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Babados da hora

É tempo de povo, enfim!

São 19 anos de movimento LGBT trabalhando a partir de financiamentos (nacionais e internacionais). Por intermédio da pandemia do Hiv-Aids passou-se a contar com linhas de financiamento para ações de enfrentamento à enfermidade social, decorrente da veiculação da doença como algo inerente aos gays. Ao contexto de peste, a “peste gay”, vários foram os organismos internacionais que financiaram projetos de ativismo. Depois desses seguiram-se os financiamentos nacionais.
Hoje, passados todos esses anos, coincidentemente quando a conjuntura governamental torna-se adversa para um determinado modelo de ativismo, se iniciam as denúncias da espiral homo e transfóbica nos organismos internacionais de direitos humanos – até onde foi possível saber, deflagradas pela Conectas Direitos HumanosJustiça GlobalSPW (Observatório de Sexualidade e Política), ABIA e ABGLT.

Está em curso o processo de avaliação do Brasil pelos estados-membros da ONU, através do mecanismo da Revisão Periódica Universal.  É a segunda vez que o país participa dessa instância e pela primeira vez é apresentada uma Recomendação a respeito dos direitos humanos das pessoas LGBT. Foi formulada pela Finlândia, a partir da ação daqueles ativistas. O país tem até setembro para se posicionar sobre as recomendações que lhe foram formuladas, declarar quais aceita e, a partir daí, trabalhar para a sua implementação. É tempo para as ações da sociedade civil, para pressionar o governo pela sua aceitação. Mas não é em absoluto a entidade nacional quem lidera a convocação.

Em 2008 o Brasil participou pela primeira vez da RPU – Revisão Periódica Universal, ou EPU, Exame Periódico Universal, como usado em espanhol. Ali nenhuma recomendação se obteve acerca da situação de grave violação dos direitos da população LGBT no Brasil. Talvez não ficasse bem para o movimento hegemônico – composto majoritariamente por petistas que não souberam ou quiseram manter-se independentes, separando as esferas da militância partidária da militância LGBT -, apresentar externamente uma imagem do país em desacordo  com a moldura daquele que buscava ser reconhecido internacionalmente como uma nação capaz de ocupar uma posição de liderança no concerto das nações. Afinal, foi precisamente no primeiro ano do governo do Presidente Lula que o Brasil apresentou formalmente na ONU, ao seu Conselho de Direitos Humanos, uma proposta de Resolução em prol dos direitos das pessoas LGBT (proposta retirada em 2005, em razão de sua baixa adesão e das pressões econômicas sobre o país por parte dos países fundamentalistas).

O portal do  Movimento Nacional dos Direitos Humanos registra que, por ocasião de apresentação dessa proposta (em 2003), criou-se uma coalisão de grupos LGBTs e de direitos humanos, com a finalidade de apoiar a iniciativa pioneira do Brasil e tentar a aprovação daquela proposta inédita. Mesmo após a retirada da proposta (em 2005), “muitas ações continuaram sendo feitas buscando criar musculatura na região e envolvendo outros países na América Latina“, informa o MNDH (negrito de minha autoria).
 

