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Babados da hora

Família “natural” e casamento religioso: os múltiplos usos da enganação argumentativa

Vimos acompanhando a ascensão e o fortalecimento de um padrão civilizacional obscurantista, irracional, totalitário, mercantilizante, predatório. 
De forma concomitante, porém, tambem vemos crescer, se multiplicar, persistir, mundialmente, as lutas por direitos humanos – cujo valor axiológico repousa na ideia de dignidade humana. 
Com base nesse imperativo – a dignidade de todas as pessoas, independentemente de qualquer atributo -, indivíduos no planeta inteiro através da história tem se organizado coletivamente e entrado em luta política e social por nutrição, saúde, emprego, salário, moradia, educação, autodeterminação, sustentabilidade, preservação ambiental, felicidade (HUNT, 2009).
No entanto, como ocorre acontecer em processos sociais desse tipo, cada avanço das forças progressistas, humanistas, vemos recrudescer o ímpeto daquelas outras, comprometidas com o que há de mais nebuloso e obscuro na personalidade humana. E, assim, a batalha de acirra, as forças se tensionando.
Semana passada, no dia cinco de maio, após dois dias de julgamento, o STF, por unanimidade,  entendeu de reconhecer valor de norma obrigatória aos princípios constitucionais. Seguiu, assim, a tradição internacional mais atualizada em ternos de direitos humanos e constitucional (PIOVESAN, 2009).
O caso concreto era a reivindicação de que, com base nos princípios da isonomia e da equidade, fosse reconhecida a equiparação entre homo e heterossexuais quanto ao instituto da união estável. 
Toda a Corte Constitucional do país, sem uma reserva sequer, declarou aquilo que todos os conhecedores do direito desprovidos de antolhos de ordem dogmática ou preconceituosa já sabiam: que os princípios constitucionais tem força de norma obrigatória e não são meros orientadores, fixadores de diretrizes.
Num país democrático, funcionando sob o efetivo primado do direito, uma decisão judicial deveria implicar em sua observância plena. Um dos princípios básicos da tripartição dos poderes, aliás, é que decisão judicial não se discute, acata-se. Em sendo possível, se recorre. Mas enquanto nova decisão não vem ou descabe, deve ser por todos observada, acatada, cumprida. Principalmente por quem dela discorda.
Foi o que se verificou entre os progressistas, por exemplo, quando o mesmo Supremo declarou constitucional o Confisco do Plano Collor e a constitucionalidade da Lei de Anistia. Esses setores discordavam e discordam de tais entendimentos. No entanto, jamais negaram validade às decisões do STF ou vieram a público disseminar o descrédito da Corte Constitucional. Buscaram e buscam, ao contrário, lutar sempre dentro da institucionalidade e da razão, com argumentos racionais e razoáveis.
No entanto, sabemos que nossa cultura cívico-jurídica ainda não espelha estejam enraizados em nossas mentes e corações os princípios republicanos como ordenadores de nossas ações cotidianas – a universalidade das normas e direitos; a laicidade; a liberdade; a solidariedade; a promoção do bem de todos, vedado o preconceito, seja por qual motivo for; a justiça.
Assim, de forma semelhante a empresários que adotam política de marketing apoiada em práticas aéticas, de ma fé e fazem integrar na composição de sua tarifa os custos presumíveis das ações e acordos judiciais que protagonizarão, encontramos parlamentares e indivíduos, cujo cargo, profissão ou função lhes confere algum tipo de preeminência social, se pautando por atitudes totalitárias, indutoras ao equívoco, desrespeitosas às instituições da República. 
