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Babados da hora

“O TRAVESTI, ESTE DESCONHECIDO”, por DARCY PENTEADO

Este é o artigo a que Darcy Penteado se referia no artigo de abril de 1980, postado neste blog:

“A função cria o órgão, ou na natureza nada se cria e nada se destrói, tudo se transforma”

“Lembro-me destes sábios, porém óbvios conceitos aprendidos no colégio para exemplificar o surgimento, resultante de uma simbiose, de um novo ser da categoria humana: o travesti.

Quem é ou o que é, afinal, o travesti?

“Travesti, s.m. (gal.) disfarce no trajar; (por extensão) disfarce.” Pequeno Dicionário Bras. da Língua Portuguesa.

Um outro conceito remoto e bastante amplo de interpretação, determina como travestido todo indivíduo que adote um traje e um comportamento com os quaiis se faz passar por uma determinada personagem assumida. Assim, não só é travestido aquele que adota trajes do sexo oposto como também, por exemplo, aquele que se vista de rei, lobo, general, etc. sem sê-lo. Isto no entanto bem pouco ou nada tem a ver com o sentido específico que adquiriram a palavra e o ser em questão nos nossos dias. Hoje, travesti ficou sendo aquele (ou aquela bem mais raramente) que use roupas do sexo oposto e que elabore o próprio corpo com atitudes, posturas, maquilagem, hormônios e cirurgias plásticas a fim de assemelhar-se ao sexo imitado – o que ironicamente, no caos atual de certos travestis masculinos, supera em feminilidade o modelo adotado.

Para os leigos, a compreensão da sexualidade humana tornou-se algo extremamente complicado porque os estereótipos acadêmicos foram superados e a subdivisão atual está bem mais diversificada. Não se pode dizer, por exemplo, que todo travesti seja um transexual. Pode existir a reincidência, mas quase sempre as cabeças funcionam diferentemente. O transexual masculino tem corpo com caracteres masculinos, órgãos sexuais masculinos completos (no hermafrodita, que é outra categooria, os dois sexos são atrofiados, com predominância de um), porém comportamento mental feminino, o que provoca constante atrito entre a mente e o corpo antagônicos – um tormendo que resulta na rejeição e na repulsa do próprio órgão sexual masculino.

Já o travesti (sempre naquele sentido modernoso que se lhe dá hoje), é um indivíduo dotado de boa dosagem (?) homossexual, digamos que seja daquele tipo de homossexualidade que mais se aproxima do feminino (a gama é imensa, como já foi dito) e que por razões diversas, mas principalmente para satisfazer o ego, tenta uma semelhança com o sexo oposto.

Mas então qual a diferença entre transexual e travesti? Cuca, principalmente cuca!… O travesti (sempre nos termos de hoje, não esquecer), sente como todos nós a necessidade de chamar atenção sobre sua pessoa, mas a sua conformação masculina, devido aos padrões estabelecidos, nem sempre é a mais favorável para tal fim e ele se ajusta ao outro padrão, transformando-se. Não conheço nenhum travesti que, quando travestido, seja tímido: nesse momento, como é óbvio, ele está imbuído dessa sua forma de realização senão não se travestiria. As implantações de seio, quadris ou pometes do rosto, em silicone, são a complementação gloriosa e plena dessa mística de beleza adotada como padrão.

O transexual (masculino) serve-se do travestismo por uma necessidade intrínseca porém circunstancial, porque a sua mente está determinando que ele é mulher, obviamente deve se vestir como uma delas. Na verdade ele está vestindo-se, não travestindo-se, porém tem contra a sua mente certos caracteres físicos masculinos que precisa esconder. Os poucos transexuais masculinos comprovados que conheço são tímidos e não se satisfazem apenas com o travestismo: todos anseiam por operações castradoras mas que, pelo menos exteriormente, lhes dê a aparência sexual feminina. Numa comparação rasteira, pode-se dizer que os transexuais almejam ser mulheres simples e caseiras, enquanto os travestis têm alma de vedetes ou de mulheres mundanas.

Certo que a timidez dos transexuais deve ou pode advir da insegurança de situações sexuais e civis ambíguas, mas este fator em si já comprova a diferença porque aos travestis o pênis não causa traumas ou impecilhos e a quase maioria considera um absurdo submeter-se a uma operação castradora que irá suprimir o prazer da ejaculação, substituido por um prazer dependente e apenas mental da posse pela introdução do pênis do macho na vagina simulada que foi fabricada com a pele do seu pênis. A própria irreversibilidade do processo é uma parada dura. Muitos também evitam os hormônios porque estes reduzem ou cancelam o prazer do coito, e consideram inclusive o fator (econômico) da ereção, uma vez que boa parte dos clientes dos travestis-prostitutos preferem ser sodomizados. Mas disto falarei adiante.

