Fernandinho, uma bicha poderosa por trás da varanda mais importante na Independência?

O cabeleireiro da Corte, o Real Theatro de São João e a Independência – Uma conexão improvável 

Houve um teatro na Praça Tiradentes, onde hoje se encontra o Teatro João Caetano, que serviu de palco para grandes momentos de nossa política, inclusive no período da Independência. Sua história abriga incríveis singularidades. Algumas delas trazemos até você. A principal, no que nos diz respeito,  talvez seja precisamente a do seu criador, Fernandinho, e o modo de sua criação. 

Do relato sobre o seu grande feito para a história da cultura e da política nacionais, não parece absurdo inferir fosse Fernandinho uma bicha. Ou, para não cometer anacronismo, um sodomita. E será esse relato e feito – e como foi feito –, juntamente com as descrições de alguns dos grandes eventos ali encenados que queremos trazer para você, nesse bicentenário de uma Independência que ainda está longe de ser consolidada, assim como a nossa democracia e república.

O Real Theatro de São João

No local onde hoje se encontra o Teatro João Caetano foi erguido não o primeiro, mas, sem dúvida, o mais importante dos teatros das terras brasileiras. Anteriores a ele foram a Casa da ópera, do padre Ventura, que funcionara no século XVIII no Largo do Capim (Rua dos Andrades, entre General Câmara e São Pedro, destruídos com a abertura da Avenida Presidente Vargas). Destruída por um incêndio (tantos!), no período do Marquês de Lavradio, para substituí-la surgiu o Nova Ópera, construído por Manuel Luís Ferreira,  entre o palácio dos vice-reis (depois Paço Imperial) e a antiga Cadeia (Palácio Tiradentes, sede do Legislativo estadual).

Chamou-se Real Theatro de São João, em homenagem a D. João VI, e foi inaugurado em 12 de outubro de 1813, dia do aniversário do Príncipe da Beira Dom Pedro de Alcântara, depois Imperador do Brasil, como Pedro I, nascido em Portugal a 1801. Tinha capacidade para 1.200 pessoas.

Estando quasi de todo concluído o magnífico edifício do novo teatro, a que deram o nome de Real Teatro de São João, em obséquio do nome do Príncipe Regente Nosso Senhor: no dia 12 de outubro, natalício de Sua Alteza Real, o sereníssimo senhor D. Pedro de Alcântara, príncipe da Beira, para mais aumentar o público regozijo, abriu-se o referido teatro, fazendo-se nêle a primeira representação, que foi honrada com a augusta presença do Príncipe Regente Nosso Senhor, e de grande parte de sua real família, no meio de um luzidíssimo concurso de toda a fidalguia, e das pessoas mais distintas desta Côrte. Êste Real Teatro, situado no lado setentrional da espaçosa praça do Rossio, traçado com gôsto e construído com magnificência, a ponto de emular os melhores teatros da Europa, tanto pelo aparato de formosas decorações, pompa do cenário, e riqueza do vestuário, quanto pela grandeza, e suntuosidade do real camarim, cômodo, e asseio das diferentes ordens dos camarotes, amplidão da platéia, e outras qualidades, que se requerem nos edifícios dêste gênero, é um dos monumentos públicos, que começam a adornar a capital do Brasil, e a aformosear a nascente Côrte dêste novo Império (Santos, 1943, p. 414).

Juramento da futura Constituição de Portugal

Ali de sua sacada, por força de motim da tropa e revolta de parte da população, depois de marchas e contramarchas, na manhã de 26 de fevereiro de 1821, o príncipe D. Pedro, em companhia de seu irmão, D. Miguel, leu o decreto assinado por D. João VI, jurando a constituição portuguesa por elaborar. Mais tarde, pelo meio-dia, o rei em pessoa teve que também comparecer ao local para pessoalmente, de uma de suas janelas, jurar as bases da futura Constituição, por exigência popular. O povo foi ao delírio. À noite, uma vez mais, compareceu D. João VI ao Theatro, dessa vez para assistir ao espetáculo de gala em sua homenagem. Por conta desses fatos, segundo Coaracy (p. 89) em 1822 o Senado da Câmara mudou o nome do Largo do Rossio para Praça da Constituição, nome que se manteve até 1890. Há quem afirme que esse novo nove teria sido dado, por aclamação, no mesmo dia.

Segundo Vieira Fazenda, desde essa data o terraço do Real Theatro de São João passou a ser considerado lugar histórico (vol. III, p. 338).

