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Babados da hora

Djalma do Alegrete

 Djalma do Alegrete*

Por Jandiro Adriano Koch
Acadêmico de História da Univates

jandirokoch@gmail.com 

“[…] apesar do prestígio que consegui, 
sou marginal por ser homossexual e negro.”
 Djalma dos Santos. O Globo, 06/11/1988. 

Não é fácil escrever sobre um artista multifacetado, negro e homossexual, com a biografia a reconstituir a partir de elementos dispersos e escassos. Há vários riscos. Um deles, que é necessário correr, é lidar com o enquadramento da produção artística. Afro-brasileira? Gay? A artista plástica pelotense Maria Lídia Magliani (1946-2012) afirmava seu desconforto diante da especificação de raça/grupo étnico junto à atividade. Qual a excepcionalidade em um negro tomar o pincel? Alguém diz que Iberê Camargo era branco? Gavetas também incomodaram homossexuais. Entre a gauchada, Caio Fernando Abreu e Walmir Ayala – esse segundo André Seffrin, crítico e herdeiro –, se inquietavam com definições restritivas como “literatura gay” e “escritor gay”. 
Impossível abarcar a controvérsia aqui. Ao discorrer sobre Djalma do Alegrete – assim se chamava para evitar confusões com um homônimo, o jogador de futebol Djalma dos Santos (1929-2013) –, peço licença para evocar negritude e homossexualidade entrelaçando vida e arte, enfatizando vivências de preconceito racial e sexual. Por alguma razão que me escapa, a questão negra se sobreporá à (homo)sexual na produção (identificada na pesquisa e em termos explícitos), talvez por ter maior aceitação do mercado. 
Filho da alegretense Dinorá Cunha dos Santos e do coronel da reserva do Exército Homero Álvares dos Santos, nasceu em Alegrete em 04 de junho de 1931. De acordo com o anúncio de óbito da mãe (Jornal do Brasil, 30/03/1981), falecida em decorrência de um ataque cardíaco, Djalma tinha cinco irmãos biológicos: Conrado, Elsa, Marisa, Paulo e Uilbor. Paulo Acióly Cunha dos Santos tinha a mesma profissão do pai. Além deles, dois irmãos de criação: Felicidade e Vanderlei. Dinorá contava dezoito netos e três bisnetos, o que leva a crer na existência de muitos parentes de Djalma por aí. Como foi a convivência com o pai e o irmão militares?
 Sabe-se que a saída de Alegrete para Porto Alegre se deu contra a vontade dos pais. Certa vez (O Globo, 06/11/1988), asseverou que a sua família, “negra e abastada”, queria um filho engenheiro. Na capital, no entanto, estudou artes plásticas e jornalismo. Foi o primeiro aluno negro a ingressar no Instituto de Belas Artes (UFRGS). O Correio da Manhã (23/07/1963) informou: “tirou o curso de didática da Faculdade de Filosofia, em 1958”. As informações não são uníssonas. 
A partir de 1956, surge como pintor e figurinista. Em Porto Alegre, expôs em coletiva organizada pela Prefeitura (1957) e no “IX Salão de Artes Plásticas da Sociedade Francisco Lisboa” (1958); no Rio de Janeiro, em coletiva de artistas sul rio-grandenses no Leme Palace Hotel (1968). Individualmente, na capital gaúcha, no Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (1962); na Galeria Pancetti (1967) e na Móvel-Stúdio (1968). 
Como cenógrafo de peças teatrais, resta pesquisar sua trajetória. Encontrei uma única referência. Conforme o jornalista Rafael Guimaraens, foi responsável pelo cenário e figurino do espetáculo “O Santo Inquérito”, encenado em 1967, no Teatro de Arena. 
Como figurinista marcava presença nos carnavais de rua e com fantasias para os desfiles do Teatro Municipal, trabalhos pelos quais recebeu diversos prêmios. Foi pentacampeão (1959-1963) gaúcho de vestimentas de blocos carnavalescos. No primeiro ano, venceu com a temática “A Civilização Inca”. No livro “Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre”, organizado por Irene Santos, foi reproduzido um croqui (1972) do acervo de Dirney A. Ribeiro, elaborado para a “ala dos pagens do maracatú” (sic). 
Fonte: Santos, Irene. O negro em preto e branco
Djalma ganhou notoriedade pelo traje “Exaltação aos Pampas” usado pela gaúcha Ieda Maria Vargas ao concorrer à Miss Universo, em 1963, em Miami Beach. Trata-se de um look com botas e bombacha inspirado na Revolução Farroupilha. No exterior, a peça de cerca de 100 mil cruzeiros foi bastante elogiada, ficando em segundo lugar (perdeu para a Miss Israel). 
Assistido por milhões de expectadores, o concurso rendeu fama a Ieda, coroada Miss, e a Djalma, apesar de criticado no Estado de origem. Nessa época, ainda jovem, começou a aparecer na imprensa nacional. Nas fotos, usava terno e gravata. Para o Última Hora (09/07/1963), comentou os julgamentos emitidos no Rio Grande do Sul, onde os CTGs [Centros de Tradições Gaúchas, NE] desaprovaram a mescla de indumentária masculina e feminina no traje da Miss. Irônico, alfinetou as instituições dizendo que a preferiam em roupas de festas juninas (prenda). Jacintho de Thornes – pseudônimo do jornalista Maneco Muller – reconheceu a originalidade, diferencial que embeveceu os norte-americanos cansados de ver brasileiras vestidas de baiana. 
Retrato de Ieda Maria Vargas. Djalma dos Santos