Chegamos então atualmeente, com o travesti, a um ser humano que poderemos chamar de novo porque nunca antes adquiriu características semelhantes. Assexuado? Ao contrário: bissexuado. Ambíguo: Longe disso, porque possui caracteres bem definidos, só que fora dos padrões convencionais, do “deja vue”. Um protótipo, isto sim, de uma época em que ambíguos e discutíveis são os conceitos de liberdade e permissividade.

Anatomicamente temos em mãos um ser humano que em tudo se aproxima (ou faz por aproximar-se) dos moldes consumistas dos concursos de beleza feminino e que, como não poderia deixar de ser pelo seu próprio critério e caráter, são padrões tradicionalmente machistas, isto é, da mulher que é selecionada anatomicamente para dar prazer ao homem. Os enxertos plásticos conseguem dar aos travestis resultados incríveis de simulação. Um corpo antes masculino ou levemente dúbio define-se para o feminino, com seios inflados de silicone líquido e que ficam do tamanho desejado (eles quase sempre os querem grandes); os quadris são igualmente injetados, evidenciando a cintura; os pelos e a barba eliminados com eletrólise etc., etc., e tudo complementado com longos cabelos coloridos, maquilagem e… muito charme, superior mesmo aos das mulheres comuns, algo que só encontra parâmetros nos antigos modelos hollywodeanos.

A única diferença entre os travestis e as “stars” de cinema está no pênis e nos testículos (dos travestis), únicos resquícios masculinos exteriores que ainda lhes restam, mas que podem ser dissimulados entre as coxas com o auxílio de um adesivo (sendo que o melhor é emplastro Sabiá, que não fere a pele pelo uso constante). E é assim que um travesti aparece em público, muitas vezes despido quase que totalmente em shows e bailes de carnaval, deixando que as dúvidas pairem mesmo entre aqueles garanhões que se gabam de conhecer mulheres.

Não tenho dúvidas quanto ao fato de a categoria vir a ser em breve analisado pelo “Museu do Homem” (sem ironia), entidade cultural francesa que se especializa em estudar o ser humano nas suas origens, classificando-o geográfica e etnologicamente. Porque o travesti, apesar das conotações que podem aparecer superficiais e imediatistas, já tem o seu lugar definido (apesar dos pesares para os donos da moral), na sociedade de consumo em que vivemos. Chamá-los apenas de “anormais”, além do cômodo julgamento preconceitual, é escapismo da própria sociedade que deles faz uso, dando-lhes uma função utilitarista. Ora, se é indiscutível que tudo o que não sirva para consumo no mundo de hoje é logo relegado ao rol de inutilidades. Tendo-se em conta como ponto de referência que numa cidade como São Paulo devem existir atualmente de cinco a oito mil travestis (o cálculo é meu, de orelhada, porque não existe nenhum recenseamento, nem na polícia), é evidente que, queira-se ou não, eles estão cumprindo uma função social exigida pelo meio; e são utilitários, mesmo praticando a prostituição, porque a oferta não subsiste sem a procura.

Seria muito cômodo considerar o fato apenas
pelo seu lado sensorial, isto é pela solicitação do ego de cada indivíduo em questão, que assim estaria atravessando a porta semi-aberta da permissividade atual. Porém, atrás de toda essa aparente frescura, existe um fator social bastante sério: a exaustão do mercado de trabalho, principalmente para a mão-de-obra não qualificada. O afluxo às grandes cidades à procura de melhores condições de vida atinge também os setores considerados subterrâneos: o homossexual pobre não resiste à pressão social, econômica e familiar nas cidades pequenas e, tal como o lavrador de quem o latifundiário usurpa a terra, emigra para os centros maiores. O homossexual de classe média tem mais defesas para resistir ao êxodo; o da classe baixa não.

Mas o que a cidade grande pode oferecer em princípio, a esse indivíduo, como meio de subsistência? Talvez remuneração pequena e esporádica por trabalhos isolados, biscates que podem ou não ocorrer diariamente, ou então, na melhor das hipóteses um emprego em funções domésticas em que ele será aceito com salário baixo porque os patrões e patroas usam o homossexualismo como um timbre fácil para a exploração alheia. Fora isto, resta-lhes o crime e a marginalidade generalizada, fator comum na máquina compressora da sociedade atual.

