Está em curso o processo de avaliação do Brasil pelos estados-membros da ONU, através do mecanismo da Revisão Periódica Universal. É a segunda vez que o país participa dessa instância e pela primeira vez é apresentada uma Recomendação a respeito dos direitos humanos das pessoas LGBT. Foi formulada pela Finlândia, a partir da ação daqueles ativistas. O país tem até setembro para se posicionar sobre as recomendações que lhe foram formuladas, declarar quais aceita e, a partir daí, trabalhar para a sua implementação. É tempo para as ações da sociedade civil, para pressionar o governo pela sua aceitação. Mas não é em absoluto a entidade nacional quem lidera a convocação.
O portal do Movimento Nacional dos Direitos Humanos registra que, por ocasião de apresentação dessa proposta (em 2003), criou-se uma coalisão de grupos LGBTs e de direitos humanos, com a finalidade de apoiar a iniciativa pioneira do Brasil e tentar a aprovação daquela proposta inédita. Mesmo após a retirada da proposta (em 2005), “muitas ações continuaram sendo feitas buscando criar musculatura na região e envolvendo outros países na América Latina“, informa o MNDH (negrito de minha autoria).
cendentes das vítimas da homo e transfobia parece que não exercia impacto suficiente entre os ativistas hegemônicos. Eu diria que havia mesmo uma rejeição ostensiva a este tema.
Sobre essa Revisão em curso pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, também não se vê nenhuma informação na página oficial da ABGLT. Convocação para que se manifestem junto ao Legislativo e Executivo solicitando o acatamento das Recomendações da Finlândia? Nem pensar! Afinal, trata-se de uma entidade associativa nacional formada unica e exclusivamente por associações civis juridicamente constituídas (Ongs), não tem porque se comunicar com pessoas individualmente consideradas, não integrantes de alguma de suas afiliadas – ainda que aceite e represente o papel de falar na esfera pública (e política!) enquanto Representante do Movimento LGBT nacional.
O “público-alvo” substituíra o cidadão, o ator social, o fim último da existência de qualquer movimento social.
É uma geração de ativistas que se ufanava em afirmar que não lhes interessava quantidade, mas qualidade: não era “qualquer um” GLBT que merecia o direito à interlocução – estrabismo que ainda se verifica presente nos dias atuais -, mas apenas pessoas “qualificadas” (?), seja lá o que queira significar. (Adesão acrítica à práxis implantada?)
Dialogar, informar, esclarecer, debater, prestar contas, pra que?, se a lógica é/era empresarial? Filhos do modelo onguista, onde público-alvo é cliente, ou seja, mero fruidor de serviços prestados por pessoas magnânimas, altruístas, dignas de toda a reverência e gratidão eterna, numa atualização dos antigos filantropos, não há que se pensar em críticas e cobranças de parte de cidadãos autônomos, reflexivos, ciosos de seu papel histórico e de sua força. Há apenas a dócil e côncava geléia de agradecidos indigentes políticos, agora feitos usuários de serviços ofertados como favores.
O “advocacy” (- Como gostam de importar mecanica e orgulhosamente estrangeirismos!) é coisa de profissionais, intelectuais, gente muito bem qualificada; nada que o comum dos mortais possa participar, discutir sobre ações, métodos, táticas e estratégias. Onde já se viu imaginar possível promover amplas discussões sobre os rumos do movimento social LGBT? Sua agenda, pauta de prioridades, leque de ações e concertações? – Tá delirando? Isso aqui não é uma democracia! Tratam-se de empresas civis sem fins lucrativos, entidades jurídicas com finalidade de execução de serviços diversos – seja no campo da prevenção, informação de DSTs, seja no campo da realização de ações de “advocacy” e/ou consultorias. E como empresas, apenas tem o dever de dialogar com seus integrantes e membros da rede. Não, “integrantes” não são aqueles que frequentam os grupos. Esses são o “público-alvo”, os usuários dos serviços prestados. “Integrantes” são os membros da Diretoria, seus suplentes e associados quites com as mensalidades (Oi?) e com frequência comprovada no Livro de Presenças às AGO e AGE (- Quando o livro desaparece misteriosamente? Ah, não complica, vá!)
