Não, o MHB – Movimento Homossexual Brasileiro não era “unificado”. Haviam disputas, conflitos, teses divergentes – claro, do contrário não seria movimento social, mas seita religiosa.
Cada grupo buscava dentro de suas possibilidades (do que se tem notícia, houve apenas um ativista em tempo integral, que não precisava dividir o seu tempo com atividades laborativas de subsistência), construir algum tipo de ativismo – mesmo que fosse “apenas” a construção da autoconsciência, o que já era, naquele contexto, muita coisa. Recorde-se que eram tempos em que não se dispunham de modelos, de discursos prontos, de conceituações já elaboradas. O silêncio, o isolamento e a invisibilização característicos do lugar de imoralidade e abjeção até então não contestados de forma pública e em primeira pessoa, formavam o contexto cultural – embora os avanços advindos da contracultura, dos movimentos hippie e feminista.
Pode-se dizer que, nesses aspectos gerais – a construção da atividade política na conformidade com os integrantes do grupo e suas possibilidades; e a existência de conflitos e disputas – o MLGBT não difere do MHB. Há, entretanto, em minha percepção, ademais do contexto histórico diverso e das diversas formas de associação, um aspecto que reputo fundamental na diferenciação entre esses dois momentos da luta política de homossexuais (bonecas, viados, bichas, travestis, gueis, lésbicas, bissexuais, transexuais) pelo direito à vida livre de discriminação.
Tratam-se dos valores. A marca dos grupos de militância homossexual surgidos entre fins de 1970 e 1980 era um profundo sentido de frátria. Os grupos, pelos seus componentes, moviam-se – seja em suas relações internas., seja em relação com os outros grupos e com agentes singulares -, pautados pelo sentido de cooperação e solidariedade.
As informações circulavam, a entrada de novos integrantes era estimulada e, mesmo, buscada intensamente – naqueles tempos raríssimas eram aquelas pessoas com condições pessoais (materiais e psicológicas) para administrar os custos das múltiplas estigmatizações que seria alvo a partir desse posicionamento. As ações e posicionamentos ocorriam após discussões democráticas – como tudo nas democracias, cansativo, árduo, porém estimulante. Todos os integrantes do grupo tinham direito a participar das discussões e votar – tivesse acabado de chegar ou fosse o membro fundador, a manifestação possuía o mesmo peso.
Até o surgimento do GGB (1981) e, depois, o do Triângulo Rosa (1985), no Rio de Janeiro – ao que é possível conhecer até o estado presente das pesquisas – os grupos funcionavam como coletivos, sem estrutura hierárquica, sem cargos de direção. Foi a partir do GGB que se materializou a necessidade de uma estrutura formal, com atos de constituição registrados nas instâncias jurídicas. – Era uma maneira de adquirir maior legitimidade no desenvolvimento de suas ações e encaminhamento de sua agenda. No entanto, a essa estrutura formal e hierarquizada não se seguiu nenhum movimento no sentido de obstaculizar a socialização das informações – ao contrário, tanto o GGB quanto o Triângulo Rosa (assim como o Outra Coisa, o GALF, o Auê etc.) exibiam o compromisso com a difusão das ações, o que faziam por meio de seus boletins, não raro acrescidas de outras notícias (livros, movimento internacional, filmes, peças de teatro etc.).
A inclusão, nos boletins, dessas informações de caráter mais amplo é uma característica que pode ser observada ainda naqueles núcleos de sociabilidade de fins da década de 1960 – as chamadas turmas, compostas por bichas e bonecas com suas festas em residências e clubes, com desfiles de transformistas (era assim que se chamava o travestismo ocasional, de caráter artístico ou recreativo), nos moldes dos concursos de misses. Ela se consagra com o Lampião da Esquina, mas segue presente também nesses periódicos de grupos.
