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Babados da hora

As Meninas Caetanas: A Inteligência Social das Travestis em Reinventar suas Vidas

As pesquisas sobre a história da resistência, cultura, redes de apoio e formas de viver, de travestis, transexuais, gays, lésbicas e bissexuais, em nosso país, são ainda incipientes.

Ainda é muito pouco o que sabemos sobre os modos através dos quais travestis e transexuais, por exemplo, constroem suas formas de resistência em contexto sociocultural onde a heterossexualidade é a norma e o desvio, punido com a estigmatização, o espancamento, quando não a morte.

A partir da descoberta de que a direção do desejo e o som íntimo da própria identidade de gênero não estão de acordo com o padrão idealizado e tornado lei inexorável, o caminho que lhes é destinado, através das margens estreitas da sociedade civilizada, é o lugar de pária, de abjeto, escória, lixo.

Anormais, criminosos, escandalosos, “barraqueiras”, viciadas – essa é a associação comumente feita. Essas são as representações que lhes colam à cara e tudo fazem para que elas não se afastem um milímetro desse conteúdo. Como se nada mais existisse para além dessas contingências; como se fossem elas as únicas responsáveis pelas escolhas que foram levadas a trilhar; como se as determinações socioculturais e econômicas não tivesse nenhum papel nelas.

A partir desse molde, dessa fôrma, a possibilidade de percepção delas enquanto pessoas, dotadas de sonhos, alegrias, amores, amizades, torna-se comprometida.

O conhecimento da rede de apoio e afeto que constroem, capaz de lhes dar sustentação mesmo em momentos os mais dramáticos e dilacerantes;

das habilidades em ultrapassar os entraves cotidianamente postos em suas rotas;

das intrincadas malhas que compõem o acervo de estratégias de resistência que são capazes de tecer;

da competência social que as faz ser capazes de identificar e aproveitar as oportunidades, as brechas que se apresentam e, através delas, reinventar suas trajetórias de vida, para além do “destino” predeterminado;

da competência emocional para se adaptar aos contextos mais tensionados e dinâmicos, marcados por relações de poder e alianças as mais complexas;

da capacidade de redefinir, para si mesmas e, depois, para a sociedade que lhes cospe e usa (abusa e lambuza), os significados atribuídos à própria identidade,

quase nada sabemos.

Suas comunidades, verdadeiras famílias substitutas, as trajetórias (e obras) que elaboram,

quase nada sabemos.

Esse é o sentido de buscar recuperar não apenas a história da obra social de Caetana (Brenda Lee), mas, também, as memórias das trajetórias da comunidade de inquilinas que residiram em suas diversas casas de pensão e que, ali, puderam encontrar a oportunidade de, mais do que uma habitação, uma família por afinidade: vínculos de afeto, de cuidado e uma defensora poderosa, muito respeitada naquelas lides profissionais (não à toa chamada de Madrinha).

E, com elas, a história social de uma parcela do universo de travestis/transexuais – seus ofícios, estilos de gênero, manipulações (reconstruções) corporais, manifestações artístico-culturais; sua participação na formação do PIB nacional (por meio das remessas de moeda estrangeira que efetuavam periodicamente ao país); sua contribuição na redução da pressão social em face do contexto de alta inflacionária e perda de postos de trabalho; seu papel de provedoras/cuidadoras dos familiares consanguíneos etc.

Quantas das meninas que residiram na casa de Caetana puderam escapar do destino previsível de espancamento, tiros, empalamento, facadas, miséria, por intermédio da comunidade constituída em torno do pensionato de Caetana (através de todos os endereços por onde a sua pensão passou), das oportunidades e alianças que ela soube vislumbrar e construir?

Um convívio que, para além da relação de base mercantil bastante concreta, inequivocamente também ostentava valores como solidariedade, estímulo, afeto, cuidado.