Aquarela de Thomas Ender, foto da Biblioteca Nacional, impressa em Coaracy, p. 68. À esquerda, Rua do Sacramento (Av. Passos), em cuja casa da esquina morou José Bonifácio. Acervo Museu Bajubá
Debret, 1839. Aceitação provisória da Constituição de Lisboa, no Rio de Janeiro. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. No centro, o Pelourinho; à esquerda, a casa de José Bonifácio. Mais adiante, o Real Theatro de São João. No alto, as torres da Igreja de São Francisco de Paula. À direita, Rua do Piolho (Carioca). Coaracy, p. 62. Acervo Museu Bajubá

O libertador do Brasil

Também nesse teatro, a 15 de setembro de 1822, compareceu D. Pedro, logo em seguida ao seu retorno de São Paulo, onde declarara a Independência, no Ipiranga. Trazia no braço o laço verde da casa de Bragança, com uma placa dourada onde se lia a inscrição “independência ou morte”. Foi recebido pelo povo em delírio. O teatro estava outra vez deslumbrante, graças ao talento de Fernandinho. Por todo canto, nas paredes, encontravam-se flâmulas com  dísticos em versos, louvando o Imperador.

Aclamação de D. Pedro I

Em 12 de outubro ali teve lugar espetáculo de gala, comparecendo o Imperador, aclamado solenemente. 

Sagração e coroação de Pedro I como Imperador

Em primeiro de dezembro, outra comemoração: – Dom Pedro I havia sido sagrado e coroado como Imperador do Brasil. O dia todo foi de cerimônias, civis e religiosas, no Paço e na Catedral. Os jornais da época detalham a ornamentação.  Para comemorar, a generosidade do seu agora generalíssimo determinara fosse distribuída aos soldados, “uma tríplice ração de vinho e abundante porção de vaca, em sinal de lembrança e contemplação”. À noite,  outra vez o Theatro serviu de palco para  a sua gala.

Solenidade pelo juramento da Constituição outorgada

Na noite de 25 de março de 1824, para comemorar o juramento da Constituição do Império do Brasil, outorgada por D. Pedro I, houve sessão solene no Real Theatro de São João. Compareceu a família imperial e comitiva. Era encenada A Vida de Santo Hermenegildo. Hermenegildo de Sevilha, filho do rei visigodo Leovigildo, foi decapitado na Páscoa de 585, por ordem de seu pai. No papel do protagonista estava o ator conhecido como Bahia. No final da peça, após a decapitação, Hermenegildo/Bahia “subia aos céus” por meio de um balancim. O ator teria se desequilibrado e o balancim fez cair um pano sobre a iluminação dos bastidores, provocando grande incêndio. A família imperial havia se retirado pouco antes. O prédio foi destruído. Há quem diga tratar-se de um atentado, para assassinar Pedro I cuja impopularidade já principiava em alguns setores. Há também versão dando conta de uma carta anônima, em alemão, entregue por um criado do Paço, prevenindo a Imperatriz, à última hora.

O seu criador requereu licença para a reconstrução, o que lhe foi deferido. Em 22 de fevereiro de 1828 foi reinaugurado, com o nome de Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara. Mas em 1831, em seguida à abdicação, a turba exaltada o invadiu e depredou, exigindo a mudança de seu nome. Passou a chamar-se então Teatro Constitucional Fluminense, até 1838. Com as agitações do período regencial os espetáculos eram constantemente alvo de manifestações violentas por parte das facções em que se dividia a população. Fernandinho, seu proprietário, resolveu então fechar o teatro. Reabriu em 1838, com o nome de São Pedro de Alcântara. Em 1843 foi arrendado a João Caetano. Novo incêndio em 1851. Reconstruído e reaberto em 1855. Novo incêndio em 26 de janeiro de 1856.  Reinauguração a 3 de janeiro de 1857 com o nome de Teatro São Pedro, até 1928, quando foi demolido, por estar em ruínas. No local foi construído o Teatro João Caetano, inaugurado em 1930. Coaracy, p. 68. e 91.

– Mas quem foi Fernandinho?

Fernando José de Almeida foi cabeleireiro e personalidade famosa e influente na Corte de D. João VI.  Se há controvérsia sobre com quem veio ao Brasil (com o 2º Conde de Resende, 13º vice-rei do Brasil, segundo Vivaldo Coaracy ou com o 1º conde de Aguiar, 2º marquês de Aguiar, Dom Fernando José de Portugal e Castro, o 14º vice-rei do Brasil, depois ministro de D. João, que a ele o apresentara, segundo José Vieira Fazenda), há consenso que veio como cabeleireiro e que gozava de grande prestígio. 

