14 de julho de 1952

Cláudia Celeste 70 anos

Se viva estivesse, Cláudia Celeste completaria hoje os seus 70 anos de idade. 

Em linhas muito breves, queremos falar sobre a primeira década de trabalho dessa artista multitalentosa e dotada de profunda consciência profissional. Há muitas páginas na internet com conteúdo sobre ela (ainda bem!) Aqui queremos destacar como ela soube agregar à sua beleza o um apurado senso de profissionalismo, dedicando-se ao aprimoramento profissional, aprendendo sobre diversas formas de expressões artísticas (desfile, balé, dança moderna, canto etc.), construindo para si respeitabilidade e conquistando reconhecimento.

 

Um acaso espetacular

Nascida em 14 de julho de 1952, em Vila Isabel, Cláudia dizia ter se iniciado na carreira artística por acaso, em 1973, quando acompanhou uma amiga cis em teste de elenco para um espetáculo de teatro de revista. O diretor a convidou para também participar do teste. E ela foi parar no elenco.

Em julho de 1973, no Teatro Rival, na Cinelândia, ela estreou no espetáculo O mundo é das bonecas. Com direção de “Yang” (Francisco Guimarães) e coreografia de “Adriano” (Lobato), o espetáculo era anunciado em todos os mais importantes veículos de imprensa como “um luxuoso show de revista”. Não era divulgado o elenco. As apresentações eram de terça a domingo, com duas sessões no domingo – às 18h30 e 23h. 

Em destaque, no anúncio, a menção: “a volta dos travestis”. É que em janeiro de 1971 foi anunciada a proibição, pela Censura Federal, de shows com travestis que não fossem exclusivamente em boates e, mesmo assim, mediante censura prévia.  “Ficarão proibidos os shows em teatros, cinemas e outras casas de diversão pública, além de sua exibição na televisão. (…) No momento, acrescentou (um censor)”, nenhum show de travesti é exibido fora das boates. (…) O chefe interino da Censura Federal, Sr. Jeová Cavalcanti, acentuou que a portaria não se aplicará às cenas que fizerem parte de uma peça teatral.” (Jornal do Brasil, 6/1/71, 1º caderno, p. 10, acervo Biblioteca Nacional). 

 Aureliano Leal, o produtor e responsável pelo Teatro Rival a partir de 1970, teria conseguido a primeira licença para voltar a exibí-los (O Globo, 14/5/2018). 

Correio da Manhã, 5/7/73. Acervo Bb. Nacional

Yang, em entrevista, disse ter sido contratado para dirigir o espetáculo. Mas não revelou quem o contratou. Possivelmente tenha sido Aureliano Leal, que na época administrava o Rival. Para Yang, aquele tinha sido “o melhor espetáculo de travesti já feito no Brasil”. Havia mais de vinte travestis em cena. Ficou em cartaz até dezembro.

O Pasquim, 1976. Acervo Bb. Nacional
Sérgio Cabral, Diário de Notícias, 4/9/73. Acervo Bb. Nacional

Assumindo a fama de diretor “durão”, “chato”, Yang mantinha a disciplina do elenco por meio de tabelas, onde registrava “todos os erros e todos os sucessos de todos os dias” e pela cobrança de multas “severas” de quem errasse. Ele preferia trabalhar com quem ainda não tinham fama. Em suas palavras, porque essas pessoas se prestariam “pra tudo aquilo que fosse necessário”. Era nos teatros e através de seus contatos no mundo das revistas que ele escolhia as melhores “girls”, como eram chamadas então as bailarinas. Época das “go-go-girls”. Depois passou a incorporar as travestis em seu elenco. E uma das mais importantes talvez tenha sido precisamente Cláudia Celeste.

 

Yang, ou Francisco Guimarães, o rigoroso diretor. O Pasquim. Acervo Bb. Nacional

Consciente do que significava aquela oportunidade para uma pessoa como ela, Cláudia empenhava-se com uma incrível pertinácia para se aperfeiçoar.

