“Uma série de outras canções relatando vivências, afetos e angústias do universo dos homossexuais e das prostitutas serve também para ilustrar até que ponto o repertório da música popular “cafona” transgride ou apenas endossa o rígido controle da moral dominante no período do regime militar. E como exemplo, cito a balada “A galeria do amor”, composição de Agnaldo Timóteo que faz referência à Galeria Alaska, tradicional ponto de encontro de homossexuais no Rio de Janeiro.
Formando uma travessia de menos de 100 metros entre as avenidas Atlântica e Nossa Senhora de Copacabana, no Posto 6, Zona Sul carioca, a Galeria Alaska tornou-se famosa a partir dos anos 60, quando chegou a ser classificada como o “maior reduto de gays do país”.
Na década seguinte sua fama de “boca maldita” foi se acentuando e o local passou a atrair também prostitutas, pivetes, traficantes, travestis e toda sorte de personagens identificados com o chamado mundo marginal do Rio de Janeiro. E é exatamente este ponto noturno da Cidade Maravilhosa – já tão decantada por suas praias, o Corcovado e o Redentor – que Agnaldo Timóteo resolveu homenagear em “A galeria do amor”, principal faixa de seu LP lançado em 1975:
NUMA NOITE DE INSÔNIA SAÍ
PROCURANDO EMOÇÕES DIFERENTES
E DEPOIS DE ALGUM TEMPO PAREI
CURIOSO POR CERTO AMBIENTE
ONDE MUITOS TENTAVAM ENCONTRAR
O AMOR NUMA TROCA DE OLHAR…
Mais que uma crônica da cena social, mostrando o espaço público como o lugar de trânsito do desejo, a balada “A galeria do amor” é um depoimento carregado de ousadia, levando-se em conta que a temática do homossexualismo no Brasil era assunto ainda revestido de uma couraça de preconceito. […]
Mas com a balada “A galeria do amor”, Agnaldo Timóteo desafiava mais uma vez este tabu, pois ali retrata a Galeria Alaska como um espaço de liberdade, acolhedor e agradável, intervindo através do discurso lítero-musical nos padrões de comportamento:
NA GALERIA DO AMOR É ASSIM
MUITA GENTE À PROCURA DE GENTE
A GALERIA DO AMOR É ASSIM
UM LUGAR DE EMOÇÕES DIFERENTES
ONDE AGENTE QUE É GENTE SE ENTENDE
ONDE PODE SE AMAR LIVREMENTE…
Além de inscrever a Galeria Alaska no roteiro geográfico da nossa música popular, a canção deu titulo ao LP de Agnaldo Timóteo, o que demonstra a intenção do artista de ampliar a carga de provocação e contestação. E, segundo o cantor, o título original da composição era exatamente “Galeria Alaska”, mas o departamento de marketing da gravadora o aconselhou a mudar, pois temia a face conservadora do público, acostumado à imagem do artista machão, que posava ao lado de leões e outras feras na capa do LP “Os brutos também amam”.
Aliás, o primeiro obstáculo que Timóteo teve que enfrentar para lançar “A galeria do amor” foi na sua própria gravadora, a EMI-Odeon: “Eles ficaram meio preocupados quando mostrei a composição, mas eu falei: ‘Gente, isso é uma realidade. Você sai à noite pra passear, chega na Galeria Alaska e encontra centenas de pessoas se paquerando. Isso é um fato real. É preciso falar disso. São milhões de pessoas que vivem dessa maneira: homens com homens,mulheres com mulheres. Não se pode mais fugir dessa realidade hoje no mundo.´”
Ainda assim, Timóteo não teria ficado também um pouco receoso de tocar neste tema naquela época? “Mas eu toquei de maneira muito respeitosa” – diz ele, “não agredi ao chefe de família, não agredi a ninguém, mas eu toquei. E além do mais, eu tenho uma personalidade muito forte; eu sou muito másculo; eu sou muito bravo. Então colocar aquelas coisas, não é como Emílio Santiago, porque Emílio é delicado; não é como Caetano Veloso, que é um homem delicado, ou o Ney Matogrosso. Eu não. Eu sou bruto; eu sou bravo; eu sou brigão. Por isso coloquei lá. E coloquei lá com todas as letras. A verdade é que eu fui muito feliz com a coragem de fazer aquela música.”
