Laura de Vison: - Eu também sou Diva!

Laura de Vison, foto de Salomon Cytrynowicz/F4. Jornal do Brasil, 29/03/1986, Rev. Programa, p. 21. Acervo: Bb. Nacional.

Laura de Vison, cujo nome civil era Norberto Chucri David, nasceu em 1939 e foi uma  atriz transformista muito popular, especialmente no Rio de Janeiro, nos anos de 1960 a 1990.  Começou a atuar ainda criança, nos anos 50. Seus shows misturavam, no cômico, elementos do bizarro e do grotesco, com a participação da plateia. Graduada pela UFRJ em filosofia e psicologia, especializou-se em história e lecionou na rede pública e particular.

Dotada de consciência social e política, procurava incutir na plateia a noção de comunidade, a necessidade do seu fortalecimento interno, através da união, e foi uma das precursoras nas ações de informação sobre a transmissão do hiv e na distribuição de camisinhas. Ela também atuou no teatro e no cinema, obtendo grande reconhecimento e conquistando diversos prêmios.

Se viva estivesse, faria 83 anos de idade em sete de setembro de 2022.

Não se sabe, até o momento, a destinação dada ao seu acervo de cerca de cem vestidos, 40 perucas, 50 sapatos e botas, chapéus e plumas. Fora os troféus e fotografias. (1) 

Ao contrário do que muitas pensam, Laura de Vison não se inspirou na Divine, trans estadunidense. Laura é anterior e disse jamais ter visto qualquer filme da colega estrangeira.

Na vida civil, cotidiana, como Norberto, Laura era professor de história, “moral e cívica” (disciplina criada durante a ditadura militar) e, posteriormente, geografia, para o então Segundo Grau, hoje ensino médio. Para as suas aulas, ela ia sempre em terno e gravata. Mas também houve dias em que, para melhor transmitir o conteúdo, vestia-se com trajes de personagens do período histórico correspondente. O jornalista Pedro Stephan, que a entrevistou, relata que, “na intimidade do dia a dia, Laura/Norberto é o Betinho, como é chamado pelos amigos, um indivíduo que usa um visual andrógino, batas largas, cabelos compridos soltos, fala mansa, e fica bem no meio termo entre a exuberante Laura e o simpático professor Norberto.”

Laura foi demitida do colégio Cenecista Capitão Lemos da Cunha, no bairro da Ilha do Governador, após 18 anos de trabalho, por ensinar sobre formas de transmissão e prevenção ao hiv, após perguntas de um aluno, e assumir a sua homossexualidade, na reunião com a diretoria da escola, em consequência do fato. Situação traumática para Laura, que não quis mais lecionar em escolas privadas.

Do ensino público, Laura se aposentou em 1996. Nas redes virtuais, não raro encontramos depoimentos de ex-alunos seus, destacando as suas qualidades didáticas e seriedade profissional em sala de aula.

Nas palavras do jornalista Pedro Stephan, Laura apresentava duas grandes características que a diferenciavam: por um lado, “era um rapaz classe média, com nível superior, que se lançou na carreira de transformista”; por outro, foi a transformista nacional que “ousou criar talvez o personagem mais anárquico, radical e provocativo do show business brasileiro.” Enquanto os espetáculos de travestis se caracterizavam pela busca da perfeição na performance do feminino glamoroso, sensual, Laura levava a ironia homossexual ao limite, utilizando, como linguagem, com destreza e fartura o exótico, o bizarro, o escracho. Caracterizada com base branca sob o rosto, purpurina no entorno dos olhos, batom vermelho e roupas atribuídas ao feminino, descia a escada de madeira do Boêmio sentada no corrimão e não raro comia carne crua em cena (fígado, miolos).