Outro traço característico era a ampla e profunda compreensão, por parte da imensa maioria daquela geração de ativistas, de que o movimento deveria, sempre, se manter suprapartidário. Fosse qual fosse a posição ou filiação de seus integrantes, fosse, inclusive, eventual apoio direto de grupo com determinada campanha eleitoral de algum candidato – como se viu no Rio de Janeiro com o Triângulo Rosa, apoiando a campanha de Herbert Daniel a deputado estadual – por decisão da maioria, após discussão entre todos os membros presentes.
Com o advento das associações civis sob o modelo “ong” – quer dizer, substitutas do estado no planejamento e realização de serviços originariamente a seu cargo – o movimento homossexual é inteiramente reformulado. Os fundamentos são outros, outro o horizonte.
Ao invés de se preocupar com a formação de massa crítica, de uma base de apoio que desse sustentação à agenda política – que existia na primeira fase, e que os grupos buscaram realizar e realizaram alguns de seus pontos – a preocupação agora era com a capacitação profissional dos integrantes das Ongs para realizar as atividades decorrentes dos projetos. Apresentar às agências de governo – em seus diversos entes políticos da federação – e ter aprovados projetos implicava (e implica) saber gerir os recursos públicos recebidos e prestar conta dos mesmos, tudo dentro de modelos e normas que integram conjuntos de competências profissionais diversas.
A segunda característica dessa segunda geração decorre desse modelo. Na medida em que a razão de ser das associações de homossexuais passa a ser a prestação de serviços profissionais de caráter público em substituição ao estado, sua existência depende total e completamente de seus financiadores. Nos primeiros anos da década de 1990 ainda era possível obter recursos através das agências internacionais. Com o passar dos anos, as fontes internacionais deixaram de prover o financiamento das ações, em sua maioria educativas – de prevenção às DSTs, notadamente ao HIV, e de capacitação, formando agentes que atuavam como replicadores das informações – mas também políticas, vez que possibilitavam a reunião, a conscientização da cidadania e de sua luta, e a formação de redes, visando o enfrentamento da vulnerabilização característica do segmento. Era uma politização frágil, porque dentro de nosso tradicional modelo dependente, dócil, fomentador da ancestral relação clientelista (favor & gratidão).
As Ongs constituintes daquilo que ainda hoje é chamado de movimento LGBT passaram a depender cada vez mais de financiamentos governamentais para a continuidade de seus projetos (ademais da atuação no combate ao HIV e às demais DSTs, relevantes trabalhos de conscientização, atendimentos jurídico, social e psicológico). O que significa dizer cada vez menos tempo para se pensar em planejamento político e estratégico de um movimento social. Os serviços prestados não eram vistos nem recebidos como serviços públicos estatais, dotados das suas características essenciais – universalidade, imp
essoalidade. Antes, impregnados de uma visão messiânica, heróica que, necessariamente, tende a fomentar – e mesmo exigir – a contrapartida da gratidão, do “reconhecimento”, da permanência do status servil em última análise. Antítese da autonomia, da independência, essenciais aos agentes sociais.
essoalidade. Antes, impregnados de uma visão messiânica, heróica que, necessariamente, tende a fomentar – e mesmo exigir – a contrapartida da gratidão, do “reconhecimento”, da permanência do status servil em última análise. Antítese da autonomia, da independência, essenciais aos agentes sociais.
O último golpe veio através da instalação do governo do “companheiro” Lula. Com o PT na Presidência do Executivo Federal, o bloco hegemônico do movimento (formado essencialmente por petistas militantes) atrelou a agenda do movimento à nova agenda do partido e aos compromissos decorrentes de sua aliança com o espectro mais conservador e reacionário do espectro político nacional. Sua função, como cadeia de transmissão do novo PT, é agora não tanto ampliar a participação nas discussões sobre os interesses do segmento, mas defender o projeto político em execução pelo presidente operário.
