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Babados da hora

Devolvam-nos a nossa História

“- É bom saber que o pai do samba era homossexual e que o pai do Modernismo também era.”*

Esta frase é de Paulo Lins, autor de “Desde que o samba é samba”, recém lançado pela editora Planeta; o mesmo autor de Cidade de Deus, que percorreu estrondoso sucesso, chegando a ser transformado em filme.

A frase de Paulo se refere a Ismael Silva, fluminense de Jurujuba, Niteroi, RJ, onde nasceu em 14 de setembro de 1905 e com três anos de vida foi com sua mãe, viúva, morar no Estácio. Compositor, instrumentista e cantor, Ismael foi, juntamente com outros músicos, um dos fundadores do samba carioca e das escolas de samba – através da Deixa Falar, cujo primeiro desfile se deu em 1929.  É autor de cerca de cem composições, muitas das quais dadas em “parceria” em troca de gravação – fato comum na época e que, com Ismael, de seu através de Francisco Alves. As mais conhecidas são Se Você Jurar, Antonico, Tristezas Não Pagam Dívidas. 
Ismael vestia-se com esmero e, segundo Vinícius de Moraes, tinha “olhos doces e fala educada”, o que lhe mereceu desse compositor a alcunha de “São Ismael“. Negro, incomodava-se com a forma preconceituosa pela qual o cantor Francisco Alves se referia a ele como “o negro de alma branca”. 
Em 1965 viu-se na contingência de precisar solicitar ao Secretário Municipal de Turismo, através das páginas do jornal Correio da Manhã, convite para participar dos desfiles das agremiações que fora um dos fundadores. Não foi atendido. Em resposta, Ismael escreve outra vez ao jornal declarando que “é injusto que as criações recebam auxílio do governo, enquanto o criador cai no esquecimento.” 
Somente em 1973 é que a Secretaria de Turismo decide conceder-lhe o direito a dois ingressos em cadeiras cativas nos desfiles carnavalescos das Escolas de Samba. No ano seguinte, porém, o artista sofre o constrangimento de se vêr barrado na entrada, sendo assim impedido de assistir aos desfiles. Em 1977 recebe os convites em sua casa. No entanto, o seu lugar não era mais nas cadeiras cativas, mas, sim, na arquibancada.
A frase de Paulo Lins que abre este texto refere-se igualmente a Mário de Andrade, escritor, musicólogo, crítico de arte, folclorista paulistano, nascido em 9 de outubro de 1893. Autor de Macunaíma, sua obra mais reconhecida e lembrada, foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna em 1922, em São Paulo. Neste mesmo ano publica outro de seus livros bem conhecidos, Pauliceia Desvairada,  tido como o primeiro livro de poemas modernistas.
O elo comum entre os dois, além do fato de ambos serem artistas de talento, reconhecidos em seus campos de especialização, é o fato de sua homossexualidade mantida no sussurro dos tabus. 
Do mesmo modo que a de Pedro Nava, escritor e memorialista, cujo suicídio decorrente de chantagens de um seu michê foi aspecto sumariamente suprimido na notícia de sua morta, por decisão de Ziraldo (veja aqui).
Marcada pelo preconceito, a homossexualidade apenas é mencionada (destacada com letras garrafais) quando se trata da esfera penal. Assim, os bárbaros assassinatos das travestis são noticiados pelos veículos da imprensa sensacionalista com grande destaque, sempre, porém, por intermédio da ótica desqualificadora: “traveco” é, usualmente, o termo mais preferido por esses jornalistas.
Quando se trata de mencionar personalidades que grande contribuição prestaram à nossa cultura e que eram homossexuais, esse aspecto de suas vidas em geral é suprimido.
Ocultando-se a peculiaridade da orientação sexual quando se trata de personagens que auferiram prestígio e reconhecimento em suas áreas, pela contribuição que prestaram à nossa cultura e, ao contrário, fazendo dela o aspecto principal de suas personalidades com o claro sentido da desqualificação, quando se trata de pessoas vitimadas pela violência fruto do nosso totalitarismo cultural, seguimos a realimentar o preconceito, as práticas discriminatórias, os gestos de escánio, a letalidade cotidiana do ódio ao diferente. 
Parabenizo a decisão do escritor Paulo Lins de tratar “abertamente do homossexualismo de Ismael Silva”, numa decisão consciente do dever de posicionar-se pública e policitamente em torno de um assunto que em nosso país é tratado com golpes de lâmpadas flourescentes na cabeça, murros, golpes de baioneta, facadas, chutes, pedradas, tiros, campanhas desqualificatórias e deturpadoras por parte de setores evangélicos, católicos e outros conservadores.
Como diz o próprio Paulo Lins: “Se não falasse do assunto, estaria sendo preconceituoso. Foi uma investida contra o preconceito” (LINS in VIANNA, 2012).
Assim como a nossa população negra conquistou o direito de ter a sua história resgatada e divulgada, gays, lésbicas e travestis não podem mais continuar a ter a sua, a história da sua contribuição para a cultura, as artes e a política nacional suprimida, invisibilizada.
Até a data de hoje, por exemplo, nenhum parlamentar municipal teve a dignidade de propor o nome de Lota Macedo Soares ao parque de sua criação – o Aterro do Flamengo, tombado por norma federal, (“inscrição nº 39 no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico de 28.07.1965“). 
A autoria do  Parque tem sido usualmente usurpada e atribuida a quem apenas autou como um dos tantos colaboradores que ela convidou a participar de sua conpceção original, integrante de seu Grupo de Trabalho, conforme reconheceu publicamente o governador Carlos Lacerda:
[Ela] morreu sem o parque, que lhe foi tomado pela politicagem e a chicana. Mas o que fica do parque, se ele existe, se ele sobrevive, tudo isso se deve àquela miúda e franzina criatura, toda nervos, toda luz, que se chamou Dona Lota.”
 No entanto, ainda hoje a Prefeitura não dá a esse espaço urbano de importância singular a proteção que ele merece. Na página da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, o Parque de Lota é referido com o nome de Parque Brigadeiro Eduardo Gomes e Carlos Lacerda (Parque do Flamengo), não tendo sido objeto de qualquer ligislação protetora de âmbito municipal ou estadual (tombamento).

A paixão de Lota no trabalho contagiava a todos, tendo sido determinante para que a especialista em recreação, Ethel Bauzer Medeiros,  anuisse ao convite que ela lhe formulara:

Como diz a doutora em antropologia Lúcia Arrais Morales, 

Como já dizia o antropólogo Luiz Mott ainda nos anos da década de 1980, “a César o que é de César, aos gueis o que é dos gueis”. 
– Devolvam-nos a nossa História!
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* VIANNA, Luiz Fernando. O reencontro do ritmo: Quinze anos após lançar o sucesso “Cidade de Deus”, superar cobranças e uma depressão, Paulo Lins finalmente publica seu segundo romance, “Desde que o samba é samba”. In: Jornal O Globo, Segundo Caderno, Terça-feira, 03 de abril de 2012, página 1.
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