O desenho para a roupa foi feito a convite do grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, do qual fazia parte a TV Piratini, onde Djalma era figurinista. Inconformado por não aparecer nos créditos da emissora nas aparições de Ieda, pediu demissão. Segundo outra versão (ou complementação), teria se ausentado do emprego para receber uma homenagem, sendo duramente advertido pela falta, o que considerou injusto. Djalma ainda alegou não ter recebido pagamento pelo trabalho. 

Esse desgosto não foi o único pelo qual passou no Rio Grande do Sul, conforme veremos adiante. Seguramente, pode ser inscrito no interessante grupo de artistas e intelectu
ais homossexuais que saíram do Sul para o Sudeste pós-década de 1950. O escritor Walmir Ayala, o advogado e ativista João Antônio Mascarenhas, o poeta e crítico literário Francisco Bittencourt e, de certa forma, Caio Fernando Abreu, são alguns integrantes dessa “diáspora” (a ser analisada). 
A saída foi anunciada pelo Correio da Manhã (23/07/1963): “O figurinista gaúcho Djalma dos Santos […] por causa da segregação racial que existe no Rio Grande do Sul (êle é de cor), deixará Porto Alegre em agosto.” Problemas raciais foram escancarados em várias entrevistas, sem meios-termos. “Em 1961 […] fui lecionar em São Lourenço do Sul, uma colônia alemã onde existe cinema em que os negros só podem sentar-se nas cinco primeiras filas. Como reprovei alguns alunos, fui apedrejado e passei por vexames maiores por ser de cor”. Nelas escancarava a realidade das comunidades negras: “Convidei ex-alunos meus de Porto Alegre para passarem um fim de semana em São Lourenço do Sul, onde eles foram homenageados, com um coquetel num clube e eu, como sou de cor, tive que ficar aguardando na porta.” 

Em vídeo do CULTNE (Acervo Digital de Cultura Negra), o vemos em uma de suas exposições confirmando que a cultura afro-brasileira como tema não encontrava nicho no Sul, onde lhe diziam que “podia comprometer os compradores”. https://www.youtube.com/watch?v=xqYSijVRZPs
Fonte: Correio do Manhã, 23/07/1963

Anos mais tarde, voltaria às manchetes. No Rio de Janeiro, foi envolvido no assassinato de Décio Escobar, poeta gaúcho. Escobar foi personagem central de um crime rumoroso ocorrido em 1946, em Belo Horizonte – o “Crime do Parque”**. Acusado de assassinato, acabou inocentado por falta de provas. Anos mais tarde, em 1969, Escobar seria morto no Rio de Janeiro. Na época, os jornais insinuavam uma “vida escandalosa”. Junto ao cadáver, um papel com os dizeres “ele era viado e morreu”. 

Djalma era amigo de Escobar e foi considerado suspeito. Levado à delegacia, foi retido por dois dias, impelido a confessar. Foi liberado depois de uma tia aparecer acompanhada de um advogado. Os assassinos de Escobar seriam descobertos. Não havia relação com Djalma, mas as consequências da imprensa sensacionalista já haviam se feito sentir. 
Fonte: Jornal do Brasil. 24/04/1969.

