo Tribunal Federal impôs o reconhecimento da união duradoura, pública e contínua entre pessoas do mesmo sexo enquanto família, em “Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva”, considerando que uma dessas consequências é a possibilidade de conversão em casamento civil, então o direito ao casamento civil entre casais do mesmo gênero é uma consequência lógica da força de lei da decisão do STF. E se as pessoas podem casar por conversão de prévia união estável, então o direito ao casamento civil já foi reconhecido, sendo arbitrário e, assim, inconstitucional à luz dos princípios da igualdade e da não-discriminação que se imponha uma espécie de “estágio probatório prévio” pela união estável só a casais homoafetivos para que se mostrem “merecedores” do casamento civil, inclusive por isso implicar menosprezo a seu valor intrínseco relativamente a casais heteroafetivos e, assim, afronta também ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Não é o momento para desenvolver os fundamentos jurídicos em questão, mas de celebração dessa importante conquista à plena cidadania de casais homoafetivos no Brasil. Afinal, o casamento civil não é um “dogma” religioso e sua celebração não é um ato de implicações meramente morais, pois uma grande quantidade de direitos está legalmente vinculada no Brasil e no mundo ao status de casados(as) ou, pelo menos, de família conjugal, no nosso caso também protegida pelo regime jurídico da união estável. E como o Superior Tribunal de Justiça pontuou na citada decisão que reconheceu esse direito, o casamento civil é o regime jurídico que confere maior proteção às famílias conjugais, pois pela mera certidão de casamento, tem-se prova com presunção absoluta, que não admite prova em contrário, que o casal forma uma família conjugal enquanto estiverem legalmente casados(as), o que inexiste na união estável, pois a certidão notarial de união estável e mesmo um contrato de união estável não tem essa força probatória (provam que o casal estava em união estável naquele momento, enquanto a certidão de casamento prova o status de pessoas casadas até que ocorra o divórcio ou a anulação do casamento).
Muitas pessoas tiveram suas vidas destruídas por não terem sido reconhecidas como parte da família conjugal da pessoa do mesmo gênero com a qual se relacionavam. Parentes de sangue que, por homofobia, desprezaram o casal durante toda sua vida, agiam (e agem) como verdadeiros urubus quando o parente de sangue falece e os bens do casal estavam apenas em seu nome. Toda a regulamentação dos regimes de bens do casamento civil só existe e faz sentido porque os bens estão em nome de um(a) dos(as) integrantes do casal, para serem divididos na forma do regime legal ou do regime eleito por pacto antenupcial, pois se estivessem em nome de ambos(as), a divisão estaria feita pelas regras da copropriedade. E como principalmente no Brasil não há a tradição de realização de contratos e mesmo de testamentos, que também não têm o condão de garantir os mesmos direitos das normas de ordem pública (imperativas, por independentes da vontade das pessoas envolvidas), pessoas não-heterossexuais eram expulsas das casas que moraram, muitas vezes por décadas, com o(a) companheiro(a) do mesmo gênero por isso. Ficavam a ver navios também em casos de separação nesses contextos, já que os inúmeros litígios em varas de famílias entre casais heteroafetivos provam que, no momento da separação, esse lado humano, desgraçadamente e imperfeitamente humano, recusa-se a uma divisão consensual de bens, demandando decisão judicial. Que não teria como ocorrer no contexto de Direito das Famílias sem o reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, ao passo que igualdade de direitos também não decorria, nem de longe, da desumanizante “teoria das sociedades de fato”, que menospreza o casal ao fingir, por presunção fruto de analogia com normas de Direito Empresarial, que o casal supostamente seria formado apenas por dois sócios ou duas sócias de uma empresa não-registrada na Junta Comercial. Afinal, nela se teria que provar a contribuição efetiva para construção do patrimônio comum do casal, que em um casal reconhecido como família considerado decorrente de uma “contribuição indireta”, pela lógica de que a comunhão plena de vida e a consequente afetividade decorrente da união afetiva em questão ajudaram o(a) outro(a) a ter forças para as atividades que geraram a formação do patrimônio comum. Daí sua divisão se dar de acordo com o regime patrimonial de bens do casamento civil ou definido no pacto antenupcial (ou contrato de união estável, sem o qual aplicam-se as normas da comunhão parcial de bens para tanto), independente da necessidade de “prova” de “contribuição” para a construção do patrimônio comum.