Ainda segundo o portal, ABGLT participava através do projeto Direitos GLBTs no Mercosul, sob a Coordenação de Augusto Böer (do grupo Somos/Porto Alegre) e de Beto de Jesus (do Instituto Edson Néris, de São Paulo). Estranhamente, porém, embora a matéria do MNDH afirme que “ações mais globais” iam se desenvolvendo simultaneamente, produto do trabalho em rede, a única mencionada é a tradução e publicação, pelo governo brasileiro, dos Princípios de Yogyakarta, para distribuição e conhecimento nacional. Para tanto, se articularam a ABGLT, a ILGA, a ABIA e o SPW com a SEDH – Secretaria Especial de direitos Humanos. Pela ABIA e SPW esteve Sonia Correa. O caderno com os Princípios foram lançados em Nova iguaçu, Porto Alegre, São Paulo e na capital fluminense – “sempre com a participação de ONGs locais”, diz o MNDH.  
Sem povo, só público
Diante da conjuntura interna tão adversa, lançando um olhar retrospectivo, as pessoas LGBT brasileiras são tomadas de  frustração profunda: 
Nove anos são passados daquele Brasil pioneiro para consumo externo da proposta de Resolução de 2003; oito são passados daquele ativismo delirante diante do Programa Brasil sem Homofobia de 2004 (que passou incólume anos a fio sem qualquer ação efetiva em garantia da vida digna); quatro da I Conferência Nacional de Políticas Públicas para pessoas LGBTs de 2008, cuja abertura contou com a presença do Presidente da República, mas nenhuma ou quase de suas recomendações foi implementada. Desde os oito, porém, Brazuca havia se transformado no país dos mais atrasados do Continente, em termos de mecanismos garantidores de uma vida livre de discriminação às pessoas LGBTs. 
Países cuja população possui grandes contingentes de católicos aprovou leis no sentido do reconhecimento dos direitos dessas pessoas – como foi o caso da Argentina. No Chile, logo após o bárbaro atentado que vitimou Daniel Zamudio, a pressão de milhares de pessoas nas ruas exigindo medidas eficazes para combater a violência homofóbica fez com que fosse aprovada uma lei punindo essa modalidade de crime de ódio. 
A tão decantada musculatura, no caso brasileiro virou distrofia. O país da “maior parada do orgulho do mundo”, o “único no mundo a realizar uma conferência nacional de políticas públicas para LGBTs”, tem projeto de lei que data de 2001, cujo objetivo é cumprir o que determina o inciso XLI do artigo 5º da Constituição da República (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais“), que é de 1988. Na atualidade ele se encontra engavetado no Senado, com o nome de PLC 122/06. E todos aqueles que acompanham a luta por dignidade e isonomia sabem o quanto esse projeto de lei tem sido alvo de manipulação imoral (porque de má fé) por parte dos setores conservadores, sem que tenha sido confrontada de maneira eficaz.
Desde 1986, quando do Congresso Constituinte, o direito à não discriminação e à isonomia das pessoas LGBTs brasileiras é obstaculizado de maneira cada vez mais veemente e acintosa por parte de parlamentares fundamentalistas, cuja bancada vem seguidamente se ampliando, em total afronta ao princípio do secularismo republicano, com a conivente omissão de tantos oportunistas fisiológicos à destra e, principalmente, à sinistra.
Ao longo desses anos, quantas vidas foram destruídas em razão da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero? Na medida em que as pessoas LGBT conquistavam visibilidade, recrudescia a violência sobre elas. Mas de algum modo o tema dos números sempre as
cendentes das vítimas da homo e transfobia parece que não exercia impacto suficiente entre os ativistas hegemônicos. Eu diria que havia mesmo uma rejeição ostensiva a este tema.

Quem não se lembra do quanto o antropólogo e pesquisador Luiz Mott era criticado por realizar, pelo Grupo Gay da Bahia, insistentemente desde 1981, a contabilização possível no número de vítimas da homo e transfobia? Quantos ativistas hegemônicos de peso torciam a cara, acusando-o de difundir uma imagem negativa do Brasil? Os vitimados pela homofobia compunham naquela época, juntamente com as travestis e as bichinhas pão com ovo, a parcela desqualificada dentre os desqualificados. Gays, lésbicas, HSH, MSM e bissexuais, possuíam em comum o tabu em relação à violência homo e transfóbica, às travestis e aos afeminados em geral – principalmente quando pobres.
Nenhuma ação, isolada ou concertada, com vistas ao recurso aos organismos de direitos humanos internacionais para denunciar o sistemático morticínio foi verificada entre as associações nacionais ou grupos LGBTs brasileiros. No portal da ILGA as notícias publicadas sobre o Brasil seguem transmitindo uma ideia completamente irreal da cotidiana violência que marca a vida de gays, lésbicas, travestis e transexuais.

