Brenda Lee: memórias de uma guerreira da Aids

Por Ubirajara Caputo*

Aos dez dias do mês de janeiro de 1948, no pequeno distrito rural de Feitoria, na cidade de Bodocó (PE), dona Andrelina Maria de Jesus deu à luz uma criança que recebeu o nome de Cícero Caetano Leonardo. Quando ainda criança, um de seus muitos irmãos lhe mostrou o rockabilly Jambalaya, que fazia enorme sucesso no Brasil devido à turnê da cantora norte-americana Brenda Mae Tarpley, conhecida como Brenda Lee. Muitos anos depois, talvez por sentir necessidade de um nome destacado, que ela qualificava como artístico, passou a autodenominar-se Brenda Lee. Ela foi uma travesti brasileira que arregaçou as mangas nos primeiros tempos da Aids, convertendo sua residência no centro da cidade de São Paulo na primeira casa de apoio para pacientes vivendo com HIV/Aids do Brasil e uma das primeiras do mundo.

Em sua primeira infância, Brenda pensava que ninguém conseguiria entender sua sensação de ser mulher. Ela foi uma criança tímida e muito admirada pela família, especialmente por sua inteligência e amorosidade com todos a sua volta. Quando Brenda tinha nove anos de idade, o casamento de seus pais passava por uma crise e dona Andrelina resolveu se mudar para o Rio de Janeiro com alguns de seus filhos. Foi só então que Brenda se alfabetizou. Ela sonhava ser médica e gostava muito de estudar, mas sua vida estudantil foi muito irregular porque nem sempre podia pagar pelos estudos ou mesmo suportar o bullying que sofria. Quatro anos mais tarde, a mãe de Brenda resolveu voltar para Pernambuco levando as filhas mulheres e dando aos filhos homens a opção de ficarem no Rio de Janeiro. Como Brenda tinha vontade de viver em uma cidade grande e planejava continuar estudando, se formar e “ser uma pessoa projetada” (Camargo, 1994, p. 218), ficou no Rio sob os cuidados de seus irmãos mais velhos. No carnaval de 1962, Brenda se vestiu de mulher pela primeira vez. Colocou um bustiê e uma saia comprida e descreve essa situação como sendo “A maior felicidade” (Villares, 1991, p. 55). Brenda e os irmãos mudaram-se para São Paulo e cresciam nela o medo de ser descoberta e o desejo de se libertar. Ela arrumou um emprego noturno na Santa Casa de Misericórdia, inventou que iria fazer uma breve viagem e ficou vinte e três anos sem ver sua família.

Durante muitos anos Brenda tentou conciliar sua aparência ambígua e jeito afeminado com a realidade que o mundo do trabalho lhe impunha. Teve muitos empregos e sua vida profissional foi uma verdadeira peregrinação. Ela associava as constantes demissões que sofria à sua homossexualidade e aparência afeminada. Aos 28 anos, Brenda começou a tomar hormônios femininos, tinha pequenos seios e deixou os cabelos crescerem. Sem nenhum motivo conhecido, mais uma vez, foi demitida e resolveu ganhar a vida por meio da prostituição.

Brenda iniciou fazendo ponto à noite na avenida Santo Amaro, região Centro-Sul da cidade de São Paulo, e nem sempre cobrava pelo programa. Foi presa e apanhou da polícia algumas vezes, até que resolveu mudar seu ponto para o centro da cidade e se prostituir entre o final da tarde e a meia-noite, para evitar as rondas policiais. Em meados dos anos 1970, Brenda morava num quarto alugado na alameda Nothmann, bairro dos Campos Elíseos, em São Paulo, que dividia com várias amigas. Como tinha um estilo de vida mais sóbrio que as demais, isto é, não bebia nem usava qualquer tipo de droga, Brenda encontrava disposição para cuidar das tarefas domésticas e fazer refeições para as demais, recebendo pelo serviço. Essa experiência foi precursora do negócio de hospedagem pelo qual Brenda (então chamada de Caetana), anos mais tarde, seria amplamente conhecida pela comunidade trans/travesti. Em 1980, Brenda decidiu tentar o trottoir em Paris, mas não se adaptou bem e voltou para o Brasil no mesmo ano.

Resolveu, então, seguir sua vocação de cuidar das colegas e começar um negócio de hospedagem para travestis. Brenda era uma sonhadora incorrigível e idealizou um lugar onde, juntamente com suas colegas de vida, pudessem ser livres, respeitadas e felizes. Alugou um imóvel na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, no bairro da Bela Vista em São Paulo, comprou alguns beliches e passou a fornecer hospedagem com café da manhã, almoço farto e roupa lavada. O negócio cresceu rapidamente, e Brenda chegou a hospedar cerca de oitenta travestis. Ainda no pensionato da Brigadeiro, Brenda começou a receber travestis vivendo com HIV/Aids. Nesses casos, para evitar constrangimentos à pessoa e problemas com as demais, mantinha-se a condição de saúde daquela moradora em segredo. Pensando em expandir seu negócio de hospedagem, em agosto de 1985, Brenda comprou o imóvel da rua Major Diogo, 779, para onde se mudou com suas hóspedes.

