Dia da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Hoje comemoramos o Dia da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Inspirada nas ideias iluministas e na revolução estadunidense de 1776, traz os ideais hegemonizados no interior da Revolução Francesa (1789-1799) – machista, misógina. Composta por dezessete artigos e um preâmbulo, proclama a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão como direitos naturais, inalienáveis, imprescritíveis e sagrados para os homens. Sua concepção de sujeito de direito não abarcava as mulheres ou os escravizados.
Inconformada com seu teor misógino, Olympe de Gouges (pseudônimo de Marie Gouze {1748–93}, escritora e militante revolucionária francesa) elaborou, em setembro de 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Como outros dos seus escritos políticos, este também foi dirigido à Rainha Maria Antonieta e encaminhado para diversos deputados na Assembleia Geral, para diretores de jornais e para os vários clubes políticos existentes. Seu objetivo era que fossem debatidos, o que não ocorreu. É o primeiro documento da revolução a propor a equiparação de direitos entre homens e mulheres.
Enquanto a Declaração dos Direitos do Homem proclama em seu artigo primeiro “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser fundadas no bem comum” (pelo que se infere ser a não cidadania das mulheres e a escravidão um “bem comum”, isto é, comum para os homens), a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã rebate: “a Mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos“.
O texto de Olympe de Gouges, claro está, não foi aprovado. O da Declaração dos Direitos dos Homens, sim. Foi aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte revolucionária francesa, em 26 de agosto de 1789, e definitivamente votado em 2 de outubro do mesmo ano.
Esse texto, com os direitos do homem, inspirou as declarações que se seguiram, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948.
O “prêmio” recebido por Olympe de Gouges foi ser guilhotinada, em 3 de novembro de 1793, no contexto do Terror, aos 43 anos de idade, condenada como contrarrevolucionária e denunciada como uma mulher “não natural”.
Quando os jacobinos instauraram o Terror, todas as manifestações dissidentes foram proibidas. De Gouges se negou a obedecer. A Revolução tornara-se um feroz instrumento opressivo para todas as mulheres e letal para as que se insurgissem:
“o presidente da Comuna de Paris, Pierre-Gaspard Chaumette (um dos arquitetos do período do Terror), usou de Gouges como exemplo para advertir às mulheres […]
‘Lembrem-se dessa mulher masculinizada, da Olympe de Gouges desavergonhada que abandonou todos os cuidados domésticos para envolver-se na República. […] Esse abandono das virtudes do seu sexo a levou à guilhotina.’
Para Amanda Foreman, ‘é uma terrível ironia que uma das revolucionárias mais eloquentes do século 18 tenha sido executada na Praça da Concórdia [em Paris], acusada de trair a revolução, e a pergunta é por quê.’
‘Acredito que é porque, como mulher, ela entrou na esfera política e utilizou as ferramentas supostamente masculinas da razão, da criatividade e da lógica para promover uma agenda feminista’, afirma a historiadora.” (BBC News Brasil, 2022)
O texto contém dezessete artigos, um prefácio e um posfácio. Por ser pouco conhecido, nós o transcrevemos, na íntegra, logo a seguir:
Autoria: Rita Colaço-Rodrigues
Revisão: Luiz Morando
Atualização: 28 ago 24, 16h59
Declaração dos Direitos da Mulher, por Olympe de Gouges
Preâmbulo
Mães, filhas, irmãs, representantes femininas da nação pedem para serem constituídas como uma assembleia nacional. Considerando que a ignorância, a negligência ou o desprezo pelos direitos da mulher são as únicas causas dos infortúnios públicos e da corrupção governamental, elas resolveram estabelecer em uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher: para que, estando constantemente presente a todos os membros do corpo social, esta declaração possa sempre lembrá-los de seus direitos e deveres; para que, estando sujeita a todo momento à comparação com o objetivo de toda e qualquer instituição política, os atos dos poderes das mulheres e dos homens possam ser mais plenamente respeitados; e para que, sendo fundadas doravante em princípios simples e incontestáveis, as demandas das cidadãs possam sempre tender à manutenção da constituição, da boa moral e do bem-estar geral.
Em consequência, o sexo que é superior em beleza e coragem, necessário nos sofrimentos maternos, reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã.
- A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais podem ser baseadas apenas na utilidade comum.
- O propósito de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis da mulher e do homem. Esses direitos são liberdade, propriedade, segurança e, especialmente, resistência à opressão.
- O princípio de toda soberania repousa essencialmente na nação, que é apenas a reunião da mulher e do homem. Nenhum corpo e nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente da nação.
- A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo o que pertence a outro; portanto, o exercício dos direitos naturais da mulher não tem outros limites senão aqueles que a tirania perpétua do homem lhe opõe; esses limites devem ser reformados de acordo com as leis da natureza e da razão.
- As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações que sejam prejudiciais à sociedade. Nenhum obstáculo deve ser colocado no caminho de qualquer coisa que não seja proibida por essas sábias e divinas leis, nem ninguém pode ser forçado a fazer o que elas não exigem.