Laura trabalhou no Cabaré Casanova e brilhou por dezessete anos, nas noites de sexta-feira a domingo, no Bifão Cabaré, depois Boêmio, situado na Rua Santa Luzia, n. 760, Centro, RJ, onde, durante o dia, na parte inferior do sobrado, funcionava um restaurante vegetariano. Ali trabalhou junto a artistas trans como Georgia Bengston e Andreia Gasparelli.

Laura de Vison, Rev. Manchete, 1981. Acervo Bb. Nacional
Laura de Vison, Lady Francisco (artista cis), Ana Lupe (vedete argentina), Nana Voguel (travesti paulista). Rev. Manchete, 1977. Acervo: Bb. Nacional

Localizado próximo do Consulado dos EUA, a frequência do Bifão/Boêmio é descrita por Pedro Stephan:

“O perfil dos frequentadores era do gay masculino, discreto, classe média da zona norte. As drags estavam mais no palco que na platéia. … Muita gente bacana frequentava o Boêmio: funcionários das embaixadas (sic) americana e da francesa, jornalistas, atores, diretores de cinema, teatro e tv, músicos, políticos, e garotos rebeldes da zona sul que morriam de tédio do mundinho burguês em que foram criados, como este repórter do MixBrasil.”

A produção dos shows apresentados por Laura não era barata, segundo Pedro, 

muito pelo contrário, a cada entrada ela usava uma roupa e um visual diferente, cada uma mais tresloucada que a outra.
Havia performances temáticas sobre a vida política do Brasil e do mundo, como quando houve o fim da guerra fria, e Laura entrou vestida de [Mikhail] Gorbachev e uma biba coadjuvante de [Ronald] Reagan, e simulavam uma guerrinha de mísseis explicitamente fálica. Numa outra ela aparecia de Xuxa, ao som de ilariê[,] distribuindo balas e camisinhas; ou ainda o famoso strip-tease com direito às cordinhas amarradas balançando os peitos, enquanto ela, nuinha, punha neca pra trás em pleno palco, e mostrava ao público uma x0x0ta fake.

Mas isso era o lado doce da diva, comparado à performance dela lambendo o edi duma galinha, que fazia cara de quem estava gostando da carícia. Em seguida[,] Laurona tirava um ovo que havia “guardado” no bumbum e comia. A tia fazia também uma versão heavy da dança da “boquinha da garrafa”[,] enfiando metade de uma garrafa de cerveja no fiofó diante da plateia boquiaberta. E havia a esquete “clássica”, em que ela entrava vestida de médico e operava uma biba grávida, arrancando de dentro da mona um naco de fígado cru, que ela comia uma parte e jogava o resto na plateia. O público urrava.

Laura de Vison faleceu em oito de julho de 2007, por insuficiência respiratória, resultante de oito meses de internação para tratar de complicações decorrentes de cirurgia de hérnia. Foi sepultada no cemitério de Inhaúma, RJ.

Em 2006 fez seu derradeiro trabalho – o espetáculo Dei a Elza em Você, remontado em junho de 2019, como uma homenagem póstuma. Esta peça estreou no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, como parte da Mostra Carioca Cores da Diversidade. (2)

Com os seus ganhos como professor e artista, Laura conseguiu, segundo Pedro Stephan, adquirir o apartamento duplex em que residia, na Glória, “e ter o carro do ano”. 

Laura de Vison, 1990, em foto de Marco Antonio Rezende. Rev. Manchete. Acervo Bb. Nacional

No Carnaval de 2018 a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira trouxe, em um de seus carros alegóricos, uma escultura de Laura. (3)

Em 2020 foi inaugurada uma biblioteca com o seu nome – Biblioteca Professora Laura de Vison – no Centro Provisório de Atendimento (CPA IV) para LGBTs na Lapa, numa articulação entre a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (CEDS Rio), gestão Nélio Georgini, e a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH).(4) 

Laura de Vison recebe placa em homenagem a Cazuza (gay do século, na Le Boy), pois a sociedade em seu nome não enviou representante. Rev. Manchete, 29/04/2000, p. 22. Acervo Bb. Nacional.

