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Babados da hora

Duas ou três coisas sobre fontes orais

Muito se tem escrito sobre o trabalho com entrevistas – seja no protocolo da história oral, da sociologia ou da antropologia. Na história oral, nos últimos anos, com a ascensão da chamada História Pública entre nós, tem sido cada vez mais marcada a perspectiva horizontal entre pesquisador e entrevistado, a relativa coautoria no conhecimento produzido. Seja qual seja a perspectiva teórica a embasar a produção da fonte oral, uma coisa, porém, precisa ficar estabelecida como questão inegociável: 
– A constituição da fonte oral, a produção de entrevistas, não pode de maneira alguma (repito: de maneira alguma!) significar sofrimento ou prejuízo para quem generosamente doou o seu tempo e o seu trabalho de memória. Tampouco para as pessoas eventualmente referidas no relato. Esse é o ponto sobre o qual não paira qualquer dúvida no campo acadêmico, sendo consenso absoluto. Os comitês eticos dos programas universitários trazem prescrições rígidas sobre isso.
Ainda que se tenha muita vontade de tornar público determinado aspecto do relato, que enquanto pesquisadores entendamos ter enorme relevância para a história, precisamos sempre, na hora em que formos trabalhar com os relatos coletados, proceder ao nosso distanciamento do tema e nos indagar se de alguma maneira ele pode causar dano ou sofrimento a terceiros.
É comum que durante a entrevista oral se crie uma falsa intimidade entre pesquisador e entrevistado. Seja porque o entrevistado esteja num “bom dia”, seja porque se sentiu à vontade com o entrevistador. Não raro o recebe / hospeda em sua própria casa, como a um grande amigo; franqueia o acesso aos seus arquivos, seus guardados íntimos, cede documentos, fotografias…
Há casos inclusive que o entrevistado, pela confiança depositada, delegue ao pesquisador a tarefa de atentar para os aspectos digamos, sensíveis do relato, abrindo mão do direito-dever de ler a entrevista transcrita e, ele mesmo, proceder à revisão. – Em casos assim, a responsabilidade do entrevistador é ainda maior. Maior deve ser o seu esforço de objetivação, porque não conta com a leitura crítica do entrevistado. O pesquisador precisa, assim, se indagar com muito cuidado e distanciamento se algo no relato pode de alguma maneira causar sofrimento ou dano a terceiros; à memória de pessoa já falecida, seus eventuais descendentes… Em caso de dúvida, não hesite em consultar o entrevistado. Partilhe com ele as suas dúvidas. Às vezes, mesmo com o entrevistado liberando a informação, a ética pessoal do pesquisador aconselha a suprimir determinados trechos, de modo a evitar – a todo custo – eventual e involuntário dano moral a terceiros.
Outro aspecto do qual não podemos nos esquecer: Relatos orais são trabalhos de memória. 
– Isso mesmo: trabalho! 
O entrevistado cede a você o seu tempo e empreende um mergulho de volta ao seu passado, à sua trajetória, suas vivências, testemunhos. Ele seleciona e encadeia fatos, descreve, reflete criticamente, elaborando a sua experiência de vida ao tempo em que narra. Isso muitas vezes o coloca em contato com questões sensíveis, delicadas, dolorosas, intensas. E você precisa ter muito tato e respeito quando esses momentos aflorarem; saber respeitar e valorizar a carga de emoções revivida. Ver se é o caso de dar uma parada, oferecer uma água…
O entrevistado generosamente decide que você merece a sua confiança, que o tema de sua pesquisa é relevante e que pode contar com o seu protocolo ético. Isso não está escrito, nem sempre é verbalizado. Mas está implícito. Ainda que ele tenha assinado o Termo de Cessão!

Aliás, não trate o Termo de Cessão como um salvo conduto a partir do qual você se desobriga de suas responsabilidades éticas.

Casos em que pesquisador incentiva o entrevistado ao consumo de bebidas alcóolicas durante a entrevista; se favorece do fato de que o entrevistado, durante a entrevista, espontamente, faz uso de bebida alcóolica; transcreve e publica, no trabalho final (acadêmico!!! aprovado pela banca!!!!) trecho onde determinado entrevistado fala sobre suposta indução de alguém ao suicídio, são práticas abomináveis do ponto de vista ético e não devem encontrar abrigo no cotidiano do pesquisador que se pretende respeitável. Tampouco das instâncias acadêmicas envolvidas (orientador, comitê científico, bancas de qualificação e defesa). Sem falar nos aspectos penais possivelmente envolvidos.
Não trate o entrevistado como mero instrumento do qual você pretende extrair informações para elaborar os seus produtos, satisfazer seus projetos pessoais. 
– Respeite, sempre! Empatia, alteridade, dialogismo, são noções a serem praticadas, vivenciadas. E nunca se esqueça de dar o retorno do trabalho final. 
Não basta no plano do discurso nos colocarmos contra a cultura neoliberal, individualista, competitiva, mercantilista, enquanto, na prática cotidiana, reproduzirmos a mesma lógica.

Precisamos todos trabalhar para a disseminação de boas práticas (éticas) na produção e circulação do conhecimento.


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