Naquela época, estavam em curso operações clandestinas de extermínio. Grupos armados percorriam locais de prostituição de travestis para assassiná-las sumariamente, motivados pelo aumento do número de casos de Aids. Foi nesse contexto desfavorável que algumas moradoras do pensionato foram atingidas, deixando Brenda furiosa. Ela era uma mulher corajosíssima, conhecida por ser muito combativa e ter uma espécie de consciência de classe a respeito das travestis. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Brenda disse com todas as letras o que todos suspeitavam: os ataques decorriam de uma orquestração para dizimar travestis envolvendo policiais militares. Os cinco minutos de fama concedidos às travestis em razão dessa série trágica de atentados resultaram em um ponto de virada na vida de Brenda. Ela foi procurada pela imprensa para falar dos atentados, e uma repórter perguntou:

– E se aparecer alguém com Aids, Brenda, você receberia aqui na sua pensão?

Brenda respondeu:

– Se tiver alguém com Aids e não tiver lugar pra ficar, pode vir aqui pra casa que a gente cuida sem nenhuma discriminação.

A Sra. Otília Simões (in memoriam), assistente social da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, viu a entrevista e comunicou imediatamente o Dr. Paulo Roberto Teixeira, médico responsável pelo Programa de Aids do Estado de São Paulo, daquela secretaria. O destino de Brenda estava traçado.

O Centro de Referência e Tratamento da Aids (CRT Aids) fez um convênio com Brenda, que adaptou seu pensionado para cuidar de pacientes – sobretudo travestis – egressas do sistema hospitalar, mas que precisavam receber cuidados em domicílio. Brenda abraçou a causa da Aids de corpo e alma e fez dela o sentido de sua vida. Quem conheceu seu trabalho costuma chamá-la de “mãezona” ou de “anjo bom da Aids”. Em 1992, a Casa de Apoio Brenda Lee foi formalmente constituída e passou a receber verba do Ministério da Saúde para continuar seu trabalho de acolhimento.

Durante dez anos Brenda dedicou seu patrimônio pessoal e força de trabalho para acolher pessoas vivendo com HIV/Aids, até ser assassinada por um funcionário estelionatário. Gilmar Dantas Felismino recebeu de Brenda um cheque para pagar despesas da Casa, alterou e trocou o cheque com um conhecido e, com medo de ser denunciado às autoridades, assassinou Brenda com ajuda de seu irmão no dia 28 de maio de 1996. Ambos foram condenados a treze e doze anos de prisão respectivamente, mas cumpriram apenas parte das penas em regime fechado.

No percurso da Casa de Apoio desde a morte de Brenda há diversas alterações na composição da diretoria, nos tipos de serviços prestados e nos públicos atendidos. A Casa de Apoio Brenda Lee continua sediada no mesmo local, legalmente constituída. Seu CNPJ está ativo e há uma diretoria formalmente empossada, mas não tenho informações sobre alguma atividade que esteja sendo realizada por ela.

*Ubirajara Caputo é escritor, doutor em Psicologia Social e pesquisador em memória social. É ativista do movimento social LGBT+ desde o início da epidemia do HIV/Aids, nos anos 1980. É autor do livro O caso Bruna: gênero, transexualidades e opinião pública (Annablume, 2017). biracaputo@gmail.com

Referências:

1. CAMARGO, Ana Maria Faccioli de. A Aids e a sociedade contemporânea: estudos e histórias de vida. São Paulo: Letras & Letras, 1994.

2. CAPUTO, Ubirajara. Brenda Lee: memórias entrelaçadas dos primeiros tempos da Aids. São Paulo: Editora Politeia. (no prelo)

3. VILLARES, Cristina. Brenda Lee: anjo bom da Aids. Marie Claire, São Paulo, ano I, n. 2, p. 55-62, maio 1991.

Fotografias:

Fotos 1: lesbout.com.br/critica-brenda-lee-e-o-palacio-das-princesas-um-musical-bibliografico-que-vale-a-pena/

Fotos 2: iconografiadahistoria.com.br/2020/12/29/a-vida-de-brenda-lee-a-mulher-trans-que-alterou-a-historia-da-luta-contra-a-aids-no-brasil/

Fotos 3 e 4: icmteresina.blogspot.com/2013/11/conheca-brenda-lee-o-anjo-da-guarda-das.html

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