Miss Boneca Pop 1976
Ângela Leclery passando a faixa a Cláudia Celeste, 1976. Acervo Ângela Leclery

Em 1973, Luiz Garcia começou a organizar o concurso Miss Boneca Pop, no Teatro Carlos Gomes. A vencedora foi Andreia Moroni, a Miss São Paulo, que chamava muita atenção por sua semelhança com Vera Fischer. Na sua segunda edição, em 1974, no júri, grandes nomes das artes abrilhantavam o evento: Wanderléia, Edy Star, Marco Nanini, Olga Savary, entre outros. Paulete Paola, a Miss Santa Catarina, foi a vitoriosa. Andreia Moroni a coroou. 

Finalistas Miss Boneca Pop 1974, O Pasquim, ed. 272, p. 7. Acervo Bb. Nacional

Na edição de 1975, em junho, no júri estavam: Clóvis Bornay, Dercy Gonçalves e Madame Satã. A vitoriosa foi Ângela Leclery.

Satã, Dercy e a Miss Rio Grande do Sul 1975, O Pasquim, ed. 318, p. 17. Acervo Bb. Nacional

Em 1976 a vez foi de Cláudia Celeste, presente pelo menos desde 1974.

Cláudia Celeste, ..., Ângela Leclery, 1976. Acervo Ângela Leclery
Estrelíssima já em 1975
Jornal do Brasil, 2/3/75, Classificados. Acervo Bb. Nacional

Em dois de abril de 1975 , depois de adiamentos, finalmente se deu a estreia do espetáculo Era uma vez no Carnaval, com a reabertura da Boate Sucata (a casa de Ricardo Amaral, na Av. Borges de Medeiros, 1426, Lagoa). A apresentação era de Márcia de Windsor e os cantores, Sidney Magal e Mano Rodrigues. Na produção, Ricardo Amaral, em associação com a agência artística estadunidense Share & Donne. Roteiro e direção de Carlos Imperial. Coreografia de Maria Salazar. No elenco, como vedetes, além de Cláudia, Zélia Zamir, Sandra Pera, Fátima França, Rose Rosário, Marília Gibaldi, Márcia Gastaldi, Sandra Escobar, Lurdes Nascimento, Telma Rizzo, Babi Conceição, Leila Cravo, Ivi e Saleti. Parece que Cláudia era a única travesti do elenco. Mas isso não foi noticiado.

Carlos Imperial, de tão encantado por Cláudia Celeste, passou a ser visto com ela em vários lugares pela noite carioca. Sua beleza chamava a atenção da imprensa, que se referia a ela como uma “das lebres do Imperial”. Criou-se uma aura de curiosidade em torno dela e passaram a ser publicadas notinhas especulando a respeito do seu “mistério”. 

Até que foi publicado que o próprio Imperial revelara o seu nome de batismo:

“Cláudia Celeste a lebre misteriosa da escuderia do Imperial já não é tão misteriosa assim: o gordo anda espalhando por aí que  seu nominho verdadeiro é Claudionor Ferrão” (Cidinha Campos, Jornal dos Sports, 28/05/75, p. 6).

Jornal do Brasil, 15/3/75. Acervo Bb. Nacional
Cláudia Celeste, Jornal dos Sports, 28/5/75, p. 6. Acervo Bb. Nacional

Ainda antes da estreia, Cláudia já era anunciada como a promessa de ser a nova sensação das noites cariocas: 

Sonia Rezende, Jornal do Commércio, 6/3/75, p. 11. Acervo Bb. Nacional

O que se realizou e Cláudia terminou conquistando o Trofeu Lapa 77, na categoria Atração da noite carioca (Luta Democrática, 20/4/78, p. 5, acervo Bb. Nacional).

Em maio é noticiado que “mais de 6 mil pessoas já assistiram o grandioso elenco“.

Em 30 desse mês ela aparece na capa do Luta Democrática, anunciando o show sob o título “Muito charme”. Na legenda, as pilhérias com o fato de ser travesti: 

Luta Democrática, 30/5/75. Acervo bb. Nacional
Luta Democrática, 28/10/75, p. 4. Acervo Bb. Nacional

Em 28 de outubro do mesmo ano, Cláudia Celeste já era aclamada como “a estrela maior da casa (Boate Erotika, de Camilo e Alvino, na Rua Prado Júnior, Copacabana)”, no show Very, very funny, dirigido por Yang e aclamado pela imprensa como “o melhor do gênero” para boates. A casa havia se tornado, “de repente”, “a casa noturna mais frequentada pelo ‘jet-set'”. Cláudia tinha 23 anos apenas. E não parou mais.

