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Babados da hora

Jane di Castro – Nós travestis é que fomos um avanço

Jane di Castro – Amizade é uma coisa muito séria! (26/06/20)

(07/04/1947 – 23/10/2020, 
Rio de Janeiro), 73 anos

A arte me trouxe essa oportunidade de conhecer o mundo, o Brasil. (Jane di Castro)

Luiz Morando, 
Remom Bortolozzi 
e Rita Colaço 

Jane di Castro nasceu no bairro de Oswaldo Cruz, no subúrbio carioca, em 7 de abril de 1947. Sua mãe era evangélica e seu pai, militar – dois elementos que marcaram Jane desde a infância e sua percepção de que ela não se reconhecia no menino que os pais viam nela.

Jane em 1966, foto divulgação do Les Girls

Já na virada dos anos 1950-60, na adolescência, alguns conflitos familiares se manifestaram. Jane já constituíra um grupo de amigos que compartilhavam entre si o desejo por homens e uma forma de se perceber diferente das outras pessoas, que não se encaixava no padrão da época. Faziam parte desse grupo – que circulava pelos bares e casas noturnas da Cinelândia e de Copacabana – Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Valéria. Por serem menores de idade, todas ficavam na calçada daqueles locais, observando as pessoas, conversando, dando close e já se ambientando com a dinâmica de sociabilidade daqueles territórios.

A experiência foi válida, sobretudo porque aproximou aquele grupo de amigas da classe artística que frequentava os mesmos locais. Assim, inicialmente, Rogéria e Marquesa, junto com outras travestis do período, fizeram sua estreia no show International Set, na boate Stop, em 1963, na Galeria Alaska. No ano seguinte, Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios e Valéria, junto com outras, estavam no palco com a primeira versão de Les Girls. Jane acompanhou da plateia os dois shows, sempre se encantando com aquele universo. Sua oportunidade chegou no segundo espetáculo do grupo: Les Girls em Op Art, em março de 1966, no Teatro Dulcina. Foi sua estreia no mundo artístico, de onde nunca mais arredou pé.

Revista Manchete, 09/04/1966

Com 20 anos, em março de 1967, Jane compôs o elenco do espetáculo Vem quente que estou fervendo, no Teatro Rival. A surpresa que o destino lhe reservou se prolongou para o resto de sua vida: foi ali que ela conheceu Otávio Bonfim, um baiano de 19 anos, recém-chegado ao Rio de Janeiro. Os dois se apaixonaram e iniciaram um casamento que só foi legalmente formalizado em 2014, após o STF legalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo e o CNJ, em 2013, autorizar a conversar da união civil em casamento civil.

Em uma entrevista ao jornal O Pasquim, em 1983, Jane chamou a atenção para um ícone que ela tomou como referência para sua carreira artística: a também atriz e cantora Coccinelle, sua musa inspiradora. Vinte anos antes, Coccinelle estivera no Rio de Janeiro para uma série de apresentações, tendo se hospedado no Copacabana Palace. Desde aquele momento, Jane começou a acompanhar a artista francesa, conseguindo realizar a experiência de “ver a Coccinelle tomar banho de piscina no Copacabana Palace”.

Jane, a 2a. de pé, ao fundo, 1966

Ainda na entrevista de O Pasquim, Jane deixa o seguinte relato, apontando para o pioneirismo das travestis no enfrentamento da estigmatização e na exposição com a população:

 “Nós travestis é que fomos um avanço. Quando surgimos, tivemos muito mais repercussão que os gays agora. Esse negócio de gay é uma tentativa de imitar a cabeça dos americanos, não tem como dar certo. (…) O brasileiro copia tudo, até a roupa, usando roupa de couro igual usam em Nova Iorque. Na minha época, era viado mesmo, era bicha louca, não era moda não. Eu andava na rua e levava tapa na cara, só porque era bicha. Tudo mudou, querido.”