“A galeria do amor”, foi uma das primeiras canções compostas por Agnaldo Timóteo que iniciou sua carreira gravando versões de sucessos estrangeiros e músicas de outros autores e a inspiração para compor o tema surgiu depois de uma experiência vivida por ele próprio na Galeria Alaska: “Eu fiz esta canção por causa de uma noite de paquera. Eu cheguei de viagem, joguei a mala de dinheiro numa gaveta do quarto, desci, peguei meu carro e fui paquerar. E chegando ali eu vi aquele ambiente, as pessoas se olhando, os coroas paquerando os menininhos. Foi numa noite de paquera. Aquilo que eu retratei na letra foi real, absolutamente real.”
Com o sucesso da composição estava aberto o caminho para o artista sair da sombra e revelar o seu avesso: o do homem frágil, dividido, fustigado por seu lado feminino. Tanto é assim que no ano seguinte Agnaldo Timóteo voltou a desenvolver o tema de “A galeria do amor”, desta vez sem especificar o local. A sua composição “Perdido na noite”, que deu título ao LP de 1976, enfatiza aspectos já presentes na música anterior, como a noite, a solidão, a identificação com outros solitários e a defesa do amor sem preconceito: “Somos amantes do amor liberdade / somos amados por isso também / e se buscamos uma cara metade / como metade nos buscam também.”
Para Agnaldo Timóteo, “Perdido na noite” não retrata apenas a solidão de um artista na época com 39 anos e no auge da carreira; retrata também o cotidiano reprimido de milhões de pessoas anônimas que diariamente saem pelas ruas da cidade em busca do prazer e de alguma companhia. E isto ajudaria a explicar a grande vendagem alcançada por esta e outras gravações, como, por exemplo, “Eu pecador”, composição de Agnaldo Timóteo que também aborda a problemática do homossexualismo: “Senhor, eu sou um pecador / e venho confessar porque pequei/ Senhor, foi tudo por amor / foi tudo uma loucura / mas eu gostei…”
Revestida com a carga dramática do ritmo do tango, “Eu pecador”, título do LP de Timóteo em 1977 – descreve o conflito interior de um homem dividido entre a prática homossexual e uma formação religiosa repressora: “Senhor, não pude suportar / a estranha sensação de experimentar / um amor por vós não concebido / um amor proibido pela vossa lei…” E mais adiante ele ainda confessa, resignado: “Senhor, depois de se provar / é difícil parar de se amar com perigo…”
Este ousado tema de Agnaldo Timóteo guarda certa afinidade com o samba-canção “Nono mandamento”, sucesso de Cauby Peixoto nos anos 50, que também expressa a confissão de um pecador: “Senhor / aqui estou eu de joelhos / trazendo os olhos vermelhos / de chorar porque pequei…” Mas, como o próprio título indica, o pecado confesso no samba-canção “Nono mandamento” é desejar a mulher do próximo, enquanto que no tango de Agnaldo Timóteo é a prática do “amor que não ousa dizer o nome”, na expressão de Oscar Wilde.
Nascido em Caratinga, interior de Minas Gerais, e tendo recebido uma sólida formação católica de sua mãe, dona Catarina, Agnaldo Timóteo teria
retratado o seu próprio drama na composição “Eu pecador”? “Não”, prefere dizer o artista, “Eu pecador é uma música de uma multidão, é uma música de milhões, retrata um comportamento de vida que era muito discriminado, e que hoje não se questiona mais. E eu sei que foi uma coisa audaciosa demais para a época, mas eu não quero nem saber; eu tinha que fazer e fiz. Porque retrata uma realidade que não se pode questionar; o cara pode ser macumbeiro, católico, budista, protestante, se ele tem a sua tendência homossexual, ele vai viver a sua vida homossexual; não tem Cristo que dê jeito pra mudar, não tem. Alguém diz ‘ah, o cara agora é evangélico e deixou o homossexualismo’. É mentira. Isso não existe. Se a pessoa gosta, quando chega a hora ele vai namorar e pronto.”