Transcrevemos, a seguir, a entrevista que Pedro Stephan fez com Laura, em setembro de 2005, para o Mix Brasil. Na ocasião, ela havia saído, ainda segundo Stephan, de “quinze dias hospitalizada em virtude de uma hérnia”, e já “apresentando o show das sextas-feiras da [boate] Le Boy e comandando as terças malditas da boate Incontrus, local onde também comemora no dia 14, este sábado, seus 66 aninhos de vida e 50 de palco.”

Ao fazer a entrevista, Pedro teve acesso ao acervo de imagens da Laura (ela autorizou que ele o fotografasse). Lamentavelmente Pedro não se lembrou de registrar as referências das imagens. Mas, observando o acervo, Pedro comentou, na introdução da entrevista: “É difícil [se] desvencilhar da triste realidade, uma boa parte das pessoas que aparecem nas fotos está morta, vítima da epidemia da aids.. … Quem sobreviveu também pagou preço de uma época onde a homofobia era generalizada.”

– Aguardamos o envio das imagens por Pedro Stephan, na resolução correta, para a criação da Sala em homenagem à Laura de Vison.

PS – Quando você começou a se montar?

LV – Foi desde criança, aos 10 anos. No carnaval havia os blocos de sujo, eu era o caçula e vestia as roupinhas das minhas irmãs e imitava a Carmem Miranda. Nos anos 50 fizemos um palco na casa de um vizinho meu lá em Bangu, onde eu fazia espetáculos para as crianças e cobrávamos ingressos, era aquela coisa bufa, meio andrógina dos palhaços.

PS – Como você começou sua carreira de transformista?

LV – Primeiro eu fazia um grupo de amadores no Carlos Gomes às segundas-feiras. Isso foi em 1965. Havia shows de travestis no teatro República e no João Caetano, que ficavam nas redondezas (O Teatro República, em 1968 denominado Teatro Novo, ficava na Avenida Gomes Freire, 474,.onde hoje encontra-se o estúdio da TV Brasil [5]) Eu ia no baile dos enxutos que era ali do lado, no cine São José; lá eu conheci o produtor do show, que me convidou para fazer esse espetáculo. Naquela época, travesti era coisa rara, as pessoas se amontoavam na porta do teatro para nos ver passar e aplaudir. O nome do show era: “Eles gostam de peruca”, tinha pequenos textos, esquetes engraçadas. Não era escracho, mas sim humor, comédia.

PS – Porém logo apareceu uma boa chance para você deslanchar na carreira, como foi isso?

LV – Naquela época o primeiro grupo de transformistas profissionais brasileiros, o “Les Girls”, veio para o teatro Carlos Gomes, isso foi em 67 (em pesquisa sobre Les Girls Teatro Carlos Gomes a consulta à Hemeroteca da Biblioteca Naiconal retornou com anúncio publicado no Jornal do Brasil anunciando a estreia para 12 de janeiro de 1968, sob o título Tem bonecas na folia – “revista carnavalesca com os famosos travestis Les Girls”). Eles haviam viajado pra Argentina e estavam vindo de São Paulo pro Rio, era um grande espetáculo, com cenários enormes, carros que entravam em cena, figurino luxuoso.

PS – Como aconteceu de você integrar esse grupo?

LV – Eles me viram no show na segunda-feira, e me chamaram pra ser a apresentadora, mas era comportado, tudo na base de “ senhoras e senhores, nesta noite vamos apresentar etc etc.” O espetáculo era “Les Girls in Times Square” todo coreografado, coisa que eu nunca tinha feito, mas aprendi rapidinho (Não foi possível localizar informações sobre essa montagem em consulta na Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional) .

PS – Como era os espetáculos do “ Les Girls” ?