Essa foi a tônica predominante entre os ativistas LGBT hegemônicos até o advento de maio de 2011. Foi quando a Presidenta Dilma, ungida pela confiança absoluta dos ativistas hegemônicos, manifestou publicamente sua decisão de censurar o material paradidático do programa Escola sem Homofobia – elaborado e avaliado por especialistas, dos quais obteve aprovação técnica – e declarou que o seu governo não faria “propaganda de opção sexual”. Como se já não bastasse a divulgação da notícia de que nesse governo não haveria verbas para os financiamentos dos projetos até então tocados pelas ongs – Advocacy, Aliadas…? – O contexto mundial era de grave crise e o Brasil precisava reconfigurar suas finanças.
A partir daí constata-se uma verdadeira metamorfose: Sugestões, propostas, alianças, agora são explicitamente solicitadas aos ditos “ativistas individuais” ou “autônomos”. A justificativa é a conjuntura fortemente reacionária, conservadora. Dilma, a Presidenta ungida de ontem, agora já é vista com certo distanciamento realista. Chegam a considerar a possibilidade de realizar algum protestos ao seu eloquente silêncio.
Data de 1878, de autoria de Louis Couty, médico frances defensor da escravidão nacional como um bem aos africanos, Regente da cadeira de Biologia Aplicada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a afirmação desveladora: “O Brasil não tem povo [pois] em nenhuma parte se acharão massas de eleitores sabendo pensar e votar, capazes de impor ao governo uma direção definida” (No seu livro L’esclavage au Brésil).
Lima Barreto, o escritor fluminense nascido precisamente no ano em que Couty publicara esse livro, complementa, explicitando, em 1911 (Triste fim de Policarpo Quaresma): “O Brasil não tem povo, tem público”.
Há quem nos dias correntes busque atualizar a assertiva: O Brasil não tem povo, só espectadores. E a esses, só cabe aplaudir. Esquecem que ainda nos anos setenta do século passado Gonzaguinha dava visibilidade a essa alegada característica nacional (“a platéia ainda aplaude ainda pede bis / a platéia só deseja ser feliz” – Pois é Seu Zé).
– Até quando?!
Não eternamente
Com o advento das redes virtuais e a maior acessibilidade à internet, porém, tornou-se possível a reunião de pessoas contrárias a essa forma de atuar da principal entidade LGBT nacional. De sua reunião e troca de ideias, não demorou muito para que passassem à ação. A primeira que tive notícia foi uma manifestação noturna na Avenida Paulista, com velas acesas, organizada através do Orkut pela comunidade Homofobia Já Era. Protestavam contra as reiteradas agressões naquela principal via pública paulistana.
Com o passar do tempo essa legião de não representados vai engrossando na busca por se fazer ouvir e interferir concretamente na política nacio
nal, expressando sua indignação e revolta diante da paralisia do Congresso, da ilegitimidade dos hegemônicos, do avanço dos fundamentalistas sobre o governo e o estado e da inércia nacional diante dos reiterados e cada vez mais frequentes ataques homofóbicos – agora atingindo até heterossexuais.
Começam a contabilizar vitórias. Suas ações vão no sentido de furar o bloqueio da mídia grande na não divulgação de temas que lhes sejam do interesse (com a edição de blogs e portais de conteúdo informativo sobre projetos de leis, atividades de parlamentares, ministros, chefe do Executivo etc.), até a promoção e realização de campanhas de protesto – presenciais e virtuais; dotadas de capacidade efetiva de transformações na conjuntura.
No meio desse percurso surge uma autêntica liderança política. Eleita por votos que não os seus diretamente, vem se revelando um extraordinário parlamentar – capaz, dotado de capacidade para o diálogo e o posicionamento firme, de quem não está para migalhas e sobras, vem realizando função pedagógica absolutamente necessária, esclarecendo conceitos e institutos, desmascarando manipulações. A sua entrada em cena, sobretudo por vir de um partido oposicionista saido das entranhas daquele dos hegemônicos, fez mover-se o tabuleiro. Imprimiu outro ritmo a quem não tinha opositores com visibilidade e capacidade de ação na cena política.
Esses novos atores testam o tamanho de suas pernas, a densidade de seus músculos e ossos, o tamanho e a solidez de suas redes. Mas principalmente sabem o que querem, o que tem direito: a vida digna, livre de discriminações, em isonomia de direitos. Nem menos nem mais.
Passo a passo, ações após ações, seguem no lento e tenaz aprendizado da democracia, do fazer-se agentes de sua própria história. De cabeça e coluna eretas, contudo.
– Evoé! É tempo de povo, enfim!
(Atualizado em 06/08/2012, às 22h08)