A notícia do possível envolvimento ganhara destaque. “Vitrinista é um homem de hábitos estranhos e costuma frequentar bares da praia de Botafogo”, estampou o Diário de Notícias (24/04/1969). A demissão da Sears [importante loja de departamentos da época, destinada à classe média e alta, semelhante à Mesbla e Sloper, NE], local em que trabalhava, aconteceu em seguida, portanto indissociável. Sem emprego, passou a vagar pelas ruas do Rio. Na Cinelândia, encontrou um gaúcho – não deixou o nome registrado – que o levou para a Vila Kennedy, onde não se importaram como o escândalo Escobar, tampouco com a homossexualidade. Ali se estabeleceu, passando a trabalhar para o carnaval local. 

Em 1971, foi contratado para elaborar as fantasias do bloco de frevo de Vassourinhas. As costureiras não conseguiram terminá-las em tempo, deixando os prejudicados furiosos. “Fiquei com medo e fugi para Porto Alegre”, explicou Djalma, que ficaria oito anos nos pampas, tempo em que aprontou bastante entre uma bebedeira e outra. As exposições feitas ao longo desse tempo foram bastante ousadas. Quando expôs na Assembleia Legislativa de Porto Alegre, entrou ao som de atabaques, invocando Xangô, acompanhado de Mãe Sara. 
Em 1978, retornou ao Rio de Janeiro. Em março de 1979, concedeu uma entrevista reveladora ao jornal gay Lampião da Esquina. A conversa com Alceste Pinheiro, Aguinaldo Silva e Francisco Bittencourt foi resumida em “Djalma Santos: nosso homem em Vila Kennedy”. As influências da cultura africana ficam mais claras, especialmente na pormenorização de sua religiosidade – “filho de Xangô, com a cabeça feita por Mãe Sara de Iansã (de Porto Alegre)”. A homossexualidade, no entanto, se destaca, talvez por ser abordada da forma como somente pares poderiam fazer à época. 
Nas primeiras linhas, ele é retratado como “travesti, showperson, ex-ovelha negra da família”. Merece grifo a passagem esmiuçando a discriminação vivenciada enquanto professor estadual no RS, quando atuava em São Lourenço do Sul, no interior do Estado. “Os alunos o ‘adoraram’, mas os pais, logo que descobriram que o professor era, além de negro, bicha, começaram a atacá-lo de todas as maneiras”. Humilhações e ameaças foram suportadas por dois anos, período em que teria mantido um roteiro restrito entre o hotel em que estava hospedado e a escola. 
Ele chegou a ser apedrejado nas ruas de São Lourenço. E mostrou sua forma peculiar de responder. “A doce vingança de Djalma foi que transou com praticamente metade da população masculina da hipócrita cidade. E ainda conseguiu ser o paraninfo de uma turma de formandos antes de dar no pé”. “Dar no pé” significa, no caso, desistir do Magistério. Encontrei uma indicação de que também trabalhou no Ginásio Sapucaia. 
Fonte: Lampião da Esquina