LV – No Les Girls a gente tinha que interpretar, cantar e dançar. Havia uma orquestra no palco, a nós cantávamos. Depois descíamos para a plateia e conversávamos com o público, havia esquetes, números musicais com canto e dança. O espetáculo era apresentado diariamente com folga apenas nas segundas-feiras, aos domingos havia duas sessões: uma de tarde e outra à noite. Tinha que ter talento, hoje em dia é fácil, basta colocar uma peruca e bancar a drag queen, sem nem saber o que está fazendo.

PS – Depois desse primeiro espetáculo o que aconteceu?

LV – Veio uma outra montagem do grupo, “Tem Boneca na Folia”, mas nesse eles quiseram me sacanear. Na cena final todas apareciam lindas em cena usando roupas maravilhosas cantando “mamãe eu quero”, mas pra mim deram um roupa de Corcunda de Notre Dame! Realmente era engraçado, mas eu fiquei danada.

PS – E o que é que você fez?

LV – Um dia eu peguei um biquini com uma capa e uma cabeça emplumada, que havia no camarim e ninguém usava, vesti escondida e entrei maravilhosa na cena final. E eles acabaram me deixando fazer, porque naquela época meu corpo era escultural. Eu era boazudérrima. Hoje em dia é extravagante, mas é gostoso!

PS – Como era o corpitcho?

LV – Era light o corpo, peito lindo, cintura fina, quadril largo, bundão, os homens choravam aos meus pés. Uma vez eu saí do baile de Carnaval do Cine São José, com um vestido transparente e uma calcinha enfiada no rego. Havia um cortejo de uns 10 homens me acompanhando… e eu fui para dentro de uma garagem… e me entreguei para todos!

PS – Quando e como você começou a transformar teu corpo?

LV – Eu sempre tive peito natural, só quando eu já tinha uns 38 anos, já nos anos 70, colocaram os hormônios no mercado, e as bibas começaram a aparecer de peitão. Aí eu falei: “ah então é a guerra dos peitos?” E comecei a tomar hormônios.

PS – Como era tua relação de rapaz classe média com tua família?

LV – Eu me escondi muito, tinha uma vida dupla. Pra você ter uma ideia: eu tinha peitinho natural, então punha uma camisa larga. Mas chegava na cidade e trocava pela minha blusinha de pegação, bem justinha, e escondia meu blusão em cima de uma banca de jornal. Por causa disso me apelidaram de “a bicha do embrulhinho”.

PS – E tua família não desconfiava de nada?

LV – É claro que eles reparavam que eu era diferente, gostava de me arrumar, me perfumar. Meu pai ficava de olho e implicava muito comigo, minha mãe era maravilhosa e punha panos quentes. Uma vez meu pai vinha do Jockey Club, e quando passou pelo Centro me viu na Cinelândia no meio dos viados. Chegou lá em casa, fez um escândalo, brigou com minha mãe, foi um escarceu.

PS – Você chegou a fazer pista?

LV – Eu não precisava, mas às vezes eles me ofereciam dinheiro. Eu gostava muito do submundo, ia na Central do Brasil, de onde saíam os bondes. Lá era cheio de marinheiros lindos, era um escândalo, eles nos tratavam como mulheres, beijavam na boca, nos levavam pra hospedaria. E eu fazia sucesso, mas uma das bichas da pista ficou revoltada de me ver fazer os bofes sem cobrar, me pegou pelo braço e disse “se quiser ficar aqui, você vai ter que cobrar! Se não, eu te corto toda.” “- Mas é lógico que eu vou cobrar!”, respondi. Me dava bem com todas, mas nunca me marginalizei, porque separava as coisas. Gostava do submundo pela sacanagem livre, sem carão, nem close.

PS – E na hora de transar com os marinheiros, havia a famosa inversão de papéis?

LV – Naquele tempo, não. Eles nem tocavam no nosso braulio, a gente botava uma toalhinha na frente. Essa liberação dos bofes fazerem de tudo na cama só ocorreu dos anos 60 para cá, naquela época era o maior puritanismo.