Sobre essa Revisão em curso pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, também não se vê nenhuma informação na página oficial da ABGLT. Convocação para que se manifestem junto ao Legislativo e Executivo solicitando o acatamento das Recomendações da Finlândia? Nem pensar! Afinal, trata-se de uma entidade associativa nacional formada unica e exclusivamente por associações civis juridicamente constituídas (Ongs), não tem porque se comunicar com pessoas individualmente consideradas, não integrantes de alguma de suas afiliadas – ainda que aceite e represente o papel de falar na esfera pública (e política!) enquanto Representante do Movimento LGBT nacional.

É que o ativismo dominante da era Ong nunca quis saber de base de sustentação. Se davam por plenamente satisfeitos com suas redes de contato – compostas por idênticas associações civis com personalidade jurídica que atuavam profissionalizadamente, pela via dos projetos.

O “público-alvo” substituíra o cidadão, o ator social, o fim último da existência de qualquer movimento social.

É uma geração de ativistas que se ufanava em afirmar que não lhes interessava quantidade, mas qualidade: não era “qualquer um” GLBT que merecia o direito à interlocução – estrabismo que ainda se verifica presente nos dias atuais -, mas apenas pessoas “qualificadas” (?), seja lá o que queira significar. (Adesão acrítica à práxis implantada?)

Dialogar, informar, esclarecer, debater, prestar contas, pra que?, se a lógica é/era empresarial? Filhos do modelo onguista, onde público-alvo é cliente, ou seja, mero fruidor de serviços prestados por pessoas magnânimas, altruístas, dignas de toda a reverência e gratidão eterna, numa atualização dos antigos filantropos, não há que se pensar em críticas e cobranças de parte de cidadãos autônomos, reflexivos, ciosos de seu papel histórico e de sua força. Há apenas a dócil e côncava geléia de agradecidos indigentes políticos, agora feitos usuários de serviços ofertados como favores.

O “advocacy” (- Como gostam de importar mecanica e orgulhosamente estrangeirismos!) é coisa de profissionais, intelectuais, gente muito bem qualificada; nada que o comum dos mortais possa participar, discutir sobre ações, métodos, táticas e estratégias. Onde já se viu imaginar possível promover amplas discussões sobre os rumos do movimento social LGBT? Sua agenda, pauta de prioridades, leque de ações e concertações? – Tá delirando? Isso aqui não é uma democracia! Tratam-se de empresas civis sem fins lucrativos, entidades jurídicas com finalidade de execução de serviços diversos – seja no campo da prevenção, informação de DSTs, seja no campo da realização de ações de “advocacy” e/ou consultorias. E como empresas, apenas tem o dever de dialogar com seus integrantes e membros da rede. Não, “integrantes” não são aqueles que frequentam os grupos. Esses são o “público-alvo”, os usuários dos serviços prestados. “Integrantes” são os membros da Diretoria, seus suplentes e associados quites com as mensalidades (Oi?) e com frequência comprovada no Livro de Presenças às AGO e AGE (- Quando o livro desaparece misteriosamente? Ah, não complica, vá!)

Essa foi a tônica predominante entre os ativistas LGBT hegemônicos até o advento de maio de 2011. Foi quando a Presidenta Dilma, ungida pela confiança absoluta dos ativistas hegemônicos, manifestou publicamente sua decisão de censurar o material paradidático do programa Escola sem Homofobia – elaborado e avaliado por especialistas, dos quais obteve aprovação técnica – e declarou que o seu governo não faria “propaganda de opção sexual”. Como se já não bastasse a divulgação da notícia de que nesse governo não haveria verbas para os financiamentos dos projetos até então tocados pelas ongs – Advocacy, Aliadas…? – O contexto mundial era de grave crise e o Brasil precisava reconfigurar suas finanças.

