Carta de Darcy Penteado dirigida à Família Mesquita, proprietária do Jornal O Estado de São Paulo e publicada no jornal alternativo EM TEMPO de 17 a 30 de abril de 1980, pág. 19, nº 104, ano 3:
“Darcy Penteado roda a baiana e responde à família Mesquita:
‘Cerca de cinco mil travestis se espalham hoje em regiões ricas ou pobres, dominando a noite e as callçadas. Os moradores não suportam mais a situação e a impotência da Polícia. Mas a Justiça lhes dá cobertura e a Polícia não os prende porque no Código Penal, não há como enquadrá-los’.
Assim, o mais influente diário brasileiro, O Estado de São Paulo, dava início a uma série de reportagens, investindo contra os travestis que batem calçada na capital paulista. A família Mesquita, proprietária do jornal e guardiã da moral das classes dominantes há pelos menos um século (sic), dava sua contribuuição para avolumar ainda mais a perseguição ao homossexualismo (sic) no país.
O Pintor e escritor Darcy Penteado, militantes (sic) do novíssimo movimento homossexual e um dos principais articuladores do nanico Lampião, enviou ao Estadão uma densa resposta às reportagens, em defesa dos homossexuais, na qual reivindica o direito do cidadão dispor livremente do próprio corpo e aponta as desigualdades sociais como um dos fatores que originaram o fenômeno do ‘travestismo’. A família Mesquisa não deu bola para a carta do Darcy. Em primeira mão, EM TEMPO transcreve a seguir a íntegra do documento, um texto importante para o debate atual dos rumos do movimento de defesa das minorias.
De alguns anos para cá decidi assumir uma posição consciente de defesa e esclarecimento do homossexualismo, pelo fato de ser homossexual convicto, e porque, igualmente, contra ele ou sobre ele tem-se feito, dito e escrito por aqui coisas desastrosas: mesmo com as melhores intenções os nossos estudiosos vão ainda procurar nas estamtes de Freud a explicação para o que acontece nas sarjetas tupiniquins. Pode? O que dizer então dos não estudiosos ou desinformados?
Deixo claro que a minha atuação e interesse sobre o assunto que também me pertence porque dele faço parte, advém da necessidade da sua discussão em termos liberais e abertos, portanto não preconceituosos, nem vistos de fora para dentro, como tem sido até agora.
Só não sofre (sic) discriminação pela minha sexualidade, por ser um artista versátil, que criou um certo nome em 33 anos de atuação profissional e por ter o sobrenome de uma ilustre família paulista, o que cria um certo respeito, não sei bem a razão.
Afinal, qualquer homossexual que pertença a uma família tradicional (e não existe nenhuma que não ostente pelo menos um, em cada geração), recebe a mesma condescendência e aceitação por parte dos ‘normais’. Igualmente, aqueles que não possuem nome famoso mas algum poder econômico, compram com ele a dose necessária de prestígio e… tudo bem! Seria facílimo então, usufruir dessas vantagens ‘na moita’, isto é, sem abrir a bboca. Cômodo, inclusive mas… onde colocaria eu a minha consciência e integridade?
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Existem dois esclarecimentos, talvez primários para os estudiosos, mas que são básicos como ponto de partida para a discussão do tema. Primeiro: travestismo e homossexulaismo são gêneros diversos de comportamento, sendo o travestismo uma das muitas modalidades de homossexualismo. Segundo: o homossexualismo
não é patológico, isto é, não é uma doença, nem física, nem mental, conforme conncluiu, por exemplo em 1975 a Associação Americana de Psiquiatria. Tão absurdo julgá-lo uma doença como considerar patológicos, igualmente, os indivíduos canhotos. Portanto a patologia da violência e do crime tanto podem aparecer indiscriminadamente no homo como no hetero e se essa incidência é bem mais comum entre os heterossecuais é porque, logicammente, o número deles é bem maior, sendo que o total, mesmo aproximado de homos no mundo todo, pelo próprio fator da repressão, é impossível comprovar (que o diga Kinsey).Outro ponto nas reportagens, este porém bem mais grave, é que tanto os entrevistados como o próprio jornal não propõem qualquer solução além da repress
ão policial aberta a todos os homossexuais (uma vez que a palavra travesti e homossexual se confundem no texto). E ainda uma semi-velada incitação à vilência, como revanche pela violência praticada pelos travestis (e os heteros, marginais ou não, também não as praticam?).
É preciso ter em mente que numa civilização neurotizada como a nossa, os justiceiros voluntários estão sempre pronttos a entrar em ação à espera apenas de um sinal, em nome de um ideal qualquer ou simplesmente à procura do prazer de uma aventura sádica, principalmente quando sintam-se acobertados e garantidos pelo sistema. Quantos travestis (ou homossexuais, se preferirem) ou prostitutas já não foram assassinados assim?
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A repressão é para alguns o caminho mais fácil: na Rússia os homossexuais são confinados em ‘hospitais psiquiátricos’, como os dissidentes políticos. Durante o nazismo, foram vitimados de 50 a 80 mil homossexuais, nos campos de concentração (pela sua preferência sexual, independente de raça, religião ou partidarismo político) e ninguém se lembrou de compor para eles um ‘Holocausto’. E aqui ao lado, atualmente, na Argentina de Vidella, os homossexuais são perseguidos, cumprem prisão ou têm que exilar-se em outros países, exclusivamente pelo seu fator sexual. Os senhores sabiam disto?
