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DARCY PENTEADO E OS PRIMÓRDIOS DA CONSTITUIÇÃO DAS TRAVESTIS COMO SUJEITOS POLÍTICOS

Ontem postei texto onde comentava que, dentre os sítios disponíveis na internet abordando a biografia artística de Darcy Penteado, percebe-se uma clara valorização apenas da identidade de artista em sua personalidade, deixando-se de dar igual tratamento à sua identidade enquanto cidadão assumidamente homossexual, bem como à sua atuação como militante político; militante político na qualidade de um dos precursores na luta pelo reconhecimento do direito de gays, lésbicas e, sobretudo, das travestis, à isonomia sociojurídica em relação aos heterossexuais.

Aliás, foi precisamente no apartamento de Darcy Penteado, conforme me recordou Trevisan e consta de seu livro Devassos no Paraíso, que se reuniu o grupo de intelectuais e artistas gays, por conta da

“antologia de literatura guei latino-americana, organizada por Winston Leyland, fundador da Gay Sunshine Press, de São Francisco (Califórnia). Eu era um deles – diz-nos Trevisan, no Devassos. “Nesse encontro, surgiu a idéia de se formar um Coletivo para a criação de um jornal feito por e com o ponto de vista de homossexuais, que discutisse os mais diversos temas e fosse vendido mensalmente nas bancas de todo o país. Aumentado de alguns novos componentes, o grupo se cotizou e o projeto floresceu, com uma periclitante infra-estrutura financeira. [Aqui Trevisan abre uma nota: “É preciso registrar que mulheres (artistas e jornalistas) contatadas, no período, negaram-se terminantemente a colocar seus nomes no jornal. aí porque a equipe era toda constituída de homens.”] Em abril de 1978, aparecia então o número 0 do jornal Lampião – fato quase escandaloso para as pudicas esquerda e direita brasileiras, acostumadas ao recato, acima de tudo.**

Hoje quero tratar precisamente de sua participação na defesa dos direitos das travestis – naquela época referidas através do pronome masculino.

Embora na história da militância da primeira geração dos ativistas do movimento homossexual brasileiro se verifiquem atitudes que reproduzam os processos de estigmatização, notadamente em relação às travestis e às bichas – as identidades sociais que são constituídas, pelos sentidos atribuídos aos seus estilos de gênero, sob a marca do passivo sexual* -, essa não era uma prática generalizada, verificavel como se fora uma das características do movimento.

No jornal Lampião da Esquina, por exemplo, uma das matrizes do MHB e, sem dúvida, o seu veículo de informação em nível nacional, não se verificava semelhante postura. Invariavelmente ocorria publicação de matérias em defesa dos efeminados (as bichas e “os” travestis, como eram referidos então), mas também dos prostututos (os michês, garotos que faziam do sexo com gays uma atividade econômica) , e das putas.

Apenas para exemplificar, no número 23, de abril de 1980, a personagem travesti é matéria de capa: “Um Molière para Maria Leopoldina”, merecendo ainda mais dois artigos neste número. Um, na página três, de autoria de Darcy Penteado, artista plástico, escritor e também fundador e integrante do Conselho Editorial , intitulado “O travesti, este desconhecido: o papel do travesti na emancipação feminina” (sic) e, na página quatro, sob o título “Deus nos livre do ‘boom gay’”, matéria assinada pelo jornalista Francisco Bittencourt.

Nesta, Bittencourt esclarece a linha editorial do jornal, reafirmando seu compromisso com todas as lutas gerais e específicas contra todas as formas de opressão. Reitera seu interesse por todas as manifestações ditas “marginais” do então chamado “boom gay” (o crescente processo de visibilização da questão homoerótica), principalmente a “proliferação de espetáculos de travestis que está ocorrendo no Rio […] [por entender que] esse fenômeno [é] de grande importância para a conscientização da comunidade travesti, a mais marginalizada e alienada de quantas se possa imaginar entre os grupos estigmatizados.