Convívio que, pelo exemplo, pela experiência vivida, foi capaz de incutir nas mentes daquelas jovens cuja orientação sexual e identidade de gênero as tornava, aos olhos da sociedade, seres abjetos, a perspectiva de um futuro mais sólido economicamente e a confiança no poder da amizade e do auxílio mútuo.

Um convívio que, passados 14 anos de seu assassinato, ainda fala de carinho, amor filial, Ceias Natalinas fartas,
amorosas, generosas (sem ônus financeiros para as residentes), e o diário incentivo para que não desistissem de acreditar e lutar por futuros mais dignos.

Um convívio que possibilitou a muitas dessas jovens travestis prostitutas – hoje senhoras respeitáveis – formar famílias, criar e orientar moralmente filhos do coração (cujos investimentos em educação gozaram de dedicação e prioridade), construir sólidos patrimônios.

Enfim, reinventarem, ademais das representações postas sobre as suas identidades, as próprias vidas.

Hoje na faixa etária compreendida entre os 70 e 40 anos, travestis/transexuais que começaram a buscar fora do Brasil a possibilidade de uma vida mais digna e confortável ainda na década de setenta, vivem com a mesma dignidade, discrição e sentimento solidário que, entre nós, viveram as prostitutas judias polonesas que aqui vieram, igualmente, em busca das mesmas possibilidades de vida .

– Descansa em paz, Caetana/Brenda. Daqui há mais algumas poucas horas completam-se 14 anos que lhe tiraram a vida. Mas não o espírito.

Ele acompanha as quase vinte senhoras das quais pude obter informações e que em seu convívio, quando ainda muito jovens, aprenderam não apenas a capacitação ao ofício – lugar comum de tantas -, mas, sobretudo, o valor da amizade, da solidariedade, do afeto.

Elas estão bem. E, decerto, em muito por meio das oportunidades e valores acessados através do convívio com você, Caetana, em uma hospedagem. Ao seu exemplo. Ao que você as ensinou. À capacidade de sonhar e lutar pelo sonho que você lhes ajudou a vislumbrar. Às possibilidades de realização que lhes mostrou.

Você foi gloriosa nessa comunidade de ofício e afetos que construiu e que ainda hoje lembra com amor e orgulho o privilégio de ter merecido o seu teto e o seu afeto.

(A seguir, um trecho do documentário “Douleur d’amour”, gravado na casa dela em 1987 e produzido por Pierre-alain Meier e Matthias Kälin. – Se você dispuser da íntegra desse documentário ou souber como adquirí-lo, por favor, entre em contato.)

Douleur d’amour – Publimetro
Documentaire de Matthias Kälin et Pierre-Alain Meier

Referências:
Depoimento de Érika Rocha

Baile de Máscaras: Mulheres Judias e Prostituição: As Polacas e suas Associações de Ajuda Mútua. Beatriz Kushinr. Rio de Janeiro, RJ : Imago Editora, 1996

Nomear é conhecer: as lápides das polacas no Cemitério Israelita de Inhaúma – um relato. Beatriz Kusnhir. In: http://www.historiaimagem.com.br/edicao5setembro2007/17-polacas-kushnir.pdf

O Rabino e as Prostitutas Judias. Gilberto Dimenstein. Folha Uol: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/urbanidade/gd010802.htm

MOTT, Luiz R. B. e ASSUNÇÃO, roldo H. F. Gilete na Carne: Etnografia das Automutilações dos Travestis da Bahia. Comunicação oral apresentada na 33ª Reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Salvador, 1981.

BÖER, Alexandre (Org.). Construindo a Igualdade: A Prostituição de Travestis em Porto Alegre. Portoo Aledre: Igualdade, 2003.

SILVA, Hélio R. S. Travesti: A Invenção do Feminino (etnografia). Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ISER, 1993.

BENEDETTI, Marcos Renato. Toda Feita – O Corpo e o Gênero das Travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: Sexualidade e Gênero na Experiência Transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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