Ora, como atividade sexual dispensa carteira profissional assinada e não exige especialização (esta só vem depois, com o tempo), o homossexual desempregado, carente e muitas vezes esfomeado, recorre à prática sexual remunerada como forma única ou complementar de subsistência. Cara e corpo razoáveis ajudam, mas não se pode negar que mesmo para os menos dotados, sem especializações, sem organizações de classe, tabelamentos de preços, etc., cidades como São Paulo e Rio dão possibilidades no mercado de trabalho sexual. Mesmo para o não homossexual, que por necessidade aceite esse trabalho temporário, as cidades grandes não negam ajuda, basta fazer o “trottoir” nos locais convecionados e a freguesia aparece.

No quadro das classificações homossexuais, o rapaz de aparência máscula e que pratica o “trottoir” de rua é chamado de “michê” ou “bofe”. Ele não precisa obrigatoriamente cumprir a função do ativo, o que de certo modo limita a sua atividade sexual. Por isso os mais experientes preferem a postura contrária a fim de se poupar, podendo realizar mais de um compromisso sexual por noite. Mas isto de certo modo restringe o campo de trabalho dos afeminados porque, via de regra, os clientes preferem sodomizar rapazes másculos. Para subsistir então, o efeminado tenta outra faixa de clientela para a qual é necessário fazer-se mais feminino. E assim, paulatinamente, ele chega ao travestismo. É lógico que com isto ele também satisfaz o seu ego, dando vazão às solicitações femininas de sua personalidade, mas é errado pensar que o travestismo conduza à prostituição: são as exigências do mercado da prostituição que geram o travestismo.

Dificilmente se pode falar sobre travestismo, em termos da sociedade de hoje, que não seja ligando-o diretamente à prostituição, porque o fato é antes de mais nada econômico. Contam-se nos dedos as exceções, isto é, aqueles que atuam em shows, ou são maquiladores ou cabeleireiros, e que também adotaram o travestismo como forma de realização pessoal. Sendo o travesti-prostituto um sucedâneo da mulher-prostituta, ele pode realizar como passivo muitas atuações numa noite, assim como elas, apenas simulando o prazer. Mas existem casos, que são até comuns (e dizem os travestis que cada vez mais freqüentes), de clientes que os procuram exclusivamente para serem sodomizados. É um complicado jogo de consciência disputado com o complexo de machice em que subsiste a argumentação de estarem sendo possuídos por uma mulher…

Como o travestismo, ou mais especificamente, a prostituição praticada por travestis, é uma nova opção do prazer masculino da sociedade consumista e permissiva atual, estranhamente ele se criou e desenvolve-se por e para uma sociedade de raízes profundamente patriarcais e machistas. Nossos avós, que ficaram ricos na exploração do café em São Paulo, da borracha na Amazonas, da cana-de-açúcar no Estado do Rio e em Pernambuco, importaram amantes francesas (que era sinal de status e a elas cabia praticar todas as libidinagens que eram vetadas às esposas virtuosas, cuja função era ficar em casa procriando).

As mulheres contestadoras de hoje negam-se a continuar sendo apenas procriadoras ou objetos sexuais dos homens. Esta segunda função (já que a primeira lhes é impossível), está sendo encampada, sem restrições pelos travestis. Os praticantes sexuais acadêmicos poderão contestar que nada substitui a vagina num relacionamento sexual; porém, sem que eu tenha qualquer argumentação contra as mulheres, ao contrário, está provado que em matéria de prazer o homem heterossexual brasileiro, é tão obsecado por traseiros como é o norte-americano por seios volumosos. O hetero brasileiro pode não ter coragem de confessar, mas o depoimento das mulheres, constantemente assediadas nesse sentido, poderá contestá-los. a confirmação visual do fato está nas nossas revistas eróticas e nas que não se consideram como tal, mas em cujas fotos de carnaval só se vêem traseiros e mais traseiros. Tal é a exuberância deles que chega-se a pensar ufanisticamente num novo “milagre brasileiro”.

E agora sejamos honestos: condicionamentos e preconceitos à parte, mesmo para um machão (mas quenão seja muito convicto em tradicionalismos) qual a diferença entre un ânus feminino e um masculino? (Darcy Penteado)”

Fonte: jornal Lampião da Esquina, nº 22, março de 1980, ano 2, pág. 12-13.

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