(Atualização/retificação: 14/12/2020, 08h26)
Em 2004 eu escrevi em uma nota, na monografia Ação e reflexão de um ativismo homossexual na Baixada Fluminense, apresentada ao curso de bacharelado em História Social, na UFF:

“Leci Brandão foi o primeiro artista da Música Popular Brasileira a ousar falar com naturalidade a respeito de sua homoafetividade. Em entrevista ao Jornal Lampião da Esquina, nº 6, de novembro de 1978, págs. 10-11, perguntada sobre se “Seu relacionamento com o homossexual, entendido, povo guei, como se queira chamar, é platônico ou participante”, responde: “Platônico e participante”. “Em que sentido”, perguntam novamente. – Leci:
“Quer ver? Por exemplo, o fato de eu ser homosssexual é uma coisa que não me incomoda, não me apavora, porque eu não devo nada a ninguém (…) A gente já é marginalizado, de cara, pela sociedade. Então a gente se une, se junta, dá às mãos. E um ama o outro, sem medo nem preconceito. É um negócio maravilhoso, que eu estou sentindo de cabeça, realmente. É o mais produtivo mergulho que eu já dei em mim mesma e na vida!”
– Teve a ousadia inclusive de em diversas composições de sua autoria abordar o tema do amor “entendido”, entre as quais destacam-se “Deixa pra lá”, “Ombro Amigo”, “As pessoas e eles”, “Essa tal criatura” .
Seu comprometimento político, porém, não deixaria de ser severamente sancionado. Em janeiro de 1980, o número 20 do Lampião publica, na página 2, uma carta onde Leci afirma que não desfilará pela Mangueira. Denuncia que fora vítima de discriminação por parte de um dirigente “Primeiro Ministro” que estaria preparando um Ato visando a sua expulsão “logo após o carnaval”. Ela, que, segundo afirma, por sete anos teve participação intensiva, divulgando o nome da Escola.
É a única lésbica de destaque nos meios artísticos a assumir publicamente sua orientação sexual (até a época da escrita original deste texto) e pautar-se por uma conduta sempre engajada politicamente, seja como mulher, lésbica, negra, de origem humilde:
“Luto pelos ideais do meu povo através dos versos musicados. Meu trabalho é social. É político, graças a Deus. Afinal, tenho vergonha na cara e não vou aplaudir arbitrariedades. Não bajulo quem nos consome a cada dia. Sou brasileira. Consciente. Atual. E principalmente sincera nas atitudes. Realmente não dá mais pra segurar. Ficar observando um sistema em que um homem todo poderoso convence as pessoas através de facilidades, ofertas de emprego, caixas de uísque, etc., é demais pra minha cabeça. (…) Discursar durante um jantar para alertar jornalistas, sambistas e militares da posição esquerdista e subversiva de uma compositora são coisas da MANGUEIRA 80, a MANGUEIRA DA PETROBRÁS. Por isto, SAIO.” (Grifos meus, RC).
No Lampião de junho de 1980, nº 25, há uma nota assinada por Antônio Carlos Moreira sobre os shows de Emílio Santiago na Sala Funarte e o de Leci, no Teatro Opinião. Depois de registrar os discos da intérprete e compositora que abordam o tema – “Coisas do Meu Pessoal”, “Questão de Gosto”, “Essa Tal Criatura”, ele trata das músicas constantes no roteiro do show:
“constavam músicas como: Margot de Edil Pacheco e Paulo Dinis, que conta a história de um travesti; Chantagem de Leci dirigida aos mau caráter que se aproveitam de situações onde assumir a homossexualidade é algo danoso, para assumir o papel do opressor; Me Acalmo Danando de Ângela RO RO e finalizando Essa Tal Criatura de Leci, que [e]voca a busca do prazer, seja como for e qual for, pelos seres humanos – Corra no campo/Leva um tombo/Rala o joelho/Mata essa sede/Durma na rede/sonha com a lua/Grita na Praça/Picha as paredes/Ama na maior liberdade… abra,/escancara esse peito. Recentemente, numa homenagem feita pela produção do Show Bifão Cabaré, Leci mais uma vez afirmou que seu trabalho tem sido feito com muito sacrifício, e que as barras e as batalhas ganhas foram estimuladas não só pela confiança em seu trabalho, que considera conseqüente, mas principalmente por acreditar nas pessoas iguais a ela e para as quais dedica todo seu esforço, os homossexuais, essas tais criaturas!” (Grifos do original.).
Em sua página virtual, o texto de sua trajetória dá conta dos anos em que ficou sem gravar, conseqüência direta de suas músicas denunciando preconceitos diversos. Estranhamente, embora toda a relevância e pioneirismo de seu comprometimento político com a questão da homossexualidade e o dinamismo presente no movimento homossexual brasileiro, até o momento não foi possível localizar as mencionadas letras das músicas de Leci Brandão em páginas na Internet.”
Hoje, porém, com alegria, postei lá um comentário:
Vejo que o melhor lugar para esta postagem é aqui, onde procuro registrar, acumular e recuperar a história dessa parte da população brasileira e a sua luta para se tornar pessoas comuns, dignas de respeito e direitos como qualquer dos demais.
Lamentavelmente, não encontrei nem a letra, nem o áudio da música “As pessoas e eles“, do LP “Questão de Gosto“, de 1976. Eis trechos de sua letra: “As pessoas, olham pra eles com ar de reprovação… / As pessoas não entendem porque eles … Simplesmente porque se assumiram …” (Quem lembrar da letra inteira ou quiser disponibilizar o seu áudio, agradeço).
Confira: (suprimi os links para os vídeos com as sonoras das canções, porque foram retirados do youtube)
Ombro amigo
http://www.letras.com.br/leci-brandao/ombro-amigo
Você vive se escondendo
Sempre respondendo
Com certo temor
Eu sei que as pessoas lhe agridem
E até mesmo proibem
Sua forma de amor
E você tem que ir pra boate
* pra bater um papo
* ou desabafar
* e quando a saudade lhe bate
* surge um ombro amigo
* pra você chorar.
La, laia, laia
Laia, ralaiê iê
La, lalaiala, laralalaia, laralalaia.
Num dia sem tal covardia
Você poderá com seu amor sair
Agora ainda não é hora
De você, amigo, poder assumir
Por isso tem que vir pra boate
* refrão…
La, laia, laia
Laia, ralaiê iê
La, lalaiala, laralalaia, laralalaia.
Essa Tal CriaturaLeci Brandão
Tire essa bota / Pisa na terra / Rasgue essa roupa / Mostra teu corpo / Limpa esse rosto / Coma poeira / Seja essa cara / Sinta meu gosto / Morda uma fruta madura, / lamba esse dedo melado / Transa na mais linda loucura, / deixa a vergonha de lado / Corra no campo / Leva um tombo / Rala o joelho / Mata esta sede / Durma na rede / Sonha com a lua / Grita na praça / Picha as paredes / Ama na maior liberdade… abra, escancara esse peito / Clama! Só é linda a verdade, / nua sem ser preconceito / Tire essa fruta / Lamba essa terra / Pisa as paredes / Sinta esse tombo / Rala esse rosto / Transa com a lua / Morda essa cara / Linda, tão nua…/ Faça da vergonha, loucura… / abra, escancara a verdade / E ama essa tal criatura / que envergonhou a cidade
http://www.vagalume.com.br/leci-brandao/essa-tal-criatura.html#ixzz1xLkzGFDs