PS – Quando você se dedicou aos espetáculos como ficaram seus estudos, a sua “outra vida” de rapaz classe média?

LV – Enquanto trabalhava nos palcos, eu cursava a faculdade de filosofia. Mas quando terminei a faculdade resolvi parar de me apresentar. O “ Les Girls” foi viajar pela América Latina e eu não quis ir. Além disso, tinha acabado a faculdade, e pensei que eu tinha que optar se ficaria no mundo artístico ou iria me formar e trabalhar. Deixei então o transformismo, por medo de ser reconhecida e causar um escândalo.

PS – Você se formou em que?

LV – Eu fiz filosofia na UFRJ, na verdade queria fazer psicologia, mas na época não eram desvinculadas e então fiz as duas. Depois surgiu uma opção pra dar aula: história ou sociologia e eu achei que história tinha mais campo e fiz especialização em história. Mas na verdade eu me formei e fui trabalhar na Cetel, a companhia telefônica, como escriturário. Eu tinha medo de que numa escola, descobrissem que era homossexual, porque eu era pintosa.

PS – E como você foi parar numa sala de aula?.

LV – Um dia uma um funcionário de uma escola lá da Ilha do Governador foi saldar uma dívida na Cetel, e eu perguntei se eles estavam precisando de um professor de história. Naquela época não se lecionava história nas escolas, então o ministério da educação baixou um portaria exigindo que fosse ensinada.

PS – Então você conseguiu fácil o emprego?

LV – Eram poucos professores dessa matéria, e eu fui chamado. A diretora me entrevistou e me achou esquisito, mas o coordenador gostou de mim, e eu comecei a lecionar. Trabalhava de dia na telefônica e dava aulas à noite. No ano seguinte eu saí da Cetel e fiquei dando aula nos turnos da manhã, da tarde, e da noite por causa da falta de professores.

PS – Havia preconceito na sala de aula?

LV – Comecei a lecionar em 68, imagine ilha do governador na década de 60, era muito preconceito. Havia muitas piadinhas, meu sobrenome, David virou Dádá, eu tive que enfrentar uma barra. Depois passei pro município, e lecionava na escola particular de manhã e à tarde e à noite no município.

PS – Quando você voltou a se apresentar?

LV – Continuei apenas lecionando até 1973, quando me chamaram para apresentar um show no Cabaré Casanova . Era pra ser apenas por algumas semanas, aceitei meio de brincadeira, mas o público adorou e foi um sucesso.

PS – Como eram os shows no Casanova na década de 60?

LV – Havia uma bandinha, todos os shows gays do Rio tinham música ao vivo. Eu cantava sambas. Havia bichas famosas como Capuccini, um contra-tenor que cantava a Ave Maria de Goneau, e a [Lee] Rebanchera [artista cubana], que cantava aquelas músicas agudíssimas do repertório de Yma Sumac. Não havia dublagem. Quem começou a dublagem nos palcos daqui no Rio fui eu.

PS – Como foi isso?

LV – Estava fazendo um espetáculo no Casanova e levei minha vitrolinha e liguei na caixa de som. Então eu colocava o disco e corria pro palco, enquanto rolava a introdução da música pra chegar a tempo de dublar. Depois todo mundo começou a fazer o mesmo.

PS – Havia rivalidade entre as monas nesses shows?

LV – A Marlene Casanova era minha amiga e foi umas das que me levou pro Cabaré Casanova, mas quando eu fiz um baita sucesso ela não gostou e escondeu meu vestido de lamê, bem antes de eu entrar em cena, dentro de uma caixa de cerveja.

PS – Naquela época o personagem Laura de Vison já existia?

LV – Enquanto trabalhava no “ Les Girls ” era conhecida pelo pitoresco nome de “Caridosa” ou “Generosa ” porque sempre ajudava as colegas emprestando make-up, roupas etc. Mas lá na Central do Brasil começaram a me chamar de Laura Clayper. O personagem Laura de Vison só veio a existir anos mais tarde.