Penteado também é o autor de uma carta endereçada ao jornal Estado de São Paulo protestando contra a postura discriminatória desse periódico em face das travestis, nas reportagens dos dias 28 e 29 de março de 1980. No articulado, Darcy denuncia os preconceitos de classe e de orientação sexual, o gigantismo da assimetria de renda, a cidadania diferenciada, traços característicos da sociedade brasileira:

De alguns anos para cá decidi assumir uma posição consciente de defesa e esclarecimento do homossexualismo, pelo fato de ser homossexual convicto, e porque, igualmente, contra ele ou sobre ele tem-se dito e escrito por aqui coisas desastrosas […]
Deixo claro que minha atuação e interesse sobre o assunto que também me pertence porque dele faço parte, advém da necessidade da sua discussão em termos liberais e abertos, portanto não preconceituosos, nem vistos de fora para dentro, como tem sido até agora.
Só não sofro discriminações pela minha sexualidade, por ser um artista versátil, que criou um certo nome em 33 anos de atuação profissional e por ter o sobrenome de uma ilustre família paulista […]
[…] Aqueles que não possuem nome famoso mas algum poder econômico, compram com ele a dose necessária de prestígio e… tudo bem! Seria facílimo então, usufruir dessas vantagens ‘na moita’, isto é, sem abrir a boca. Cômodo, inclusive mas… onde colocaria eu a minha consciência e integridade?
Falo então, neste momento, pelo homossexual comum, o desconhecido, o assalariado, o que luta e subsiste de um sub-emprego, o anônimo que é pobre (talvez negro, o que ainda piora a sua situação) e que, não querendo ou não conseguindo enquadrar-se nos padrões oficiais da heterossexualidade sofre desde a infância, na família, na escola, na igreja, no trabalho, etc., todo tipo de discriminação, o que tanto mais se agrava quanto menor é o centro populacional em que ele deva habitar. Os meios de comunicação, a tevê principalmente, degeneram ainda mais a compreensão e integração porque só mostram o óbvio e o caricato da homossexualidade. Pior ainda é a imprensa marrom que usa o homossexualismo como consumo (porque o assunto vende), infiltrando idéias errôneas e instigando a violência contra os homossexuais, como se fosse um direito de justiça.
[…]
[…] O travestismo a nível de prostituição, como tantas outras mazelas nacionais, é indiscutivelmente conseqüência da nossa fome. Mas ainda existe outro fator paralelo: nós que vivemos numa e para uma sociedade consumista, sabemos que o postulado básico do ‘marketing’ é: ‘só existe a oferta onde existe a procura’. […]

Darcy abordará o mesmo assunto no Lampião
de maio de 1980, sob o título “

Um apelo da tradiconal família Mesquita: prendam, matem e comam os travestis!

Embora a categoria tenha sido incorporada ao movimento a partir dos anos de 1995 – a letra “T”da nova denominação Movimento LGBT –, ainda nos primeiros anos do século XXI era possível verificar fortes os tensionamentos entre os “gays”, de um lado, e a representação do “feminino sexual”, isto é, as “trans” e demais “efeminados”.

Cláudia Wonder, ativista transexual, em 2005, afirma que “o pior é que devido a homofobia internalizada esse preconceito vem mais da parte dos homossexuais do que dos heteros”. E dá seu testemunho pessoal:

“Já senti o preconceito dos meus ‘iguais’ na pele. Era efeminado e, por não ser aceito nem pelos heteros e nem pelos gays, me efeminei por completo e me tornei travesti. Nunca esqueço a frase que disse quando, aos 22 anos, tomei a decisão: ‘Vou virar travesti para ser amado’” .***

Os conflitos, as contradições e paradoxos integram todas as interações humanas. Em um coletivo que se proponha a empreender uma luta de caráter político reivindicando mudanças profundas nas estruturas de pensamento, mas necessariamente constituído por sujeitos socializados no interior da mesma estrutura frente a qual se irresignam, seria impensável imaginar não aparecessem.

Darcy Penteado, porém, foi daqueles raros que, escapando ao pensamento da maioria em sua época, se posicionou de forma veemente na defesa de todos os segmentos alvo de desqualificação por conta de sua orientação sexual e identidade de gênero – fossem gays, lésbicas ou os afeminados, aos quais tradicionalmente se desferiu e ainda desferem as maiores desqualificações e os atos de maiores violência, por representarem uma outra forma de personificação dos negativos sentidos atribuídos ao passivo sexual.

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* Ver MISSE, Michel. O Estigmaa do Passivo Sexual. RJ: 1979, Achiamé/Socii.
** TREVISAN, Joáo Silvério. Devassos no Paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3ª edição revista e ampliada. SP: Record.
*** Este trecho integrou o artigo intitulado “Em busca de formas mais harmoniosas”, de autoria da Cláudia Wonder e publicado na revista virtual Gonline em 2005, encontrando-se, na ocasião, disponível no sítio http://gonline.uol.com.br;wonderground/claudia/claudia.shtml. Atualmente ele pode ser encontrado em http://inovaglttb.blogspot.com/2005_07_17_archive.html.

Sugiro também uma visita ao sítio abaixo, onde encontra-se uma resenha do livro da Wonder, o Olhares de Cláudia Wonder – crônicas e outras histórias:
http://opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/818009.html

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