Dia 29 de janeiro é sabidamente o Dia Nacional de Visibilidade de Travestis e Transexuais. Este ano eu quero render a minha homenagem a todas as pessoas travestis e transexuais, de ambos os sexos, por meio da memória e do legado da multi-artista Cláuda Celeste.
![]() |
S/ ref. |
Jamais imaginei que viéssemos a perdê-la tão cedo. Sempre muito dinâmica e de muitos talentos (atriz, dançarina, cantora, compositora, autora teatral, produtora…), Cláudia esbanjava viço e criatividade. Talvez por isso eu não tivesse priorizado colher em vídeo as suas memórias. Seu falecimento, em maio do ano passado, me pegou de surpresa.
É impossível esquecer a exuberância de seu talento, o seu sentido de cuidado para com o outro, o respeito e admiração pelas colegas de profissão.
Foi através dela que pude me reaproximar do universo das artes transformistas, que eu já conhecia (pelas reportagens no Lampião da Esquina, e pelas atuações de Georgia Bengston, Fujika de Holiday, Nórika Hayner, Tania Letieri, Cristina Cher e outras de seu elenco, que tive o prazer de assistir, no teatro do Sesc de Sao João de Meriti, em 1982) e cuja importância já vinha destacando em meus trabalhos acadêmicos, desde o bacharelado em história. Sou imensamente grata por isso. E pelo privilégio de tê-la conhecido e podido assistir a algumas de suas apresentações, como a interpretação da cantora Marlene, para mim um dos seus momentos mais marcantes. (Ver o vídeo com a sua apresentação, ao final.)
Num evento em comemoração a esse dia, promovido pela Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual, da Prefeitura do Rio de Janeiro (CEDS-Rio), gestão Carlos Tufvesson, Cláudia me abordou. Penso que tenha sido em 2011 ou 2012, pois eu ainda estava às voltas com o meu doutoramento, cuja defesa se deu em fins de 2012.
![]() |
Coluna Glorinha Pereira, jornal Correio de Copacabana, s/d. |
Voltamos a nos encontrar, creio que no Seminário Cidadania Trans – Dignidade, Inclusão e Respeito, também promovido pela CEDS-Rio, em 29 de janeiro de 2013, na Clínica da Família do Centro (CAP 1), equipamento municipal do SUS, situado na Rua Evaristo da Veiga, 16, quase esquina com a Av. 13 de Maio, na região da Cinelândia. A partir daí mantivemos vários contatos, todos tendo como energia propulsora o desejo, agora comum, de recolher, registrar e divulgar as memórias do maior número possível das artistas travestis e transexuais (que, segundo Cláudia, para poderem ser registradas no Sindicado dos Artistas o próprio Sindicato teria criado a categoria profissional de “transformista”, de modo a diferenciá-las das travestis que exerciam a prostituição).
![]() |
Jornal Última Hora, 04/08/1977 |
Na medida de nossas conversas e das pesquisas que fui realizando, pude registrar alguns pontos naquilo que me parecia o esboço para uma futura história do transformismo no Rio de Janeiro. Nessa empreitada contei com a colaboração generosa dos pesquisadores Luiz Morando (pesquisador das formas de vida e sociabilidade da população LGBT em Belo Horizonte, no período entre 1950 a 1989) e Thiago Barcelos Soliva (na época pesquisando o mesmo universo das artistas travestis e transexuais, para o seu doutoramento, cuja tese teve por título Sob o signo do glamour: um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social, e foi defendida em junho de 2016, pelo programa de pós-graduação em sociologia e antropologia do IFCS-UFRJ). O resultado foi o artigo Artes de Acontecer: viados e travestis na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX a 1980, publicado em setembro de 2016.
Tentei, de comum acordo com Cláud
ia, a constituição de um Núcleo de Memória, junto ao Programa de Estudos Pós-graduados da Escola de Serviço Social da UFF (instituição na qual realizei o meu mestrado), onde pudesse ser reunido o acervo documental e iconográfico dessas artistas. Cláudia, generosamente, tomou a iniciativa, legando várias peças de seu acervo pessoal (fotografias, matérias publicadas em jornais e revistas, programas de peças e shows).
Ao mesmo tempo, dei início, com recursos próprios, à coleta de depoimentos em vídeo. Minha ideia era recolher os relatos das trajetórias de vida de travestis e transexuais em dois eixos de atuação:
=> o das profissionais do sexo (para cuja importância o museólogo e historiador Lenon Braga despertou o meu olhar) e
=> o das profissionais da indústria do entretenimento (expressão que Cláudia costumava empregar).
![]() |
Jornal Refletor, agosto 1982, p. 4 |
Por conta de diversos acontecimentos de ordem pessoal, até o momento apenas foram registrados, pelo primeiro eixo, os relatos das trajetórias de Anyky Lima e Syssy Kelly, de Belo Horizonte, MG. Eles se encontram em bruto na minha conta no YouTube. Como ainda não foram editados e estão em pequenos arquivos (gerados pelo equipamento de mão que utilizo), num total de nove, apenas um foi disponibilizado o acesso ao público.
Pelo segundo eixo, o das memórias das trajetórias de vida das profissionais do teatro e musicais, apenas foram coletadas, em vídeo, as de Suzy Parker. Foram duas sessões, realizadas em datas diferentes, na sua residência, na Tijuca. Esse material, igualmente sem edição, não foi ainda transferido para a conta no YouTube.
![]() |
Jornal Última Hora, 13/07/88 |
Em 18 de janeiro de 2017 enviei para Cláudia o arquivo contendo o artigo publicado, reafirmando o meu interesse em dar seguimento às entrevistas de história de vida. Ela me respondeu no mesmo dia:
(…) daremos todo o apoio que necessitares, pois tens toda a nossa aprovação e agradecemos pelo seu carinho sempre para conosco e à nossa causa…
A ideia é que esse material, assim como os demais depoimentos que forem sendo colhidos, possa merecer um tratamento de edição, de modo a produzir duas linhas de produtos. Documentário/s, de um lado; e, de outro, fontes audiovisuais de pesquisa, acessíveis via web. Tratativas foram iniciadas com duas instituições, no início do segundo semestre de 2018, para a concretização dessa proposta, de forma conjunta, e seguimento da coleta dos depoimentos. O advento das eleições presidenciais e tudo o mais que vem se desenrolando, contudo, levaram à interrupção das tratativas. Espero, porém, que elas possam ser retomadas após o período das férias de verão.
Também fiz a intermediação para que Paola Marugán, que se encontrava no Rio de Janeiro realizando o mestrado, a entrevistasse para a sua pesquisa. Paola foi comigo e o professor João Bosco Hora Góis à casa de Cláudia, em Irajá, onde a apresentei e ela a entrevistou. Ainda aguardo que Paola socialize o resultado desse encontro.