A partir daí constata-se uma verdadeira metamorfose: Sugestões, propostas, alianças, agora são explicitamente solicitadas aos ditos “ativistas individuais” ou “autônomos”.  A justificativa é a conjuntura fortemente reacionária, conservadora. Dilma, a Presidenta ungida de ontem, agora já é vista com certo distanciamento realista. Chegam a considerar a possibilidade de realizar algum protestos ao seu eloquente silêncio.

Data de 1878, de autoria de Louis Couty, médico frances defensor da escravidão nacional como um bem aos africanos, Regente da cadeira de Biologia Aplicada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro,  a afirmação desveladora: “O Brasil não tem povo [pois] em nenhuma parte se acharão massas de eleitores sabendo pensar e votar, capazes de impor ao governo uma direção definida” (No seu livro   L’esclavage au Brésil).

Lima Barreto, o escritor fluminense nascido precisamente no ano em que Couty publicara esse livro, complementa, explicitando, em 1911 (Triste fim de Policarpo Quaresma): “O Brasil não tem povo, tem público”.

Há quem nos dias correntes busque atualizar a assertiva: O Brasil não tem povo, só espectadores. E a esses, só cabe aplaudir. Esquecem que ainda nos anos setenta do século passado Gonzaguinha dava visibilidade a essa alegada característica nacional (“a platéia ainda aplaude ainda pede bis / a platéia só deseja ser feliz” – Pois é Seu Zé).

– Até quando?!

Não eternamente
Com o advento das redes virtuais e a maior acessibilidade à internet, porém, tornou-se possível a reunião de pessoas contrárias a essa forma de atuar da principal entidade LGBT nacional. De sua reunião e troca de ideias, não demorou muito para que passassem à ação. A primeira que tive notícia foi uma manifestação noturna na Avenida Paulista, com velas acesas, organizada através do Orkut pela comunidade Homofobia Já Era. Protestavam contra as reiteradas agressões naquela principal via pública paulistana.

Com o passar do tempo essa legião de não representados vai engrossando na busca por se fazer ouvir e interferir concretamente na política nacio
nal, expressando sua indignação e revolta diante da paralisia do Congresso, da ilegitimidade dos hegemônicos, do avanço dos fundamentalistas sobre o governo e o estado e da inércia nacional diante dos reiterados e cada vez mais frequentes ataques homofóbicos – agora atingindo até heterossexuais.

Começam a contabilizar vitórias.  Suas ações vão no sentido de furar o bloqueio da mídia grande na não divulgação de temas que lhes sejam do interesse (com a edição de blogs e portais de conteúdo informativo sobre projetos de leis, atividades de parlamentares, ministros, chefe do Executivo etc.), até a promoção e realização de campanhas de protesto – presenciais e virtuais; dotadas de capacidade efetiva de transformações na conjuntura.

No meio desse percurso surge uma autêntica liderança política. Eleita por votos que não os seus diretamente, vem se revelando um extraordinário parlamentar – capaz, dotado de capacidade para o diálogo e o posicionamento firme, de quem não está para migalhas e sobras, vem realizando função pedagógica absolutamente necessária, esclarecendo conceitos e institutos, desmascarando manipulações.  A sua entrada em cena, sobretudo por vir de um partido oposicionista saido das entranhas daquele dos hegemônicos, fez mover-se o tabuleiro. Imprimiu outro ritmo a quem não tinha opositores com visibilidade e capacidade de ação na cena política.

Esses novos atores testam o tamanho de suas pernas, a densidade de seus músculos e ossos, o tamanho e a solidez de suas redes. Mas principalmente sabem o que querem, o que tem direito: a vida digna, livre de discriminações, em isonomia de direitos. Nem menos nem mais.

Passo a passo, ações após ações, seguem no lento e tenaz aprendizado da democracia, do fazer-se agentes de sua própria história. De cabeça e coluna eretas, contudo.

– Evoé! É tempo de povo, enfim!

(Atualizado em 06/08/2012, às 22h08)

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