PS – Como surgiu esse nome?

LV – Durante um Carnaval, eu estava no baile do Cine São José, usando um biquini e um casaco de vison por cima, apesar de estar fazendo 40 graus! Mas você sabe: bicha não quer saber se tá calor ou frio, e sim de arrasar. Então um repórter se aproximou e perguntou meu nome, e eu disse “- Laura.” Tiraram a foto, que saiu na revista O Cruzeiro em destaque, com a legenda “ Laura de Vison” e eu pensei: “legal, vison.”  E ficou assim.

PS – Quanto tempo você trabalhou no Casanova?

LV – Entrei em 1973 para fazer só umas semanas e acabei ficando 2 anos. Depois a casa trocou de dono, que mandou todo mundo embora e só ficou comigo. Fiquei mais quase um ano, até 1976, mas um dia sumiu um poá de plumas, eu me aborreci e saí da casa.

PS – E depois disso o que aconteceu?

LV – Logo em seguida, em 78, o dono do boêmio que naquela época tinha o nome de Bifão, me chamou para fazer uns free lancers na sexta feira, e eu fazia um showzinho lá. Mas ele sofreu um acidente, foi embora do Brasil e fechou a casa. Anos depois ele voltou, e mandou uma carta pra mim, convidando pra eu tomar conta do espetáculos que seriam realizados ali.

PS – Quando você iniciou seus shows históricos no cabaré boêmio?

LV – Em 81 reabriu como Boêmio, restaurante vegetariano de dia, e nas noites de sextas-feiras comecei meu próprio show . No primeiro dia não havia dez pessoas na plateia, a gente mandou fazer uns prospectos e íamos pras portas das outras casas noturnas gays divulgar. O público foi chegando e participando do meu trabalho, aos poucos o show foi tomando forma, e o personagem que criei firmando um estilo. Comecei a inventar, fazer concursos de dublagem, um show mais dinâmico, depois de 4 meses a casa já tinha um público de 800 pessoas.

PS – Mas nessa época você estava lecionando? E não havia problemas?

LV – Estava lecionando, porém eu me continha no palco, e principalmente não me expunha nos veículos de massa, para preservar minha imagem no trabalho. Não fazia shows aos domingos porque nunca conseguia tirar toda a purpurina no rosto, e ficava com medo de meus alunos na segunda-feira reparassem isso. Mas não adiantou de nada, eu lecionava há 18 anos numa escola, e um dia fui despedida sumariamente por explicar em sala de aula a um aluno o que era aids.

PS – Como isso aconteceu?

LV – Estava no auge daquele negócio de “peste gay” pela mídia, que estimulava o preconceito da sociedade. Eu estava dando aula, quando um aluno perguntou à queima roupa “_ fêssor o que é aids?” Eu fingi que não ouvi e continuei a lição, mas ele perguntou de novo, na terceira vez não pude fugir. Parei a aula, e expliquei que era um vírus que estava atacando as pessoas, mas que provavelmente os cientistas descobririam logo a cura etc.

PS – E ficou por isso mesmo?

LV – Claro que não. Quando acabei de explicar ele levantou-se da carteira fez um jeito de efeminado e disse “ Ai, coitadas das bichas né, fêssor? ”

Eu respondi que não eram só os gays que estavam ameaçados, que a mãe e o pai dele, eu, qualquer um, poderíamos contrair aids. Expliquei tudo direitinho, de como as pessoas poderiam se contaminar.

PS – Finalmente eles sossegaram?

LV – Não. Depois disso uma aluna levantou o dedo e perguntou “ fêssor é verdade que se a mãe é puta o filho nasce bicha? ” Eu reagi dizendo que não admitia aquela expressão em sala de aula. “ Você quer saber se quando a mãe é prostituta o filho nasce homossexual? A resposta é não. A mãe pode ser prostituta e o filho ser heterossexual. ”

PS – Como isso repercutiu na escola?