Alguns chegam ao máximo de provocar seus adversários ao ponto que algum perca o controle emocional – “entre na pilha” como dizem os jovens. Daí, posam de vítimas. São eles, coitados, os agredidos. Confiam que, de forma semelhante àqueles empresários inescrupulosos,  tambem sairão vitoriosos em seu esforço de manipulação da opinião pública. Os fins justificam os meios, segundo suas ações e manifestações.
De outro turno, ademais de parlamentares comprometidos com a preservação da discriminação historicamente imposta aos homossexuais, temos profissionais e instituições que igualmente professam o mesmo código de valor E, como aqueles, se aperfeiçoam em operar por meio da manipulação da informação. Apostam, como certos parlamentares, no desconhecimento geral para fazerem valer a sua “verdade” como se fora a verdade da história.
Entre essas encontramos a CNBB. 
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, afirma que não acatará a decisão do STF. (Ver aqui). 
– Ora, não cabe à Igreja Católica, a qualquer Igreja, observar em sua liturgia aquilo que foi declarado pelo Supremo. 
Não se misturam as esferas religiosa e a republicana. 
No entanto, caso a Igreja Católica – ou outra qualquer – possua empregado ou empregada que seja homossexual e encontre-se em união estável, terá que, forçosamente, observar a decisão do STF, sob pena de responder judicialmente pelo descumprimento.
O Arcebispo do Rio de Janeiro, Orani João Tempesta, tambem naquela ocasião, declarou que “família é algo de direito natural, inscrito na própria condição humana”.(Ver aqui)
Na última quarta-feira, dia 11/05, a CNBB, em sua 49ª Assembleia, emitiu uma nota onde, alem de discorrer sobre a competência do STF – seara para a qual não dispõe de competência ou qualificação -, voltou com a reiterada falácia de que “o matrimônio natural entre o homem e a mulher bem como a família monogâmica constituem um princípio fundamental do Direito Natural” (Veja aqui).
Os fundamentalistas religiosos (aqueles que se esforçam por impor interpretação literal, descontextualizada, ahistórica, totalitária aos diversos livros que compõem a Bíblica) são contumazes em branir o caráter “natural” da família. 
– Afinal a qual família querem se
referir? A dos árabes e indianos, poligâmica para o varão? A dos esquimós? A dos ameríndios? Africanos? E em qual contexto histórico?
Por que omitem, deliberadamente, o fato de que em sua origem histórica, o casamento europeu nada mais era do que uma transação comercial? Que sua finalidade principal era a garantia da destinação do patrimônio, operada por meio da circulação das mulheres? 
Por que ocultam o fato histórico de que o casamento se celebrava por meio do pagamento dos “esponsais“, ou dote (do latim pretium, preço, ou dos, doação), prática originária do código visigótico e que chegou ao direito portugues sob o nome de arras? Tanto que a expressão “mulher arriada” significava “mulher legalmente casada”, em oposição à “mulher barregã” – mulher amancebada (ALMEIDA, 1993, pág. 46-58).
Ou seja, que o casamento se operava por meio da compra da mulher pelo noivo? 
Por que, quando das discussões sobre o divórcio, nos idos da década de setenta do século passado, omitiram o fato de que o casamento, até o século XIII, se tratava de um contrato de celebração privada, no âmbito restrito das duas famílias envolvidas e cuja dissolução poderia se dar a qualquer tempo, por simples vontade de qualquer dos cônjuges?
Por que omitem o fato de que a Igreja Católica levou do século IV ao século XIII para conseguir transformar o casamento  de simples contrato civil e privado em sacramento religioso?