 A publicação o mostra pouco preocupado em fazer reservas quanto à vida íntima. Aparecem em detalhes algumas histórias divertidas no bas-fond gay do RS. Em um carnaval de Pelotas para onde seguiram caravanas de homossexuais de Porto A
legre, se deparou com a rivalidade das bichas invejosas: “As outras bonecas morriam de ódio porque eu conseguia pintar e bordar, conquistar e me divertir”. Também durante o carnaval, apareceu “com um maravilhoso vestido de noiva, sempre acompanhado do [seu] amor.” 
Certa feita, convidado para participar de um congresso sobre umbanda em Uruguaiana, passou as noites encarnando “Samanta”, personagem “sensual e diabólica”. Em uma boate da cidade, dançava de rosto colado com um tipo de “botas e bombacha quando este resolveu descobrir que tinha um homem em seus braços.” Passada a perplexidade, o rapaz teria dito: “Agora é tarde, vamos em frente.” 
Ainda para o pessoal do Lampião, contou que, no Rio, acabou se relacionando com uma mulher: “Era ela e dois irmãos, numa embolada danada. Sou como Oxumarê, que é seis meses homem e seis meses mulher”. 
Autoria: Djalma. Fonte: Acervo de Roger Raupp Rios.
A conversa com os lampiônicos aconteceu em 1979. Djalma vivia na Vila Kennedy (RJ). Estava fazendo as roupas do bloco Alegria de Padre Miguel e colaborava com a escola de samba Mangueira. Uma exposição chamada “O Mundo do Candomblé” estava sendo pensada e outra, em que seriam expostos retratos de moradores da Vila Kennedy, para o Teatro Faria Lima. Intencionava dirigir uma peça teatral baseada em sua vida. Escrevia sua autobiografia, que, em 1988, seria mencionada com o título “O impacto vem do Sul” (onde andarão os originais?). No livro, revelaria “detalhes de seus amores, seus pileques, os ataques de autopiedade e as oito tentativas de suicídio”. A última tentativa de suicídio é um dos autorretratos mais irreverentes: tacou fogo no cabelo. 
Fonte: Lampião da Esquina.
A vida prosseguiu. Conforme o Última Hora (07/11/84), fez exposição na Caixa Econômica de Volta Redonda (1984). Em 1988, continuava na Vila Kennedy, segundo O Globo (06/11/1988), onde ministrava um curso gratuito de desenho no CIEP. A atuação em áreas comunitárias pobres provavelmente foi uma das razões, junto com a contribuição para a cultura popular e afro, para receber o título de “Cidadão Emérito do Rio de Janeiro” no final da década de 1980. 
Em Porto Alegre, onde manteve intensa atividade cultural, recebeu o título de Cidadão Emérito (Resolução nº 1143 de 13/04/1992), por iniciativa do vereador Wilton Araújo. A premiação aconteceu dois anos antes da morte. Djalma era soropositivo – segundo o pesquisador Renato Rosa –, vindo a falecer em 22 de abril 1994, pobre e desamparado. A Galeria Edelweiss, da marchand Anne Lore Kley, era uma de suas (ainda) persistentes apoiadoras. 
Encerro entre lacunas: a necessidade de catálogo e análise da produção artística, por exemplo. Dos quadros que tive a chance de ver, ao menos um, parte do acervo particular de Roger Raupp Rios, é completamente gay. Também há necessidade de corroboração por outras fontes, mas estou convicto de estar diante de figura que escancarou as mazelas de nossa sociedade, enquanto se afirmava como artista, sua essência. Salve, Djalma do Alegrete! 

FONTES CONSULTADAS E REFERENCIADAS

ANGELOS, Eloy Dias dos. Mestre Djalma do Alegrete e sua caminhada. Porto Alegre: Jornal do Comércio, 25-27 de abril de 2014.

Audiovisual. Djalma do Alegrete. Acervo de Cultura Negra (CULTNE). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=xqYSijVRZPs Acesso em 01/04/2015.

BITTENCOURT, Francisco. Djalma Santos: nosso homem em Vila Kennedy. Lampião da Esquina. Ano 1, nº 10, março de 1979.

CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha; SANTOS, José Antônio dos; SILVA, Gilberto Ferreira da (Orgs.). RS negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.

GUIMARAENS, Rafael. Teatro de Arena: palco de resistência. Porto Alegre: Editora Libretos, 2009.

PINHEIRO, Mário Portugal Fernandes. O Processo Décio Escobar. Rio de Janeiro: Arsgráfica Editora, 1974.

 ROSA, Renato. Arte em preto e branco? In: SANTOS, Irene (Org.). Negro em preto e branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre: Do autor, 2005.

Sem autor. Djalma do Alegrete: longe do sucesso, mas tranquilo. Rio de Janeiro: O Globo. Jornais do Bairro. Zona Oeste, 06 de novembro de 1988.

Sem autor. Eu fiz a roupa de “Miss” Universo. Rio de Janeiro: Última Hora, 29 de julho de 1963.

Sem autor. Falecimentos/Estados. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 30 de março de 1981.

Sem autor. Uma questão de cor. Rio de Janeiro: Correio da Manhã, 23 de julho de 1963.

Sem autor. Vitrinista e ‘playboy’ cabeludo são os matadores do ex-diplomata. São Paulo:  Diário de Notícias, 2 de abril de 1969.

 *Versão desse texto foi publicada na edição comemorativa do Jornal do Nuances. Edição nº 45. Junho de 2015. Ano 11. Porto Alegre, RS.
** Sobre o “crime do parque”, ver, por exemplo, MORANDO, Luiz. Paraíso das Maravilhas. Uma história do Crime do Parque. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. [NE]

Na publicação no jornal do Nuances, há a  seguinte nota: “Exposição. Djalma do Alegrete: uma questão de cor. Com o objetivo de dar visibilidade à trajetória do artista, está sendo realizado um levantamento acerca de seu legado […] A mostra “Djalma do Alegrete: Uma Questão de Cor” tem curadoria do artista visual Sandro Ka e pretende reapresentar a obra e este artista que, negro e gay, foi ousado demais para uma cidade retrógrada e cheia de preconceitos.”
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