Esses três sucessos de Agnaldo Timóteo: “A galeria do amor”, de 1975, “Perdido na noite”, de 1976, e “Eu pecador”, de 1977, formam uma trilogia: a trilogia da noite. As três canções são de autoria do cantor (fato até então pouco comum em sua carreira), deram títulos aos respectivos LPs e abordam a experiência homossexual.
Entretanto, de maneira um pouco mais velada, valendo-se do interdito, Timóteo já havia tocado neste tema em 1974, ao gravar a balada “Amor proibido”, de Clayton e da compositora Dora Lopes que, segundo o cantor, na época estava apaixonada por uma mulher e quis falar deste seu amor proibido. Timóteo se identificou com a canção e a gravou: “Já ficou entendido / que o amor que vivemos / é o amor proibido / pode o mundo inteiro falar / que eu fico contigo.”
Apesar da referência ao substantivo “entendido” – de evidente conotação homoerótica -, sublinhe-se que o amor proibido retratado na canção pode ser qualquer amor, e não apenas aquele compartilhado entre duas pessoas do mesmo sexo.
Mas esta abertura da letra é intencional por parte do artista, como o próprio Agnaldo Timóteo afirma: “Quase todas as músicas do meu repertório tem um duplo sentido. Talvez com exceção de uma ou outra, mas quase todas eu fiz questão de gravar com duplo sentido. São músicas que podem ser cantadas pelo homem, pela mulher e pelo homossexual. Eu sempre fiz questão de dar este privilégio às pessoas. Porque na verdade, se você tem prazer de estar com alguém e consegue levar este alguém para a cama, não interessa se é um homem, uma mulher ou, no caso específico, um garotão, ou uma garotona. Você leva quem você queira. E as pessoas têm que entender e respeitar isto. Não é o meu caso, não é o caso do Cauby Peixoto ou do Julio Iglesias; é o caso do ser humano. Cada pessoa deve viver a sua vida; não a vida que alguém lhe queira impor ou que a sociedade lhe queira impor.”
Outra obra aberta composta e gravada por Agnaldo Timóteo é a canção “Aventureiros”, cujos versos descrevem a ronda noturna daqueles que “marcados pela dor da solidão”, compram “amor a qualquer preço/ pagando para se sentir feliz…”. E, segundo o cantor, esta e outras baladas românticas que ele compôs sobre o tema nos anos 70 permanecem atuais. “São absolutamente atuais, porque eu continuo sendo um aventureiro, eu continuo querendo transar cada dia com uma pessoa diferente, eu continuo perdido na noite, buscando, buscando…”
Busca que também aparece em outra composição de Timóteo revestida de forte carga homoerótica: “A bolsa do Posto Três”. “Esta música eu fiz para o Paulo César Souza, um menino que morava comigo. O Paulinho era terrível. Ele saía lá de casa e ia para aqueles pontos de Copacabana paquerar aquelas bichas todas. E um dia alguém me telefonou avisando, eu fui e ele estava lá. Ai eu fiz: ‘Quantas vezes alertei / você não soube entender / quase tudo era possível / menos dividir você… / chegamos ao fim da linha / é melhor te esquecer/ viva as suas aventuras na bolsa do Posto Três / mas no fim dessa loucura / vai sentir na pele o que você me fez…’”, verso que acabou sendo um presságio terrível do que aconteceu com ele.”
De fato, algum tempo depois o companheiro de Agnaldo Timóteo tornou-se mais um nome na lista das vitimas fatais da Aids. “Mas eu sempre dizia: ‘Paulinho, tenha cuidado, olha com quem você transa, com quem você vai para a cama.’ E ele me respondia: ‘Agnaldo, quando eu vou pra cama eu não peço atestado médico. O meu tesão é mais forte do que o medo.’ E ele morreu aos 34 anos, lindo, era um negro lindo, de cabelo liso, um índio lindo, que enfeitava a minha casa, que dançava samba, era alegre, elegante, comia com a mão esquerda, se vestia impecavelmente, só comprava roupas importadas; era um menino que tinha o privilégio de ir aos Estados Unidos comigo, enfim, era uma pessoa especial que lamentavelmente foi embora porque não tinha juízo e nos fez sofrer todos, pois todo mundo era apaixonado por ele.”
Fonte: Eu Não Sou Cachorro Não. Paulo Cesar Araujo. Editora Record, 2002.