Gaúchos na Metrópole à beira-mar*
Por Jandiro Adriano Koch**
Logo que começaram a compartilhar as notícias de um vírus se espalhando a partir da China, várias matérias grifaram a grande circulação de pessoas pelo mundo, tempos em que os meios de transporte levam de cá para lá em uma noite mal dormida, no máximo.

Quando Wuhan foi colocada no meu globo terrestre, coisa nostálgica em tempos de Google Maps, achei estranho ver que tantos brasileiros pediam auxílio do governo para retornar ao país natal. O que faziam por lá? Quando os primeiros casos, na região do Vale do Taquari, interior do Rio Grande do Sul, foram de pessoas que voltaram da Suíça, da Irlanda, também me perguntei como nunca havia me dado conta de que essa gente toda estava por lá.
Minha percepção é um tanto prejudicada ou salva pela vida simples – e feliz – dos meus pais adotivos, dois irmãos que ficaram para cuidar do meu avô materno, talvez solteiros por convicção também. Viagens nunca foram pretensão – exceto uma romaria até o túmulo do Padre Reus (1868-1947), em São Leopoldo, quando eu era criança.
Meus passeios, embora já tenha ido a inúmeros destinos físicos e – nesse momento – esteja com um em suspenso, que a empresa alega só ter como remarcar três dias antes da data agendada, sempre foram mais pelos livros. Agorinha terminei Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20, de Ruy Castro. O texto oportuniza percorrer geografia e tempo. Nenhum avião quebra a barreira do tempo.
Castro lançou tomo semelhante a muitos de sua produção, repleto de personagens, lugares e fatos históricos. Grandes estruturas e pormenores biográficos misturados. Talvez seja pesado para quem não consegue fazer ao menos algumas associações. É um calhamaço – em tempos de Twitterquaisquer duzentas páginas é um assombro – para déjà-vu, aquela coisa de já ouvi falar nesse cara em algum lugar.
Uma das intenções do autor foi demonstrar que, a despeito de termos estudado que a Semana da Arte Moderna, na São Paulo de 1922, foi marco de uma reviravolta cultural brasileira, essa história não foi muito bem contada. O Rio de Janeiro teria feito parte do movimento com a interlocução entre os intelectuais de um e outro lugar. Teria havido a presença de alguns fluminenses em São Paulo. Não teria passado de um espirro – supervalorizado
a posteriori. Mas, mais relevante, o Rio de Janeiro não teria protagonizado evento semelhante, antes, porque era a modernidade em si. Cosmopolita, por que precisaria midiatizar um marco de ruptura com o provincianismo? Isso era para quem vivia no passado.
Autch!
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Álvaro Moreyra |
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Eugênia Brandão |
Preparado para ler sobre personalidades cariocas e/ou fluminenses, logo me dei conta de que a fauna de artistas de vanguarda, de todas as áreas, não era necessariamente nascida no Rio de Janeiro. Do Sul, Castro descreveu ou citou vários atuantes na modernização de lá. O escritor Álvaro Moreyra (1888-1964) ficou em Porto Alegre até 1910. Aqui contribuiu para o Petit Journal e para o Jornal da Manhã. No Rio de Janeiro, casou-se com Eugênia Brandão (1898-1948), uma feminista que veio de Minas Gerais. Mantiveram na sua casa um centro de encontro de diversos intelectuais. Encontrar-se parecia imprescindível – hoje existem home-office, Skype, smartphone e sei lá que tipo de alternativas online. O casal foi mentor do Teatro de Brinquedo, em 1927, em que representavam peças com as ideias consideradas avant-garde para a sociedade carioca.
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Edmundo Bittencourt |
O santa-mariense Edmundo Bittencourt (1866-1943), ainda jovem, migrou com a família para capital gaúcha, onde colaborou com o jornal liberal A Reforma. Depois seguiu para o Sudeste, onde, em 1901, fundou o Correio da Manhã. Eram tempos em que periódicos eram o principal meio de informação – descartada a oralidade informal, óbvio. Bittencourt, ferrenho opositor de vários governos nacionais, arranjou de encrencas, como duelos, até prisões.
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Carlos de Laet |
Por volta dos anos 1910, fora da antena de Ruy Castro, o gaúcho fora processado pelo jornalista e professor Carlos de Laet (1847-1927), a quem acusara de seduzir rapazotes. A homossexualidade levou muito tempo para ser engolida, depois de muita pressão, por qualquer modernidade. Isso apesar da obviedade homossexual de Mário de Andrade (1893-1945), em São Paulo, e de João do Rio (1881-1921), no Rio de Janeiro. Alberto Coelho Barreto, pai de João, por sinal, era gaúcho, nascido em São Leopoldo, em 1854.
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Yolanda Pereira |
Foi pelo jornal carioca A Noite, promotor do concurso de miss, que a pelotense Yolanda Pereira (1910-2001) alcançou o status de Miss Universo. Também desfilam pelo livro o flâneur santa-mariense Felippe D’Oliveira (1890-1933), o rio-grandense Aparício Torelly (1895-1971), e, deslocado temporalmente, o multifacetado Manuel Araújo Porto-Alegre (1806-1879), entre outros. Exceto Porto-Alegre, que faleceu antes, todos sobreviveram à Gripe Espanhola, pandemia que levou uma multidão para fazer festa do outro lado em 1918.
Tudo vai muito bem, até que, em 1930, uma onda de gaúchos invadiu o Rio de Janeiro para empossar Getúlio Vargas (1882-1954). O uruguaianense João Baptista Luzardo (1892-1982) e o porto-alegrense Salgado Filho (1888-1950) logo obtiveram colocações importantes. E viraram os olhos diante da permissividade carioca. Trataram de moralizar a coisa. Focaram nas praias. Criaram regras exigindo roupas comportadas, calções curtos nem pensar. Proibiram falar ou rir alto. No entanto, logo viram, era muito mais fácil amarrar cavalos no obelisco.

Talvez os costumes tenham teimado um pouco mais para quem não saía do Rio Grande do Sul, mental ou fisicamente. Na revista Parêntese, número 13, Ângelo Chemello lembrou de
A ronda dos anjos sensuais (1935), escrita pelo santa-mariense Reynaldo Moura (1900-1965). Em Porto Alegre, cenário do livro e onde o autor vivia, a novela, com pretensões modernas, trazendo à cena a relação lésbica entre Charlote e Neli, foi
esquecida. Paulo Hecker Filho (1926-2005) achou que ainda era necessário escandalizar a gauchada lá pelos anos 1950, quando lançou
Internato (1951), novela em que apresentou uma relação homoafetiva. E assim foi – aos poucos.
Acaso fosse encrencar com a obra de Ruy Castro, que fluiu muito bem junto com chimarrão, perguntaria o que significa modernidade. Nas aulas de História, na Univates, o conceito sempre foi objeto de debate. Despachar os pobres para áreas periféricas para construir avenidas e arranha-céus é ser moderno? Enterrar um gênero artístico para fortalecer outro é ser moderno? Por hora, basta dizer que Metrópole à beira-mar oferta incontáveis vislumbres sobre o Rio de Janeiro da década de 1920 e de adjacências temporais. Resenhar puxando a sardinha para o Rio Grande do Sul é sacrilégio? Mas me fez pensar sobre as fronteiras políticas, linhas inventadas – e de como nos trolam vez em quando. Sugiro.
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*Originalmente publicado em Matinal Jornalismo. Ver
aqui.
**Jandiro, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com quatro livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Na Feira do Livro de 2019, lançou um novo livro, pela Libretos, Babá – Esse depravado negro que amou.