Remonta ao ano de 1956 os registros disponíveis sobre iniciativas de mobilização de parcelas desse segmento da sociedade brasileira pelo direito de viver em paz. Pelo direito à não-discriminação. Pelo direito à vida digna, em última palavra.
É de Minas Gerais que os jornais noticiam, entre 1956 e 1966, movimentações de “degenerados”, “introvertidos” e “mocinhas masculinizadas” de Belo Horizonte, em sua maioria frequentadores da praça existente no interior do Parque Municipal, para organizar uma associação.
Em 1966 tais notícias se fazem acompanhar do nome daquilo que os jornais chamam de clube – Libertados do Amor.
Segundo informa o Diário de Minas, o objetivo da agremiação seria encaminhar ao governador um “memorial, implorando um pouco de complacência dos homens do governo aos problemas da “classe”, à semelhança da associação de homossexuais sediada em Amsterdã, Holanda, que solicitou à ONU “um exame, sem preconceitos”, da questão homossexual, no sentido de “que os homossexuais sejam considerados seres humanos normais que contudo externam suas paixões de maneira distinta”.
Em janeiro de 1968 a notícia retorna ao jornal. O Diário de Minas anuncia que “os costureiros e figurinistas da praça alugaram uma casa, bolaram os estatutos, registraram o clube, e já se reúnem diariamente para a defesa de sua classe.
Se acaso considerarmos não factíveis tais notícias vindas através dos jornais de Belo Horizonte, havemos ao menos de considerar a latência expressa por meio de um artigo de Carlos Figari, de O Snob, do Rio de Janeiro, em março de 1969.
Através de um texto intitulado “Protesto”, Figari imagina uma manifestação massiva em Brasília, reivindicando os “direitos civis da boneca brasileira”, com faixas em letras góticas, com dizeres entre outros: “Abaixo Padilha – Viva Rogéria!”
Ou, de forma muito mais incisiva, no mesmo jornalzinho, em sua página 48:
A fase é de politizar culturalmente. […] o que nos leva a todos nessa projeção é um ideal comum de humanos a humanos mostrar que nos insurgimos contra uma marginalização que procuram nos impor que o homossexualismo seja apenas uma fome escusa e degradantes de vielas noturnas, ou de luzes coloridas sob o burlesco fantasioso dos palcos de teatros onde alguns travestidos lantejoulam sua realidade, ou de um comportamento sexual exótico, ou ainda uma passividade mórbida (O Snob, nº 1, 1969 apud COSTA, 2010, p. 48).
Em julho de 1972, época em que se vivia no Brasil o auge da Censura, em Belo Horizonte, MG, e em São Paulo, Capital, Édson Nunes dá início ao seu ativismo possível.
Pela via da organização de Simpósios de Debates sobre o Homossexualismo, Édson busca por intermédio das falas de “autoridades” – religiosos, médico e psiquiatra -, ao seu modo e segundo aquilo que estava ao seu alcance, a vocalização por parte de especialistas e demais autores de discursos de verdade, uma representação menos desqualificadora, mais humanitária, mais integrativa a respeito da homossexualidade.
Lamentavelmente, porém, como era de se esperar, na grande imprensa, nos periódicos de circulação nacional, os jornalistas preferiram se prestar ao papel de selecionar as falas produzidas no Simpósio e noticiar os eventos somente através daquelas que expressavam os pontos de vista mais conservadores. Curiosamente, foram os jornais locais aqueles que cuidaram de dar uma cobertura mais fidedigna aos eventos.
Assim, no dia dezesseis, um domingo, o jornal Estado de Minas notícia o simpósio belorizontino. Embora o título e seção no interior da matéria apontem para um enfoque supostamente mais conservador, reforçando as vigentes representações desqualificadoras, o conteúdo do texto caminha em sentido oposto. Após referir a opinião do Psiquiatra Paulo Saraiva, que mencionara a existência de muitas correntes explicativas, elenca os diversos palestrantes no evento, todos com opiniões relativamente favoráveis. A primeira após Saraiva diz: “E Joaquim Afonso Moretzsohn, diretor da Clínica Pinel, completa: – Em muitos casos, a cura não é mudar o comportamento da pessoa, mas conduzi-la à sua própria aceitação.” O último cujas opiniões são citadas na matéria, “o pastor Márcio Moreira, da II Igreja Presbiteriana” afirma que “o homossexual é digno da graça de Deus e do amor do próximo, para que ele possa se reencontrar no plano da criação. Quando falham os recursos científicos, interfere a graça divina” (Estado de Minas, 16/07/72, p. 11).