Prestígio, aliás, era coisa que Fernandinho, como era tratado pelos que o conheciam, sabia angariar como poucos, naquele ambiente de intensas disputas e vaidades.

Pois graças a esse prestígio, cioso de que a cidade merecia uma casa de espetáculos digna do posto de nova sede da Monarquia portuguesa, conseguiu que o Senado da Câmara lhe cedesse, gratuitamente, uma área de terras. Ela integrava o terreno desapropriado em 1780 de Dona Beatriz de Vasconcelos (descendente de José Pizarro, secretário do Senado em 1721) para funcionar como feira de animais. Em 1791, não efetivado o mercado de animais, o Conde de Resende, José Luís de Castro, que também era o vice-rei  – 1790 a 1801 -, destinou-o para ser o rossio da cidade.   Na ocasião, o Rossio Grande, como era chamada a região, era ainda bastante rústica, com a Polé ou forca, onde atualmente está a estátua equestre de D. Pedro I. A parte onde foi construído o teatro era, no início do oitocentos”, um encharcado impraticável a qualquer serventia” (Gonçalves, 2004, p. 209). 

Mas Fernandinho queria construir um suntuoso teatro. E “insinuante e maneiroso”, com o seu jeito todo pessoal de conseguir o impossível, a partir da proteção conquistada, não apenas lhe foi cedida a terra, como também a autorização para tirar loterias, visando arrecadar recursos para a obra, além de “outros favores”.

Consta que D. João teria doado “toda a pedra de um chafariz do Largo do Capim*, e … a cantaria preparada para as obras da Sé” (atual IFCS/UFRJ, antiga Escola Politécnica). Como as obras da Sé foram interrompidas em 1752, ficaram sem uso. E Fernandinho soube bem aproveitá-las. 

Conta-se que, por conta desse desvio dos materiais da obra religiosa, quando dos seguidos incêndios que atingiram o teatro, o povo dizia ser “castigo do céu”, por  uso “pecaminosamente profano” das pedras originalmente destinadas à obra sacra. 

Contudo, o que fica de fato é a ousadia e a determinação de um cabeleireiro real dotado de pendores artísticos e muito prestígio, que soube utilizá-lo para a concretização e reconstrução de uma obra impensada.

Os sinais exibidos por esse personagem (o seu ofício principal, o modo que o nomeavam, a ousadia, a capacidade de angariar prestígio e, mesmo, seus talentos artísticos) podem ser lidos como indícios de estereótipos de uma personalidade fora da norma.

Não temos como saber ao certo, no momento, sobre a real orientação sexual de Fernandinho. Mas acreditamos que ele serve como emblema para todas as bichas e marimachas que tiveram atuação em nossa história e cultura e, entretanto, são invisibilizadas.

Veja, aqui, mais informações e imagens.

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* Mercado especial para comercialização do capim de Angola, empresa muito requisitada, a partir de 1817, para a forragem dos animais de montaria, carruagens e carga. Vendiam-se os feixes e os ricos faziam assinaturas mensais. Santos, p. 149.

Teatro Constitucional Fluminense (1831-8). Gravura/aquarela de Carlos Theremin, in Saudades do Rio de Janeiro. c. 1835. Coaracy, p. 76. Acervo Museu Bajubá.
Thomas Ender, 18--. Ruínas do prédio da nova Sé, no Largo de S. Francisco, obra jamais concluída. Posteriormente no local foi construída a Escola Politécnica. Acervo Akademie der bildenden Künste, Viena. In Cavalcanti, p. 107. Acervo Museu Bajubá.
Louis de Freycinet, 1825. Vista da sala de espetáculos na praça do Rocio, no Rio de Janeiro. Acervo particular de Cavalcanti, p. 96. Acervo Museu Bajubá
Litografia publicada no Ostensor Brazileiro, 1845-6, impresso na Litografia de Ludwig & Briggs, Rio. Praça da Constituição, vendo-se o Teatro São Pedro de Alcântara (reformado em 1838-9). Coaracy, p. 88. Acervo Museu Bajubá

Pesquisa e texto: Rita Colaço-Rodrigues

Referências: (Acervo Museu Bajubá)

CAVALCANTI, Nireu Oliveira. Rio de Janeiro: Centro histórico colonial – 1568-2015. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2016.

COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, vol. 3, pp. 86-91, 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1965.

FAZENDA, José de Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, volumes III, IV e V. Rio de Janeiro, Documenta Histórica Editora; IHGB, 2011.

GONÇALVES, Aureliano Restier. Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: terras e fatos. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2004.

SANTOS, Luiz Gonçalves dos (Padre Perereca). Memórias para servir à história do Reino do Brasil. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1943, vol. I.

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