LV – No dia seguinte, cheguei ao colégio, e no meio da aula me chamaram ao gabinete do diretor. Lá me pressionaram e eu expliquei o acontecido. Começaram a me acusar de ter aceito provocação dos alunos, ao que eu retruquei dizendo “ Eu preciso me posicionar, pois afinal das contas sou homossexual ”.

PS – Como a direção da escola reagiu à sua saída do armário?

LV – No dia posterior a essa conversa com a direção da escola, não deixaram mais que eu tivesse contato com os alunos. Logo que cheguei mandaram que me encaminhasse diretamente para a tesouraria e me demitiram.

PS – E você o que fez diante de toda essa discriminação?

LV – Logo depois disso fui até a sala dos professores, peguei no meu escaninho todos aqueles livros didáticos e rasguei um por um, e bradei “eu sou a Laura de Vison! ” Tirei o terno, e saí do colégio de calça e camisa de manga. Através da qual dava para ver os seios que eu escondi dezoito anos sob o terno, o colete e a gravata.

PS – O que seus colegas professores fizeram diante disso?

LV – Uma professora dizia” não faça isso, você vai perder a justa causa”, mas eu estava me lixando, ora se fosse hoje eu entraria na justiça e ganharia. Mas naquela época era a maior homofobia e por causa da aids, a sociedade toda estava contra os gays. Eu fiquei traumatizado e nunca mais quis dar aulas em escola particular.

PS – Como essa experiência modificou sua vida?

LV – A partir daí minha vida deu uma guinada, eu vivia com medo de ser descoberto, isso me trouxe muitos conflitos, e mágoas. Resolvi assumir de vez a dupla personalidade e tudo ficou melhor. Comecei a fazer o que queria no palco, a partir daí se firmou definitivamente o personagem da Laura de Vison como hoje é conhecido. Radicalizei no visual, na provocação e escatologia do meu trabalho.

PS – Esse “ir fundo” te rendeu artisticamente?

LV – Sim, deu certo: fui chamada para fazer o filme “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Julio Bressane, contracenando com Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães. Fiz o filme “Noite” de Gilberto Loureiro. Ganhei o candango de outro de melhor ator de curta no Festival de Brasília, e o Sol de prata no Fest Rio, ambos pelo meu trabalho no curta Mamãe Parabólica, de Ricardo Favilla. Ganhei também uma medalha de ouro no festival de curtas e vídeo de Bruxelas, pelo vídeo “O Bigode da Aranha”, que protagonizei ao lado da atriz Maria Padilha. Fiz uma participação na famosa minissérie “Incidente em Antares”, sobre o clássico de Fernando Veríssimo, e fui convidada para ser jurada no programa do Gugu Liberato, onde fiquei durante anos.

PS – Teu show no Boêmio foi o que ficou mais tempo em cartaz na história do Rio. Quando começou e quando terminou?

LV – Foi de 81 a 98, ficou uns 17 anos em cartaz. Era toda sexta, sábado e domingo. Ali eu fui me descobrindo, inventando coisas… No início me diziam que as pessoas não iriam aceitar aquela anarquia toda, a escatologia. Mas o público adorou e eu consegui me projetar, sou conhecida aqui e no exterior pelo meu trabalho.

PS – Quantas pessoas cabiam no Boêmio?

LV – De novecentas a mil pessoas. Houve um concurso que eu fiz em que havia na casa mil e duzentas pessoas, tive que colocar os jurados em cima da escada, pois não tinha espaço.

PS – Você ganhou muito dinheiro com o show?

LV – Eu não era o dono, mas sim um suíço, que não era muito mão aberta. Eu ganhava um salário, com carteira assinada. Mas não foi tão ruim, pois deu pra eu comprar este apartamento. Mas mesmo assim, no final deu problemas.