A prostituição pelo travestismo é um fenômeno novo no enorme painel da sexualidade humana, sendo que no Brasil ele está atingindo proporções inimagináveis! Por que aqui, especificamente? Um inglês amigo meu, recém-chegado a São Paulo, ficou espantado com o número de travestis que viu prostituindo-se nas nossas ruas. “Na Inglaterra o travestismo é uma opção, falou. Alguns se prostituem, mas em geral não necessitam porque têm outros trabalhos”. Constata-se então que a prostituição do travesti aparece no Brasil como um dos muitos espelhos da nossa miséria, da nossa desigualdade social e econômica e, conssequentemente do elitismo do nosso poder político. É fato comprovado que o travesti-prostituto vem em sua maioria das camadas proletárias da nossa sociedade e que antes de adotar como embalagem o traje feminino, quase sempre imigrou de um lugar menor para uma cidade grande. Com formação educacional primária, calejado desde a infância na sua cidade pela incompreensão familiar e pela opressão social, chega por aqui só com a coragem para batalha, como eles dizem, e a sagacidade (que algumas vezes advem, curiosamente, da sua condição sexual), mas inaptos, mesmo para os sub-empregos, para os quais os patrões também dão prioridade aos heteros, ‘porque não desmunhecam’.
Entenda-se que não pretendo fazer nenhuma apologia do travestismo, ainda menos do que seja acrescido de qualquer crime previsto pela lei. Mas defendo o direito essencial a todos nós, constante da Carta dos Direitos Humanos, de cada um dispor livremente do seu corpo e da sua mente, à critério da própria consciência. O travestismo a nível de prostituição, (sic) como tantas outras mazelas nacionais, é indiscutivelmente consequência da nossa fome. Mas ainda existe outro fator paralelo: nós que vivemos numa e para uma sociedade consumista, sabemos que o postulado básico do ‘marketing’ é: só existe oferta onde existe a procura’. Parece incrível, mas a opinião mais sábia e poderada (sic) entre as das várias pessoas, autoridades ou não, entrevistadas pelo ‘Estado’, foi a do guarda-noturno Cícero Araujo, que disse: ‘A cada momento me pergunto se a anormalidade de certas pessoas que se envolvem com os travestis não será mais grave do que a do próprio ‘anormal’. (As aspas do anormal são minhas uma vez que o repórter discretamente as omitiu – sic).
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Porque o travestismo de rua surgiu também como uma exigência do mercado sexual das grandes cidades e, estranhem os leigos, para servir o mercado heterossexual – sic (ou o que se esconde sob a aparência dele); e também como válvula de escape para os homoossexuais não assumidos (em número tão grande que é capaz de sustentar profissionalmente 5.000 travestis, só em São Paulo!).
Essa clientela, é, em sua maioria composta de respeitáveis chefes de família que não têm (ou não tiveram, no devido tempo), a coragem ou a possibilidade de procurar relacionamentos com outros homossexuais seus iguais, recorrendo então ao travesti, que na maneira deles de ver, é quase uma mulher…
O divertido nesse enovelado de desculpas é que a moral vigente, mesmo sabendo de tudo, põe olhos generosos sobre o fato para não abalar os alicerces do sistema. Mais divertido ainda, conforme depoimentos de muitos travestis, é que são quase sempre eles, os travestis, os que cumprem a função ativa no ato sexual… Quem entende o porque de tudo isso?… E o que está verdadeiramente errado? O sistema proporciona (quando não impõe) mais facilidades de vida ao homossexual para que ele negue sua natureza adotando as regras e comportamentos heteros, aqueles que convêm ao sistema. O homossexual que os aceita, aguenta o quanto pode mas… mais cedo ou mais tarde escapa pelas tangentes porque ninguém é de ferro.
‘Faça por não demonstrar e nós faremos de conta que não estamos vendo’, dizem as convenções, isto até que os resultados dessa mistificação transbordem em forma de mazelas sociais, o que nenhum ‘band-aid’ de última hora consegue esconder, muito menos curar. Reprimir? Temos eloquentes exemplos na história, de como as repressões levam a grandes catástrofes. Lembremos por exemplo do extermínio dos judeus…
Mas se for para agir de maneira correta, vamos por as mãos nas consciências pesadas e pensar na reforma (ou abertura, já que a palavra anda tão modernosa) que seja prá valer, política e socialmente. Com uma reformulação ideal do sistema, a qual deverá ser de baixo para cima e de dentro para fora, os nossos mais graves problemas, como a fome, a má distribuição de terras, o servilismo aos capitais estrangeiros, a marginalização do homem do campo, a sub-vida e a consequente violência dos grandes centros urbanos, a infância abandonada, a destruição dos nossos sistema (sic) ecológicos de sustentação, a burocracia institucionalizada, a corrupção generalizada, e vários outros flagelos que os governantes conhecem melhor do que eu – assim como alguns problemas menores e decorrentes, como este da prostituição dos travestis, se abrandarão ou talvez até desapareçam. Só que apenas pregando o esparadrapo por cima não resolve… Mas se for para continuar na mesma, convem importar ‘dand-aids’ grandes, tamanho família da Rússia, da Alemanha nazista, ou da Argentina, que é mais perto.
Darcy Penteado (Em nome do jornal Lamp
ião)”
Diagramação do original.