Nesse difícil momento mundial, onde setores reacionários lutam para suprimir direitos arduamente conquistados por diversas minorias, entre eles o direito ao casamento civil igualitário, é importante relembrarmos a luta empreendida para a conquista desses direitos, os fundamentos jurídicos de sua conquista judicial em casos como o brasileiro, os fundamentos político-morais da luta política em sentido amplo pela flagrante injustiça da negativa de direitos a uniões homoafetivas pela mera não-heteroafetividade da relação. Devemos nos manter alertas e reforçarmos nossas trincheiras de resistência jurídico-político-morais contra os retrocessos pretendidos por setores que fazem de sua missão de vida dificultar ou mesmo destruir as vidas de pessoas apenas por integrarem minorias sociais e que nenhum mal fazem a ninguém apenas por serem quem são e viverem da forma que entendem necessária para a busca de sua felicidade. Devemos nos manter sempre cientes da advertência do célebre poema de Brecht, que adverte que a cassação de direitos de uma minoria será seguida pela cassação de direitos de outras,[v] razão pela qual não se pode falar em pleno respeito aos direitos humanos abstratamente considerados enquanto preconceitos contra determinados grupos sociais ainda continuarem sendo invocados para negar direitos básicos de cidadania às pessoas que os integram.
[i] Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS). Coordenador da Pós-Graduação em Direito Homoafetivo, da Diversidade Sexual e de Gênero da Universidade Santa Cecília (UNISANTA). Professor do Mestrado em Positivação e Concretização Jurídica dos Direitos Humanos do Centro Universitário da Microrregião de Osasco (UNIFIEO). E-mail: paulo.riv71@gmail.com. Instagram: @pauloiotti. Site: www.pauloiotti.com.br.
[ii] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Entidades pedem ao CNJ regulamentação do casamento civil homoafetivo. Notícias CNJ, 12 abr. 2013. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/entidades-pedem-ao-cnj-regulamentacao-do-casamento-civil-homossexual/. Acesso em: 15 maio 2025.
[iii] Obviamente, direitos sexuais em sentido amplo não se limitam a direitos familiares fruto de uma relação de afeto e afetividade, donde o ponto culminante mencionado se refere exclusivamente ao Direito das Famílias e não a outros âmbitos dos direitos de diversidade sexual das pessoas não-heterossexuais. Críticas de setores progressistas à decisão agem de forma inepta ou deturpadora, pois pela vinculação do Judiciário ao que lhe é pedido, algo que deveria ser basilar em críticas de juristas, o Supremo Tribunal Federal apreciou o pedido de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como família conjugal e união estável constitucionalmente protegida e concedeu exatamente o que foi pedido. Não se negou direito a ninguém e nunca a decisão foi invocada para se negar direitos, apenas para se reconhecer direitos antes arbitrariamente negados. A equivocada afirmação da monogamia como “princípio jurídico” contrário à existência de famílias paralelas mesmo quando haja consenso entre as pessoas que a integram veio anos depois e sem fazer nenhuma ponte com o reconhecimento da união homoafetiva como família. Expliquei isso em dura crítica no seguinte texto: IOTTI, Paulo. STF erra ao negar direito previdenciário a união paralela de boa-fé. IBDFAM, 16 dez. 2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1615/STF+erra+ao+negar+direito+previdenci%C3%A1rio+a+uni%C3%A3o+paralela+de+boa-f%C3%A9. Acesso em: 15 maio 2020.
[iv] STF, ADPF 132/ADI 4275, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011, DJe 14.10.2011.
[v] STJ, REsp 1.183.178/RS, 4ª T., Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 25.10.2011, DJe 01.02.2012.
[vi] BRECHT, Bertolt (1898-1956). “É preciso agir”: “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como tenho meu emprego / Também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde. / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo”. (Grifos nossos)
