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Babados da hora

Aracy de Almeida: a ousadia de ser

A sexualidade da cantora Aracy de Almeida é assunto que ainda hoje é objeto de especulação. Deve-se a isto o fato de haver ousado divergir ostensivamente do padrão normativo para o gênero feminino. Nascida em 1914 e criada no subúrbio do Encantado, ao lado de irmãos todos do sexo masculino, pode-se atribuir a esse convívio o seu peculiar gosto e estilo de gênero, mais próximos do convencionado ao masculino.
Segundo ela mesma conta, por volta dos catorze, quinze anos já vivia em noitadas e bebendo, chegando na casa dos pais acompanhada de amigos, homens (!), como ela, embriagados. Cantar, assim como frequentar bares e consumir bebidas alcóolicas, principalmente em público, não era em absoluto “coisa de mulher”, ainda menos de mulher direita, de família. E seu pai, Baltazar Teles de Almeida, era evangélico. Como não abrisse mão de seu estilo de ser e de cantar, a Dama da Central terminou por abandonar a casa dos pais.
Aos 24 anos
Em 1932, os dezoito anos, antes da maioridade civil (que na época era de 21), Araca conhece Noel Rosa, que a define como “pitoresca” e a convida para ir até a Taberna da Glória, onde ele faria uma canção para que ela cantasse. Em 1933 diz-se ter inciado a sua carreira profissional, na Rádio Educadora, assinando o seu primeiro contrato em 1936, aos 22 anos. Já havia cantado em colégio protestante, terreiros de macumba e candomblé e escolas de samba. Sem falar nos botequins – da Taberna da Glória à Central do Brasil -, que frequentava com Noel Rosa, conhecendo e interagindo de igual para igual com todos os boêmios da época, de malandros a artistas plásticos, como Miguelzinho da Lapa, Brancura, Di Cavalcanti, Portinari.
No entanto, assim como diz e desdiz seu gosto por cantar, quando perguntada, a Arquiduquesa do Encantado ora diz que gosta de homens (“jogador de futebol”, segundo a própria), ora diz que o homem de seus sonhos “nasceu morto”.
Há quem diga que ela viveu um breve casamento com o goleiro Rei, do Vasco (Joel Santana), havendo também quem diga que ela manteve relacionamento com outros homens. Ela própria, porém, em entrevista no ano de 1979 para o programa Vox Populi, da Tv Cultura, SP, afirma com todas as letras que Rei era apenas seu amigo: “Aquilo é… um… Foi um… Vamos dizer… Ele era amigo meu … Aquele caso do goleiro do Vasco, ele era apenas amigo meu. Eu estava começando naquela época… E não tinha nada a ver, nem estava interessada em casamento… Em nada, sabe? E até hoje eu fiquei solteira só pra ninguém pegar no meu pé” (aqui, aos 40:57).

Nessa mesma entrevista, logo em seguida é exibida a participação de outra pessoa do povo, dessa vez uma mulher, que pergunta porque ela “tem tanto jeito de machona(aos 41:57). E Aracy responde: “É o que eu tô dizendo: – todo mundo anda de calça comprida… Eu não posso andar? É isso aí!” Mais adiante, outra mulher do povo lhe pergunta porque usa calças compridas, se não gosta de vestidos (55:17). Ela responde que, no passado usou “roupa…, muito vestido… que o Denner fez muita roupa pra mim, me apresentei muito vestida de saia”, talvez tendo pretendido dizer roupa feminina. Agora, continua, prefere usar calças compridas, porque é mais cômodo, pois ela é muito “sem modos”. Nesse momento, a câmera dá close em seus calçados, revelando a botina, as calças compridas e, subindo, o colete. Ela prossegue, dizendo que agora tem que usar botas, porque tem “o pé chato” e está muito acima do peso, não podendo mais usar salto alto. O apresentador do programa em seguida indaga a ela se não seria por conta dela usar calças compridas que aquela moça teria “perguntado dos seus hábitos um pouco masculinos” (56:13). Ao que ela responde não saber porque ela disse aquilo. Mas ao final (56:39), conclui: “Eu sei bem do que ela tá se referindo. Mas não é nada disso, não.” Nas imagens disponíveis na internet é possível observar que quando de saias, Aracy usa o chamado terninho, isto é, o paletó feminino, sobrancelhas grossas e cabelo bem curto. 


Rodrigo Faour, pesquisador musical, lhe atribui a bissexualidade, embora não faça referência a nenhum relacionamento dela com mulheres. Acrescenta, porém, detalhes sobre suas vestimentas. Segundo o musicólogo, a Dama do Encantado costumava usar cuecas, em lugar da tradicional calcinha ou biquini. A própria Araca comenta, em depoimento para a televisão, que no Carnaval chegou a se fantasiar de Cauboi… Em outro, declara que detesta os serviços domésticos, preferindo a rua e a madrugada. Sem falar que usualmente empregava palavrões em sua conversa. O que sem dúvida compõe o estereótipo da lésbica, inclusive com a sua voz fanhosa, rouquenha.

Numa época em que a homossexualidade (e, por extensão, a lesbianidade) era considerada imoralidade e doença, capaz de, entre outras, desencadear internações sem volta em instituições psiquiátricas, não me parece absurda a hipótese de que ela fosse mesmo lésbica e, talvez, tal como Cauby Peixoto, se visse obrigada a sublimar os seus desejos. E, por encontrar-se em início de carreira, assim como o Cauby, se viu na contingência de simular um relacionamento heterossexual, talvez para satisfazer à gravadora, ao empresário, ao mercado. Com o tempo, adquirindo confiança, passa a exibir um estilo mais autônomo, como se pode acompanhar através de suas fotografias e vídeos, disponíveis na internet. Como esse aqui, por exemplo:

Referências:

https://www.youtube.com/watch?v=NxVYsHZgfWI
https://www.youtube.com/watch?v=d-yOX595J_k http://www.cantorasdobrasil.com.br/cantoras/aracy_de_almeida.htm https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/25-perguntas-para-a-dama-do-encantado-aracy-de-almeida https://pt.wikipedia.org/wiki/Aracy_de_Almeida
Cauby, começaria tudo outra vez. Documentário. Direção:Nelson Hoineff https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/cinema/documentario-revela-intimidade-de-cauby-peixoto-9ggl956fg5qarfcyd5a585cve/

Créditos das imagens:
https://www.youtube.com/watch?v=m7Nuorfwcio
Aos 24 anos: Revista Carioca, 26 de fevereiro de 1938, obtida de http://bonavides75.blogspot.com/2015/08/aracy-de-almeida-101-anos.html http://radiobatuta.com.br/documentario/aracy-de-almeida-e-coisa-nossa-a-bossa-e-o-veneno-do-samba-em-pessoa/

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