Do hospício de Barbacena às comunidades terapêuticas, metamorfoses da patologização da homossexualidade quarenta anos após deixar de ser considerada doença

LGBTIs protestam em São Paulo, Foto Nelson Almeida AFP

Por Leona Lopes dos Santos (Leona Wolf) *

Em 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina no Brasil, atendendo à pressão da sociedade civil, entre militantes LGBT+, psicanalistas, psicólogos e psiquiatras, retirou o “homossexualismo” do código 302.0 referente aos desvios e transtornos sexuais, da Classificação Internacional de Doenças (ABGLT). O reconhecimento internacional da despatologização da homossexualidade por parte da Organização Mundial de Saúde só foi alcançado em 1990. Apesar do pioneirismo brasileiro, a proibição da patologização da homossexualidade no Brasil apenas se efetivou após a RESOLUÇÃO CFP N° 001/99, DE 22 DE MARÇO DE 1999. Essa iniciativa definiu que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão; que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações; que os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados; não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades e não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica, proibindo na prática as terapias de reorientação sexual.

O debate é complexo. Na prática, trata-se de um processo longo que visa reverter práticas de encarceramento, castração, lobotomia e tortura. A luta pela despatologização da homossexualidade no Brasil se dá em paralelo à luta antimanicomial. Sabemos que Gays, Lésbicas, Bissexuais, eram mandados no trem para Barbacena, famoso por levar as pessoas para o hospício de Barbacena, cujas violações de direitos humanos expostas a exemplo no documentário O Holocausto brasileiro, serviram para definir o rumo do fechamento dos manicômios. Apesar do aniversário de quarenta anos da retirada da homossexualidade de sua condição de patologia no Brasil, e de quase vinte e seis anos da proibição das terapias de reorientação sexual, as práticas de reorientação sexual seguem ativas no Brasil, como pode se ler no relatório de pesquisa “Entre ‘curas’ e ‘terapias’: esforços de ‘correção’ da orientação sexual e identidade de gênero de pessoas LGBTI+ no Brasil”, publicado pela All Out e o Instituto Matizes. Clínicas clandestinas e comunidades terapêuticas de orientação religiosa continuam a executar essas práticas de tortura. Como a pesquisa aponta:

Sem muito desconfiar e quando menos se espera, pessoas LGBTI+ têm sido expostas às suas comunidades religiosas e locais, sendo submetidas a procedimentos de torturas físicas ou abusos psicológicos, participando de sessões de exorcismo, frequentando sessões psicoterapêuticas inadequadas, recebendo diagnósticos médicos equivocados, realizando tratamentos com medicamentos ou hormônios desnecessários. E, neste processo, acabam se expondo a riscos, sofrendo ofensas, julgamentos, descrédito e desumanização. Uma vez envolta nas armadilhas de conversão, nada se cura, pois não há patologia ali a ser curada. No entanto, diversas pessoas sobreviventes passaram a experimentar traumas com efeitos profundos e duradouros no desenvolvimento de suas vidas e que são decorrentes não do fato de serem LGBTI+, mas das violências a que foram submetidas nos esforços de “correção”. Ao longo das entrevistas elas relataram as seguintes consequências decorrentes das tentativas de conversão sexual e de gênero:
● pensamentos suicidas
● tentativa de suicídio
● depressão
● transtornos alimentares
● isolamento social
● estresse pós-traumático
● sentimento de inutilidade
● sensação de inadequação
● dificuldade de confiar nas pessoas e instituições
● automutilação
● ansiedade
● perda de autoestima
● disfunção sexual (Fróes, Bulgarelli, Fontgaland, 2022, p. 55).

De maneira paralela, há um esforço parlamentar em, por meio de convênios com o Estado, utilizar as comunidades terapêuticas como modelo de saúde mental no Brasil, o que nos leva de volta ao período manicomial, pré-CAPS, e expõe pessoas LGBT à desregulação desse tipo de violência justificada em nome ou orientada pela fé. A exemplo, sob o governo Bolsonaro, como aponta a matéria da BBC (Machado, 2022), as comunidades religiosas viraram a principal terapia de dependentes químicos, mesmo sem controle e resultados atestados. Esse crescimento se deu em convênios com o Estado brasileiro e as elevou a nível de política pública, como aponta a matéria:

Entre 2017 e 2020, período analisado pelo levantamento, o Brasil investiu R$ 560 milhões para financiar vagas de internação nesses locais – desse valor, R$ 300 milhões saíram dos cofres do governo federal. Foram 593 entidades financiadas no período. Em 2017 e 2018, ainda na gestão de Michel Temer (MDB), o governo federal destinou R$ 44,2 milhões e R$ 39,3 milhões, respectivamente. Em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), o valor saltou 169%, para R$ 104,8 milhões e no ano seguinte, se manteve no mesmo patamar, de R$ 105,2 milhões (Machado, 2022).

Simultaneamente ao sucateamento do sistema público de saúde mental, ocorreu a terceirização religiosa do mesmo setor. Cai-se em uma área cinzenta na qual o tipo de violência exposto no relatório do Instituto Matizes e da All Out se torna mais frequente, embora seja de difícil fiscalização. Muitas dessas comunidades não contam com um psicólogo ou psiquiatra que possa ser responsabilizado; são pastores ou obreiros que realizam tais ações. É uma prática comum, mas que, além das vítimas com suas sequelas, recebe olhar conivente por se inscrever na norma e na cultura. Nos últimos anos, a formação em “psicanálise cristã”, formando pastores psicanalistas que incorporam o discurso psicanalítico à normatização sexual-religiosa, tem crescido, além da pressão parlamentar por reincorporar a permissão para os tratamentos de reorientação sexual e a possibilidade de falar da homossexualidade como doença. Mais a respeito desta tendência pode ser lido no artigo de Cancela e Caldas (2022), “Psicanálise e religião: efeitos da doutrinação evangélica na moral sexual contemporânea”. Trata-se de uma questão que deve avançar para além de um órgão de classe, que deve considerar a livre expressão da sexualidade e identidade de gênero como direitos humanos fundamentais e combater essas práticas onde se disseminam.

 

Leona Lopes dos Santos (Leona Wolf) é doutoranda em Filosofia, psicanalista, mestra em Economia Política, cientista social, especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Violência. Conselheira do Museu Bajubá (2025-2028). Autora do livro Para além do identitário (2024).

Referências:

ABGLT. Manual de Comunicação LGBT. Disponível em: https://data.unaids.org/pub/manual/2010/lgbo_communication_manual_20100301_pt.pdf.

CANCELA, Carolina; CALDAS, Heloísa. Psicanálise e religião: efeitos da doutrinação evangélica na moral sexual contemporânea. CYTHÈRE?, n. 5, jun. 2022. Disponível em: https://fapol.org/cythere/wp-content/uploads/sites/3/2022/06/CYTHERE-5-CANCELA-CALDAS-Psicanalise-e-religiao.pdf.

CRP (Conselho Regional de Psicologia). RESOLUÇÃO CFP N° 001/99, DE 22 DE MARÇO DE 1999. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf.

FRÓES, Anelise; BULGARELLI, Lucas; FONTGALAND, Arthur. Entre curas e terapias: práticas de conversão sexual e de gênero no Brasil. São Paulo: All Out e Instituto Matizes, 2022. Disponível em: https://institutomatizes.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-Curas-e-Terapias_03.pdf.

MACHADO, Leandro. Sob Bolsonaro, comunidades religiosas viram principal terapia de dependentes químicos mesmo sem controle e resultados atestados. BBC, 25 abr. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61184132.

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