Ainda para o mesmo ano de 1972, o antropólogo, professor, ativista e pesquisador Luiz Mott também fez menção à existência de registros sobre “um frustrado congresso de homossexuais de Caruaru, no sertão nordestino”, anteriormente a esses simpósios de Belo Horizonte (MOTT, 2007). O etnólogo traz transcrições de matérias publicadas em três dias diferentes no jornal Tribuna da Bahia (13/4/72, 5/5/72 e 6/5/72). Trata-se de um Congresso a ser realizado no dia nove de junho de 1972
, na cidade de Caruaru, PE, para discutir a homossexualidade. O evento, que estaria sendo organizado pelo padre Henrique Monteiro, a Igreja Ortodoxa Italiana, terminou por produzir grande “celeuma” na cidade.
Mott, em agosto de 2007, na lista de discussão virtual onde trouxe a transcrição dessa notícia, logo chamou a atenção para o conteúdo da fala de Daniele, constante na matéria publicada no dia cinco de maio.
O texto da matéria do Tribuna da Bahia, porém, se refere à Daniele como “uma boneca que desmunheca a todo instante. A sua figura é uma agressão.”
Conferindo o conteúdo da fala de Daniele, no entanto, percebe-se o seu nível de consciência política e de informação a respeito do movimento Gay estadunidense. A sua análise estrutural e conjuntural é digna de nota, a merecer boas meditações por parte de muitos ativistas atuais, que se arvoram em oráculos:
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Daniele, a travesti ativista de 1972 |
Não seria um Gay Power nos moldes das organizações americanas e da Europa, onde a reação à homossexualidade é mais declarada e mais violenta a reação. No campo do trabalho estamos marginalizados, somos apenas cabeleireiros, costureiros ou artistas. A nossa sexualidade é um estigma; se não a encobrimos somos reprimidos. E mesmo no Brasil, vejo um agregamento de homossexuais neste sentido como mais uma coisa viável. Não imediatamente, mas alguns passos já pode[m] ser dado[s] nesta direção. Na Bahia, no Rio e São Paulo e em centro[s] maiores. […]
Nos acusam de só pensar em sexo – claro, reprimidos na nossa sexualidade, de certo modo isto tem fundamento – é o nosso estigma. A formação de grupos é seriamente afetada pela necessidade do homossexual de se encobrir, pressionado por fatores culturais. Mas [os] grupos dos que tem coragem de assumir já está [sic] crescendo e estes grupos na Bahia já são um fato. E estes grupos já vem forçando a aceitação dos homossexuais ou em algumas áreas em que é forçoso agir. Educação sexual dado nas escolas é um problema sério. Isto por causa de pessoas preconceituosas e mal capacitadas que divulgam idéias erradas sobre o homossexualismo. “Esta é uma doença séria que precisa ser evitada a todo custo” – é assim que encaram o problema. Outra coisa no programa dos homossexuais que começam a se organizar é a assistência social dos homossexuais. Com médicos, psicólogos, etc. Esta assistência teria o papel também de amparar o jovem expulso de casa, procurar mercado de trabalho etc.
O conteúdo de sua fala surpreende, igualmente, ao apresentar tópicos do “programa” reivindicativo “dos homossexuais que começam a se organizar”: a inserção da educação sexual nas escolas; programas de acolhimento aos que foram expulsos de casa; de assistência social, com serviços médicos e psicológicos; e de inserção no mercado de trabalho.
Tais temas, como se vê, são tópicos de uma agenda política que apenas com o Programa Brasil sem Homofobia, em 2004 e as Conferências Nacionais de Políticas Públicas para pessoas LGBTs (2008 e 2011), os movimentos LGBTs foram capazes de sistematizar e buscar concentrar esforços para a sua implementação, ainda hoje não conquistada na maioria de seus tópicos.
A fala de Daniele surpreendente ainda mais pelo fato dela viver numa cidade do interior do Nordeste, a 135 quilômetros de Recife, a capital de Pernambuco. E numa época em que a circulação de informação se fazia de forma bem mais difícil e lenta e sob um regime de governo extremamente totalitário e censório. Sem falar no contexto político daquele período do regime ditatorial. Afinal, fazia apenas cinco meses que Lamarca e Barreto haviam sido assassinados pelos militares no sertão da Bahia (dezembro de 1971) e a censura atravessava o seu momento mais agudo.