- A lei deve ser a expressão da vontade geral. Todas as cidadãs e cidadãos devem tomar parte, pessoalmente ou por seus representantes, em sua formação. Ela deve ser a mesma para todos. Todas as cidadãs e cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, devem ser igualmente admissíveis a todas as dignidades, cargos e empregos públicos, de acordo com sua capacidade, e sem nenhuma outra distinção além daquela de suas virtudes e talentos.
- Nenhuma mulher é isenta; ela é indiciada, presa e detida nos casos determinados pela lei. Mulheres como homens obedecem a esta lei rigorosa.
- Somente punições estritamente e obviamente necessárias devem ser estabelecidas pela lei, e ninguém pode ser punido exceto em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do momento da infração e legalmente aplicada às mulheres.
- Qualquer mulher sendo declarada culpada, todo o rigor da lei é exercido.
- Ninguém deve ser perturbado por suas opiniões fundamentais; a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, assim como deve ter igualmente o direito de subir à tribuna, desde que essas manifestações não perturbem a ordem pública estabelecida pela lei.
- A livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos mais preciosos direitos da mulher, uma vez que essa liberdade assegura o reconhecimento dos filhos por seus pais. Toda cidadã pode, portanto, dizer livremente: Eu sou a mãe do seu filho; um preconceito bárbaro [contra mulheres solteiras terem filhos] não deve forçá-la a esconder a verdade, desde que a responsabilidade seja aceita por qualquer abuso dessa liberdade em casos determinados pela lei [as mulheres não têm permissão para mentir sobre a paternidade de seus filhos].
- A salvaguarda dos direitos da mulher e da cidadã requer poderes públicos. Esses poderes são instituídos para a vantagem de todos e não para o benefício privado daqueles a quem são confiados.
- Para a manutenção da autoridade pública e para as despesas de administração, a tributação de mulheres e homens é igual; ela participa de todos os serviços de trabalho forçado, de todas as tarefas penosas; ela deve, portanto, ter a mesma proporção na distribuição de lugares, empregos, cargos, dignidades e na indústria.
- As cidadãs e os cidadãos têm o direito, por si mesmos ou por meio de seus representantes, de ter demonstrada a eles a necessidade de impostos públicos. As cidadãs só podem concordar com eles mediante admissão de uma divisão igual, não apenas na riqueza, mas também na administração pública, e determinar os meios de repartição, avaliação e coleta, e a duração dos impostos.
- A massa de mulheres, unindo-se aos homens no pagamento de impostos, tem o direito de responsabilizar todos os agentes públicos da administração.
- Qualquer sociedade em que a garantia de direitos não esteja assegurada ou a separação de poderes não esteja estabelecida não tem constituição. A constituição é nula e sem efeito se a maioria dos indivíduos que compõem a nação não tiver cooperado em sua elaboração.
- A propriedade pertence a ambos os sexos, unidos ou separados; é para cada um deles um direito inviolável e sagrado, e ninguém pode ser privado dela como verdadeiro patrimônio da natureza, exceto quando a necessidade pública, certificada por lei, o exigir manifestamente, e então sob condição de justa indenização antecipada.
Posfácio
Mulheres, acordem; o toque da razão soa por todo o universo; reconheçam seus direitos. O poderoso império da natureza não está mais cercado por preconceito, fanatismo, superstição e mentiras. A tocha da verdade dispersou todas as nuvens de loucura e usurpação. O homem escravizado multiplicou sua força e precisa da sua para quebrar suas correntes. Tendo se tornado livre, ele se tornou injusto com sua companheira. Ó mulheres! Mulheres, quando vocês deixarão de ser cegas? Que vantagens vocês reuniram na Revolução? Um desprezo mais acentuado, um desdém mais conspícuo. Durante os séculos de corrupção, vocês apenas reinaram sobre a fraqueza dos homens. Seu império está destruído; o que resta para vocês então? Crença firme nas injustiças dos homens. A recuperação de seu patrimônio fundada nos sábios decretos da natureza; por que vocês deveriam temer um empreendimento tão bonito? . . . Quaisquer que sejam as barreiras colocadas contra vocês, está em seu poder superá-las; vocês só precisam querer. Passemos agora ao relato terrível do que você tem sido na sociedade; e já que a educação nacional é uma questão neste momento, vamos ver se nossos sábios legisladores pensarão sensatamente sobre a educação das mulheres.
As mulheres fizeram mais mal do que bem. A coação e a dissimulação foram seu destino. O que a força tirou delas, a astúcia retornou a elas; elas recorreram a todos os recursos de seus encantos, e o homem mais irrepreensível não resistiu a elas. Veneno, a espada, as mulheres controlavam tudo; elas ordenavam crimes tanto quanto virtudes. Durante séculos, o governo francês, especialmente, dependeu da administração noturna das mulheres; os funcionários não guardavam segredos de sua indiscrição; postos de embaixador, comandos militares, o ministério, a presidência [de uma corte], o papado, o colégio de cardeais, em suma, tudo o que caracteriza a loucura dos homens, profano e sagrado, foi submetido à cupidez e ambição deste sexo antes considerado desprezível e respeitado, e desde a revolução, respeitável e desprezado. . . .