Em 21 de novembro é anunciada no “Show sem compromisso”, na Boate Bacarat, dirigido por Carlos Barbosa. Ali tem a oportunidade de exibir seu talento como cantora. No repertório, Luís Vieira, Dolores Duran, Evaldo Gouveia, Jair Amorim, entre outros. Também em 1975, Cláudia estreia no cinema com o filme Motel, que entra em cartaz nas principais salas de exibição a partir de oito de agosto. No elenco, Bibi Vogel, Carlos Dolabela, Sueli Franco e Milton Moraes.

Em cinco de novembro de 1976, ela já é tratada como “estrelíssima” em cartaz anunciando sua participação em um dos espetáculos da Boate Cachimbão (avenida Mem de Sá, 204). Seu nome aparece com o mesmo destaque dos demais em cartaz: Carmem Costa, Cauby Peixoto e Lucienne Franco.

Jornal dos Sports, 9/11/76, p. 8. Acervo Bb. Nacional

Em 18/11/76, o cartaz aparece modificado para dar-lhe ainda maior destaque:

Em maio de 1977, sob o patrocínio do Serviço Nacional do Teatro, Funarte e Ministério da Educação e Cultura (MEC), Cláudia integra o elenco da revista É leite nelas, no Teatro Brigite Blair, em Copacabana, com a própria Brigite Blair, Carlos Leite, Marlene Morbeck, Vera Furacão e Alex Matos. Cláudia é anunciada como travesti. Ficou cinco meses em cartaz, de terça a domingo, com duas seções aos sábados e aos domingos!

 

Artista com consciência profissional

Algumas de suas marcas características eram a consciência profissional, a delicadeza no trato e o respeito pelos colegas.

Ela soube reconhecer a carreira artística como a grande oportunidade para construir uma existência fora da absoluta marginalidade a que eram relegadas as demais travestis e afeminados: “A minha profissão fez com que eu superasse todos os meus problemas psíquico e social” (sic) – Luta Democrática, 22/8/1975, acervo Biblioteca Nacional. E procurou, sempre, por toda a sua vida, aprender coisas novas, aprimorar-se – etiqueta, desfile, balé, dança moderna, canto…

  Foi atriz, cantora, bailarina, autora teatral e de composições e versões musicais, diretora e produtora. 

Já pelos cinquenta anos, Cláudia sabia operar os recursos da tecnologia de informação. Manejava relativamente bem os aplicativos de imagens para montar os cartazes de seus shows, gravava as suas próprias interpretações em CD que comercializava em seus shows e cujas capas ela mesma produzia.

Consciente da importância da preservação da memória, tentou editar um livro com imagens e minibiografias de suas colegas de profissão – O Glamour das Divas foi o título que escolheu.

Na justificativa que encaminhou, juntamente com vasto material, à Rita Colaço  (a quem convidara para colaborar na organização do livro) , Cláudia destacou:
Mais do que mera diversão, glamour(,)  luxo para seu público, repercutem até hoje para inúmeras gerações de brasileiros os desdobramentos sociais e políticos alcançados pelos pioneiros espetáculos artísticos de travestis e transformistas em nosso país. Longe de assumirem o estigma de “frescos” e “covardes” que frequentemente lhes eram atribuídos, travestis, transformistas e seus produtores, não se deixaram intimidar pela ditadura militar que tomou o poder no Brasil a partir de 1964. 
É forçoso reconhecer que, através da resistência à censura, ao preconceito e às perseguições policiais de que eram alvo preferencial, travestis e transformistas contribuíram, voluntariamente ou não, para a experimentação de algumas das principais ideias lançadas pela revolução sexual e de costumes que ocorria na década de 1960 em todo o mundo.
 

Cláudia Celeste morreu de pneumonia na madrugada de 13 para 14 de maio de 2018.

Com o material que Cláudia conseguiu coligir e que transferiu para Rita Colaço e Lenon Braga, o Museu Bajubá montará uma sala virtual em sua homenagem.

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