PS – Que tipo de problemas?

LV – Ele deixou de me pagar uns seis meses, ele não havia pago meu fundo de garantia durante muito tempo, e eu tive que entrar na justiça pra conseguir receber o que me era devido.

PS – Você tem uma influência do Chacrinha sobre teu trabalho, poderia falar sobre isso?

LV – Eu gostava tanto dele que aos domingos não saía, ficava com mamãe, a gente se deitava na sala para ficar vendo o programa do Chacrinha. Achava incrível ele jogar aquelas coisas na plateia, aquele humor anárquico, debochado, as fantasias que ele usava etc. Acabei fazendo a Buzina da Laura, onde os transformistas calouros concorriam entre si pra ver quem seria o melhor. Muita gente que hoje faz sucesso passou pela minha buzina: Rose Bombom, Sula Lastorini, Luiza Gasparelli etc.

PS – Você também fazia toda sorte de concursos no boêmio não é mesmo?

LV – Eu lancei o primeiro concurso de Miss Brasil e Miss Universo, em 82, as pessoas perguntavam “mas miss universo como, se não vem ninguém do exterior?” Eu respondia “não tem problema, cada uma vai representar um país”. Elas faziam a cena e caprichavam nos trajes típicos etc. Foi um sucesso.

PS – E a Divine, grande travesti trash norte americana, qual a influência dela no seu trabalho?

LV – Eu só vim saber da Divine em 86. Eu existo muito antes dela. E só a conheço de foto, nunca assisti nenhum filme do Johnny Waters, diretor dos filmes em que ela atuava. Quando [ele] veio para um festival de cinema no Brasil, foi assistir um espetáculo meu, e me falou muito dela.

PS – Você sempre apoiou e participou de eventos da militância gay carioca não é mesmo?

LV – Sempre prestigiei os eventos, compareci nas paradas, apresentei eventos beneficentes, lançamentos de projetos de prevenção. Sempre dou toques nos meus shows falando que somos uma comunidade e temos que nos unir e nos respeitar. Nunca fiz parte de nenhuma ong, mas sempre apoiei todas elas.

PS – E o cargo no sindicato dos artistas? O que você fazia naquela instituição?

LV – Durante três anos eu analisava o curriculum dos transformistas, e dava o aval para que eles pudessem ter o registro profissional de ator, e com isso se profissionalizassem. Eu já era registrada como ator e diretor teatral desde 78, no Sindicato.

PS – Para você que, tinha uma dupla identidade, esse documento valia apenas pela parte profissional, mas qual era a importância dele para os travestis full-time?

LV – Na carteira do Sindicato havia a impressão digital, o número da identidade, o nome real [civil], junto com o nome artístico e uma foto dela já transformada. Graças a isso, as trans que faziam shows poderiam ter uma carteira de identidade. Hoje em dia já existem muitos projetos de carteira identificação de transexuais e travestis funcionando, mas naquela época essa era a única maneira de uma trans ter esse documento.

PS – Você também participou de um projeto pra alfabetizar os travestis?

LV – Sim, mas infelizmente o projeto não vingou, a travesti que tinha a ong e iria levar adiante o projeto botou todo o dinheiro no bolso, e a coisa não aconteceu. É uma pena, pois existem muitas travestis analfabetas, principalmente as que vêm do interior pras grandes cidades.

PS – Recentemente houve um espetáculo com os travestis do “Les Girls”, mas você não estava no elenco. Por que isso?

Elas se acham melhores, porque fazem as finas. Me rotularam de trash e não me colocaram no espetáculo. Mas tenho um currículo melhor do que o delas. Fiquei com um show em cartaz por vinte anos, tenho 50 anos de palco, sou famosa no Brasil e no exterior. Eu também sou diva.

Pesquise por algo no Museu Bajubá

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso, bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.

Pular para o conteúdo