Sob o antigo regime, todos eram cruéis, todos culpados. . . . Uma mulher só tinha que ser bonita e amável; quando possuía essas duas vantagens, via cem fortunas a seus pés. . . . A mulher mais indecente podia se tornar respeitável com ouro; o comércio de mulheres [prostituição] era um tipo de indústria entre as classes mais altas, que doravante não gozará mais de crédito. Se ainda o fizesse, a Revolução estaria perdida e, na nova situação, ainda estaríamos corrompidos. Pode a razão esconder o fato de que qualquer outro caminho para a fortuna está fechado para uma mulher comprada por um homem, comprada como uma escrava das costas da África? A diferença entre elas é grande; isso é conhecido. A escrava [isto é, a mulher] comanda seu mestre, mas se o mestre lhe dá sua liberdade sem compensação e em uma idade em que a escrava perdeu todos os seus encantos, o que essa mulher infeliz se torna? O brinquedo do desdém; até as portas da caridade estão fechadas para ela; ela é pobre e velha, dizem; por que ela não sabia como fazer fortuna?
Outros exemplos ainda mais tocantes podem ser fornecidos à razão. Uma jovem sem experiência, seduzida pelo homem que ama, abandona os pais para segui-lo; o ingrato a abandona depois de alguns anos e quanto mais velha ela tiver crescido com ele, mais desumana será sua inconstância. Se ela tiver filhos, ele ainda a abandonará. Se for rico, acreditará estar dispensado de compartilhar sua fortuna com suas nobres vítimas. Se algum compromisso o vincular a seus deveres, ele o violará contando com o apoio da lei. Se for casado, todas as outras obrigações perdem sua força. Que leis então faltam para serem aprovadas que erradicariam o vício até suas raízes? A da divisão igualitária das fortunas [familiares] entre homens e mulheres e da administração pública de seus bens. É fácil imaginar que uma mulher nascida de uma família rica ganharia muito com a divisão igualitária da propriedade [entre os filhos]. Mas e a mulher nascida em uma família pobre com mérito e virtudes; qual é o seu destino? Pobreza e opróbrio. Se ela não se destacar em música ou pintura, ela não poderá ser admitida em nenhuma função pública, mesmo que seja totalmente qualificada. . . .
O casamento é o túmulo da confiança e do amor. Uma mulher casada pode dar bastardos ao marido impunemente, e até mesmo a fortuna da família que não lhes pertence. Uma mulher solteira tem apenas um direito fraco: leis antigas e desumanas recusam a ela o direito ao nome e aos bens do pai de seus filhos; nenhuma lei nova foi feita sobre esse assunto. Se dar ao meu sexo uma consistência honrosa e justa é considerado neste momento paradoxal da minha parte e uma tentativa do impossível, deixo aos homens futuros a glória de lidar com esse assunto; mas enquanto esperamos, podemos preparar o caminho com educação nacional, com a restauração da moral e com acordos conjugais.
Formulário para um contrato social entre homem e mulher
Nós, ________ e ________, movidos por nossa própria vontade, nos unimos pelo tempo de nossas vidas e pela duração de nossas inclinações mútuas sob as seguintes condições: Pretendemos e desejamos tornar nossa riqueza propriedade comunal, reservando o direito de dividi-la em favor de nossos filhos e daqueles por quem possamos ter uma inclinação especial, reconhecendo mutuamente que nossos bens pertencem diretamente a nossos filhos, de qualquer leito que venham [legítimos ou não], e que todos eles, sem distinção, têm o direito de levar o nome dos pais e mães que os reconheceram, e nos impomos a obrigação de subscrever a lei que pune qualquer rejeição do próprio sangue [recusar-se a reconhecer um filho ilegítimo]. Da mesma forma, nos obrigamos, no caso de uma separação, a dividir nossa fortuna igualmente e a reservar a parte que a lei designa para nossos filhos. No caso de uma união perfeita, aquele que morrer primeiro abrirá mão de metade de sua propriedade em favor dos filhos; e se não houver filhos, o sobrevivente herdará por direito, a menos que o moribundo tenha alienado sua metade da propriedade comum em favor de alguém que ele julgue apropriado. [Ela então passa a defender seu contrato contra as inevitáveis objeções de “hipócritas, puritanos, o clero e toda a gangue infernal.”]
Referências
Olympe de Gouges. A Declaração dos Direitos da Mulher (setembro de 1791). LIBERTY, EQUALITY, FRATERNITY: EXPLORING THE FRENCH REVOUTION. Acessado em; 26 ago. 2024. O texto da Declaração dos Direitos da Mulher é oriundo de: The French Revolution and Human Rights: A Brief Documentary History. Traduzido, editado e com uma introdução por Lynn Hunt (Boston/New York Bedford/St. Martin’s, 1996. p. 124-129). Disponível em: https://revolution.chnm.org/d/293.
Olympe de Gouges, a revolucionária francesa morta na guilhotina por defender direitos de todos – BBC News Brasil. 23 jul 2022.
Crédito das imagens:
A do texto da Declaração dos Direitos da Mulher: Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
A de Olympe de Gouges: Olympe de Gouges – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