Para transmitir um pouco a ideia daqueles anos, a homossexualidade, a questão racial e social eram os três temas expressamente proibidos de ser abordados pelas emissoras de televisão. O nível da censura era de tal monta a ponto de se proibir expressamente figuras públicas dotadas de estilo de gênero tido como efeminado de aparecerem em emissoras de televisão – como foi o caso do costureiro Denner.
Em 1977, o jornal artesanal Gente Gay, editado por Agildo Guimarães, no Rio de Janeiro. traz na página treze um artigo do editor no qual, por ocasião da eleição para vereadores, ele chama a atenção para a necessidade de os homossexuais terem representação parlamentar, “a fim de defender nossas cousas e pessoas”.
No primeiro encontro dos grupos de militância, ocorrido no Rio de Janeiro, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em dezembro de 1979, as discussões trazidas giravam em torno de um trabalho de combate à violência contra as mulheres, contra a reprodução dos papéis de gênero, como apresentado pelo Grupo Lésbico-Feminista; a questão carcerári
a, trazida e já trabalhada pelo grupo Beijo Livre / Brasília; a liberação sexual da população em geral.
Dentre as propostas apresentadas, Marcelo, do Grupo Auê / RJ,
“pediu que se iniciasse uma campanha para obter uma pequena alteração no Capítulo da Constituição Federal em que se proibe a discriminação por sexo, para que passasse a figurar por opção sexual; e que se abrisse a luta para que o homossexualismo deixasse de ser catalogado no capítulo das ‘doenças mentais'”. (Negritos do original. Lampião da Esquina, janeiro de 1980, nº 20)
Essas duas propostas, endossadas nos encontros subsequentes, terminarão implementadas pelos ativistas da primeira geração.
A luta no Congresso Constituinte pelo direito à não-discriminação será levada pelo bacharel em Direito João Antônio Mascarenhas, do grupo carioca Triângulo Rosa. Ali, o Movimento vê a sua demanda contemplada no 1º e 2º Substitutivo da Comissão de Sistematização – vez que, embora não trouxesse a expressão “orientação sexual”, fixava expressamente como crime inafiançável toda e qualquer modalidade de “discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, sendo formas de discriminação, entre outras, subestimar, estereotipar ou degradar pessoas por pertencer a grupos étnicos ou de cor, por palavras, imagens ou representações, em qualquer meio de comunicação” – art. 5º.
No entanto, esse texto termina modificado ao final, garantindo-se apenas uma proteção “meia boca”, na medida em que mantém a proibição de discriminar, independentemente do motivo, e determina que “a lei [complementar] punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI, artigo 5º).
Mas para o que interessa aqui – a comprovação de que tanto os proto-ativistas quanto o Movimento Homossexual Brasileiro sempre se posicionaram reivindicando de forma prioritária o direito à vida digna, vale dizer, à vida sem desqualificação, o que implica na reivindicação do direito humano elementar que é o direito ao reconhecimento sociojurídico – a luta dera resultado. Pois, ainda que não obtivesse imediatamente a classificação do delito (crime hediondo), mantinha a vedação de toda e qualquer modalidade de discriminação, independentemente do motivo e remetia para a legislação complementar o dever de fixar a respectiva sanção, sem a qual nenhuma norma proibitiva tem eficácia.
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**Agradeço aos professores e pesquisadores Luiz Morando e Luiz Mott a socialização das fontes sobre o ativismo de Édson Nunes, o proto-ativismo belorizontino e pernambucano.
*A prática da polícia de deter “pederastas”, “bonecas” e “bichas” ao que parece era disseminada pelo país, presumindo-se houvesse adesão por parte das camadas médias e populares, vez que era prática noticiada à maneira de um “justiçamento”, muito comum pelos jornais populares: “Quatro homossexuais, ‘cláudia’, maysa’, ‘marcela’ e ‘anita’ foram presas com a sua senhoria [mesmo a polícia sabendo que elas não tinham nada a ver com o tráfico praticado pela senhoria], e após fazerem a limpeza da delegacia, liberados.” (Negritos de minha autoria.). Cf. jornal Tribuna da Bahia, 10/03/1972, em transcrição realizada por Huides Cunha, quando Coordenador do GGB, e gentilmente cedida por Luiz Mott.