Por que ocultam o fato de que, perante a legislação portuguesa (Ordenações Manuelinas, promulgadas em 1521, e as Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603 e confirmadas em 1640), possuiam os mesmos direitos os casados pelo sacramento religioso (católico), os que coabitavam e aqueles casados por contratos?

Onde a lisura e a boa fé na argumentação?

Onde a obediência aos ensinamentos de Pedro para que se obedeça às instituições humanas? Para que se pratique o bem? Para que se trate a todos com honra e amor? (LUTERO, 2007, 105; NOVO TESTAMENTO, 1ª Carta de Pedro, II, 13-17).

Em termos de pontos de vista de religiosos, por humanistas, fraternas, cristãs, fico com as palavras do Bispo Primaz da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Dom Dom Maurício José Araújo de Andrade, em nota divulgada em Brasília, no dia 11 próximo passado:

Comprometidos com a Dignidade Humana “… o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com teu Deus.”Miqueias 6. 8. – Recebemos com serenidade a recente decisão unânime do STF sobre o reconhecimento jurídico das uniões estáveis de pessoas homoafetivas. Tal aprovação representa um importante avanço em nossa sociedade na busca pela superação de todas as formas de preconceito e um aperfeiçoamento no conceito de igualdade e cidadania numa sociedade marcada pela pluralidade, mas também por profundas desigualdades e discriminações;

– Nosso reconhecimento é feito com base em sólida tradição de defesa da separação entre igreja e estado (e entre religiões e estado), que não significa a sujeição de um campo ao outro, nem a substituição de um pelo outro, mas a necessária junção da autonomia institucional e legal com a liberdade de expressão e o pluralismo. (Veja a íntegra da Nota aqui.)

 E com as do Pastor Ricardo Gondim, em entrevista concedida à Carta Capital, em 27/04/2011:

Sou a favor [da união civil entre homossexuais]. O Brasil é um país laico. Minhas convicções de fé não podem influenciar, tampouco atropelar o direito de outros. Temos de respeitar as necessidades e aspirações que surgem a partir de outra realidade social. A comunidade gay aspira por relacionamentos juridicamente estáveis. A nação tem de considerar essa demanda. E a igreja deve entender que nem todas as relações homossensuais são promíscuas. Tenho minhas posições contra a promiscuidade, que considero ruim para as relações humanas, mas isso não tem uma relação estreita com a homossexualidade ou heterossexualidade. (Veja a íntegra da entrevista aqui.)

É preciso que o povo brasileiro se assenhore do inalienável direito a pensar por si próprio. De buscar informações confiáveis;  confrontar opiniões e provas.  Julgar por si mesmo.

Por exemplo, quantos dos que simplesmente se limitam a “comprar” a versão dos religiosos fundamentalistas e demais obscurantistas leu efetivamente o PL122/06?

Quantos buscaram nos dicionários a definição de “homossexualidade” e “pedofilia”?

Quantos sabem verdadeiramente no que consiste o programa do MEC que visa combater a discriminação aos homossexuais na escola? A qual público (faixa etária) se dirige de fato? – Quem foi ao sítio do MEC conferir?

Hoje, mais uma vez – como quando do surgimento do vírus da Aids, sem qualquer escrúpulo ou dignidade, manipulam impune e impiedosamente os fatos, as informações, com o fim único e exclusivo de disseminar e fortalecer a mentalidade intolerante, preconceituosa, violenta.

– Quem não se lembra de toda a sorte de barbarismo proferido pelos representantes da Igreja Católica, acusando os homossexuais de responsáveis pela Síndome? Quem não se lembra da irresponsabilidade de pastores, padres e jornalistas, cada qual preocupado apenas com seus próprios interesses, disseminando mentiras, crendices, desinformação, violência? Quem não se lembra do quanto contribuíram para o preconceito, a segregação, a morte social e física de tantos enfermos? Quem não se dá conta da permanência desses efeitos até os dias atuais?

Como disse Hannah Arendt,

quando muitas pessoas, sem terem sido manipuladas, começam a falar tolice, e se entre elas estão pessoas inteligentes, há geralmente algo mais envolvido do que apenas tolice.

Referências:
Angela Mendes de ALMEIDA. O gosto do pecado: Casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII.

Bíblia Sagrada. Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, pág. 279 (Novo Testamento).

Constituição Federal.

Flávia PIOVESAN. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo, Saraiva, 2009.

Friedrich ENGELS. A origem da família, da propriedade privada e do estado.

Gayle RUBIN. El trafico de mujeres: Notas sobre la “economia política” del sexo.

Hannah ARENDT. Responsabilidade e julgamento.São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

_________. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal.São Paulo: Companhia das Letras,1999.

Herbert DANIEL e Richard PERKER. Aids: A terceira epidemia. Ensaios e Tentativas.   Iglu, 1991.

Lynn HUNT. A Invenção dos Direitos Humanos. Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Martinho LUTERO. Da Autori
dade Temporal in A Liberdade do Cristão. São Paulo: Escala, 2007, pág. 105.

Ronaldo VAINFAS.Casamento, Amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1992.

www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf

http://www.youtube.com/stf#p/u/27/cIliHsUqwe4

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