A frase que dá título a esta postagem é de autoria da historiadora Dinah Lemos, de Santa Catarina. É uma das que vem lutando bravamente pela preservação das fontes documentais no âmbito da Justiça do Trabalho. A frase é de um seu artigo, intitulado O Caso Jesus José e outros: valores, sentidos e sentimentos na preservação da memória do Estado brasileiro, publicado no livro A Construção da Memória Política, organizado por Elias Medeiros Vieira e Naiara dal Molin, editado pela Universidade Federal de Pelotas, em 2012.
Nele, Dinah aborda a inadiável questão que precisa ser enfrentada pelo conjunto da sociedade nacional e, em particular, pelos historiadores e pelas historiadoras, tão alijados da política nacional de descarte de arquivos e, em especial, de descarte de autos findos de processos judiciais e administrativos, em curso no país e tratada enquanto item estratégico na gestão administrativa do Judiciário:
“Qual seria uma possível hierarquia de importância dos documentos findos para fins de preservação da memória do objeto ‘Justiça do trabalho no Brasil’ [diz ela, eu digo do judiciário no Brasil], supondo que a não hierarquização e seleção de dados condenaria o objeto à perda da memória pelo excesso posto no sentido da tendência ao absoluto e, portanto, ao encontro da falta?”
“O assunto da seleção da memória se impõe.”
A pergunta sobre uma eventual hierarquia para preservação é certamente uma pergunta que nenhum historiador gostaria de se ver confrontado. Para o historiador, responder uma tal pergunta equivale a um médico, nas emergências insanas e cruéis dos hospitais públicos, ter que fazer escolha sobre quem merece viver e quem não, porque não se tem recursos minimamente suficiantes para dar o adequado e urgente tratamento a todos aqueles que demandam.
Entretanto, é preciso enfrentá-la. A política nacional de destruição de fontes documentais públicas (porque foram produzidas pelo estado e porque é o cidadão o seu destinatário e senhor e não a instituição que a produziu, como equivocadamente muitos gestores acreditam) está em curso.
A administração pública, premida por questões como espaço, peso, implicações que advem do acúmulo de tanto papel sem as necessárias e ideais condições de armazenamento e triagem, alega falta de recursos, impossibilidade de dar-lhe o tratamento adequado. Ele as estorva. São “montanhas” e mais “montanhas” de papéis empilhados por anos e anos e que agora, por força de sua elevação à categoria de questão estratégica, precisam ser eliminados. – Mas como encetar essa tarefa de seleção, diante de um tal volume de documentos? quantas pessoas seriam necessárias? Em quanto tempo?
Os historiadores, preocupados, apreensivos, certos de que estamos perdendo muito de nossa história.
A administração volta o seu olhar para o cumprimento de metas estratégicas de gestão. O que significa dizer que quanto mais acervo documental destruir, mais demonstrará estar bem gerindo a coisa pública (!)
Retornando à historiadora, ela complementa: “Quando é necessário responder urgentemente uma pergunta, precisamos, em primeiro lugar, verificar se a pergunta está correta.”
Os historiadores se interrogam sobre como construir uma interlocução cooperativa com a administração pública em suas diversas instâncias, de modo a integrar-se nesse processo.
Eu, em minha perspectiva, penso a instituição de uma tal política nacional deveria ter sido precedida por ampla discussão, envolvendo e integrando os atores mais diretamente capacitados e interessados – os historiadores, além dos arquivistas.
Mas não foi. Não foi e as fontes seguem diariamente sendo descartadas em todas as instituições públicas do país. Notadamente no Judiciário, por força de recente decisão do CNJ dinamizando essa prática enquanto meta estratégica de gestão que faz com que, consequentemente, se deva exibir produtividade constante, reiterada.
Então a pergunta retorna, como um mal assombro: – Como fazer a triagem? Quais parâmetros? Quem? Com que número de componentes se pode contar nessa tarefa? Como capacitá-los, assegurando-se de que tenham envolvimento com a tarefa, não a vindo cumprir de forma mecânica e alienada? Como remunerá-los? A simples tabela de temporalidade não traz garantia de nada…
É preciso então encontrarmos uma solução concertada para a questão. E ela passa inescapavelmente pela necessidade de que os gestores consigam compreender a necessidade vital de se garantir a presença de historiadores nas Comissões de Avaliação. Passa, por igual, no desafio de o CNJ se abrir para ouvir a comunidade dos historiadores, através de sua Associação Nacional, a Anpuh. Se abrir para ouvir o outro, o outro saber, um outro domínio que lhe escapa, mas que não pode continuar a ter a sua expertise ausente desse processo.
Somente através da predisposição para a abertura ao diálogo com o outro, aquele desconhecido que domina um saber que não dominamos (e cada uma dessas partes e o outro de si), que fala um “idioma” que nos é desconhecido, é que será possível pensar propostas de soluções.
Muita coisa pode ser feita (e as futuras gerações necessitam que consigamos fazer). Entre elas, a proposta formulada pela Dinah, a de que, nos processos que vierem a ser tombados, haja um tipo de classificação quanto ao seu conteúdo, ao tema que versa – e não simplesmente a catalogação de cunho processual. Com esta simples modificação se garantiria que as fontes que estão sendo constituídas já permitam a sua catalogação na origem, de início.
Uma outra proposta é a possibilidade de se utilizar os estudantes de história, como integrantes das comissões de seleção, por meio de convênios com as Instituições Universitárias – sabe-se que em algumas comarcas isto está sendo feito.
Uma outra, ainda, é a constituição de fundos temáticos, como por exemplo, a questão da luta das pessoas LGBTTs pela cidadania; a luta das concubinas pelo reconhecimento de seus direitos à meação do patrimônio construído na constância da sociedade conjugal; as lutas das mulheres contra a violência de gênero; as lutas pela questão da terra e da moradia; as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras contra o assédio moral e sexual…
– Nesse processo, poder-se-ia contar com a colaboração da comunidade de pesquisadores envolvidos com esses temas, seus núcleos e institutos de pesquisas, de modo a se pensar democraticamente soluções para a sua guarda, restauro, acesso etc.
A única coisa que absolutamente não pode ser feita é continuarmos assistindo os gestores do Judiciário utilizarem suas energias para contínua destruição das fontes materiais de nossa história, sem a garantia da ampla participação da comunidade dos historiadores, e se ufanando de estarem a cumprir com zelo e denodo a meta estratégica da administração pública nacional.
Como disse Dinah, “Eu sou responsável pelas provas de minha história”. Não à toa, recorda-nos a historiadora, tantos morrem precisamente retornando ao lugar de onde saíram em meio a uma calamidade, precisamente para buscar os seus documentos, as fontes materiais de sua história.