Se é verdade que essa movimentação política realizada sob o modelo Ong conseguiu a capilarização das Paradas, esses contingentes de visibilidade massiva exibidos não representaram nem representam a construção de base política, de massa crítica, consciente, comprometida, capaz de dar sustentação à luta pela implementação da agenda de reivindicações do movimento. A própria agenda deixou de ser construida coletivamente.
Os Encontros Nacionais do Povo Gay (ou de LGBTs) – instância a mais democrática do movimento, vez que garantia a participação integral de tantos que desejassem, independentemente de filiação a grupo ou ongs – deixaram de ser convocados. Não era mais prioritária a ampliação da participação e das discussões. O grande espaço de diálogo e revitalização que eram os Encontros Nacionais de LGBTs – pois neses participavam grupos e ativistas não coletivizados – torna-se mesmo inoportuno, na medida em que o bloco de poder é constituído exclusivamente por ongs afiliadas a uma única entidade nacional. Ficam de fora, sem direito a fala, escuta e voto, os e as ativistas individuais, os e as integrantes do movimento estudantil que sejam também integrantes de outras agremiações partidárias que não o PT, bem como os e as integrantes do movimento indical que não sejam petistas. O empobrecimento político dessa linha de ação é extremamente deletério.
Ao invés da ampliação e do fortalecimento das bases, tem-se os consensos tirados por cima, exclusivamente por petistas. Assim foi com a proposta, por parte do Mandato de Marta Suplicy, de apresentação do projeto de lei da parceria civil registrada e com todos os que se seguiram.
Foi somente no embate contra os acordos espúrios (porque sem legitimidade, não-democráticos) entre Marta Suplicy, o bloco parlamentar fundamentalista cristão e a ABGLT, em dezembro de 2011, que as vozes de oposição a essa movimentação LGBT estruturada em Ongs petistas adquiriram densidade e volume suficientes para se fazer chegar aos setores hegemônicos – leia-se ABGLT, suas afiliadas e governo – as suas críticas, o seu repúdio aos modos de encaminhamento da questão, aos elementos da interlocução e às propostas apresentadas, sem falar no direito à informação, elemento basilar de todo movimento social e de representação política.
Essa massa crítica, comprometida, porém dispersa – antes completamente ignorada, desqualificada e silenciada pelo bloco hegemônico -, passara a contar com os veículos das mídias e redes virtuais, com os seus conteúdos informacionais amplos, atualizados, diversos e providos com visões de especialistas (direito constitucional, processo legislativo, sociologia, ciência política etc.). Tinham agora a possibilidade de assistir e participar de debates relevantes sobre a sua cidadania e estabelecer vínculos, ampliando seus contatos e integrando as atividades organizadas virtualmente (manifestações públicas presenciais e virtuais, campanhas de envio de mensagens a parlamentares e gestores políticos, petições etc..
Uma outra conquista significativa se deu nesse novo tabuleiro das lutas pela isonomia entre LGBTs e heterossexuais. Foi a conquista do mandato de deputado federal por um homossexual assumido (Jean Wyllys) e não alinhado ao PT (PSOL-RJ). A capacidade dialógica desse parlamentar, a sua determinada e clara posição em defesa da efetividade do princípio constitucional da separação entre estado e religião, dos princípios constitucionais da não discriminação, da igualdade de todos e da promoção do bem comum, tem contribuido para aumentar o volume das vozes descontentes com esse modelo de movimento social e com esse modelo de exercício da política por parte do PT, além de desempenhar uma função pedagógica de esclarecimento sobre conceitos fundamentais para o entendimento, a luta e a conquista da cidadania.
Pode-se dizer que esse conjunto de acontecimentos, aliado ao desencanto e inconformismo por parte do bloco hegemônico, com a desqualificação pública promovida pela Presidente Dilma às reivindicações por instrumentos efetivos de combate à homo e transfobia, e à própria ABGLT, estão a inaugurar uma nova fase à luta de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais pelo direito a uma vida livre de desqualificações, violências e negativa de direitos.