Ainda no começo dos anos 80, Jane foi dirigida por duas grandes atrizes brasileiras: em 1981, por Bibi Ferreira, no espetáculo Gay Fantasy; em 1983, por Berta Loran, em Loucura Gay, no Teatro Rival, em 1984, por Ney Latorraca, em Passando Batom. Sempre junta com outras atrizes travestis, em ambos, as casas sempre estiveram lotadas de público.

Em paralelo à carreira artística, Jane Di Castro também construiu uma trajetória como cabeleireira, montando seu próprio salão em 2001. Ela gostava de destacar que desde 2008 era Síndica do seu prédio, o edifício Kansas de Copacabana. Fechando mais de onze anos nesse trabalho, Jane afirmou em entrevista à Folha de São Paulo, em 2019: “Sou síndica do meu prédio há anos. Sou a prova de que travesti não é bagunça”. A conciliação dessas atividades se tornou possível graças à persistência e maturidade de Jane: em seu currículo, constam as participações em quatro novelas, duas séries de TV, cinco filmes já exibidos e em mais um, ainda por estrear – De perto ela não é normal, que Jane não chegou a vê-lo completo.

Em 2018, Otávio Bonfim faleceu em decorrência de um câncer. A mesma doença nos apartou de Jane Di Castro dia 23 de outubro passado. Em 26 de junho ela fez uma transmissão pela sua página no Facebook. Logo no início, respondendo a um comentário, ela diz que não está muito bem. E logo em seguida emenda, com um “não estamos nada bem” e passa a falar da pandemia. Em setembro ela escreve na mesma rede virtual que estava se recuperando de uma cirurgia. Muito reservada, sua legião de admiradores foi tomada de surpresa. Maiores detalhes não foram divulgados. Lorna Washington, em bate papo virtual com Eula Rochard, conta que ela esteve acompanhada e assistida por dois grandes e antigos amigos, que teriam sido convidados a se retirar pela irmã de Jane, que chegou ao local após o hospital lhe informar o falecimento. No blog Do Arcanjo, Heloína dos Leopardos, lamentando a perda da grande amiga, informou que o corpo seria cremado, não haveria velório e que a irmã de Jane estaria cuidando de tudo. 

No sábado, dia 24, a Coluna do Anselmo informou que o sepultamento ocorreu no cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, RJ, sábado à tarde. A atriz Leandra Leal, diretora do premiadíssimo documentário Divinas Divas, que mostra a trajetória das pioneiras da arte transformista
carioca, levou purpurina, para que os amigos e fãs da grande diva da cultura LGBT nacional pudessem prestar-lhe uma homenagem, atirando-a sobre o caixão. O presidente do grupo Arco-Íris, Cláudio Nascimento, compareceu e cobriu o caixão com a bandeira do movimento LGBT. A reportagem publicada pelo jornal O Dia traz fotos do sepultamento.

Esperamos que o acervo pessoal da artista e ativista seja preservado (fotos, faixas, troféus, roupas etc.), quem sabe doado ao Museu da Imagem e do Som, como foi com a cantora Zezé Gonzaga. Uma forma de preservar a sua memória, a nossa cultura, a nossa história.

Fotos do acervo pessoal de Luiz Morando e do perfil pessoal da artista. As de Jane no Les Girls foram cedidas pela própria Jane di Castro, que se correspondia com Luiz, complementando informações históricas sobre a cultura transformista nacional. 

Referências:

Jane di Castro viveu uma história de amor por mais de 50 anos. Extra, 24/10/2020. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/jane-di-castro-viveu-uma-historia-de-amor-por-mais-de-50-anos-com-otavio-bonfim-24710229.html.

Morre Jane Di Castro. Guilherme Beraldo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9X6XieamYi4.

Vinícius Lisboa. Morre atriz e cantora Jane Di Castro, no Rio de Janeiro. Agência Brasil, 23/10/2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-10/morre-atriz-e-cantora-jane-di-castro-no-rio-de-janeiro.

Jane Di Castro fala sobre sua trajetória artística no Atos. 28/01/2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2DdLLYbXO3I&feature=emb_logo.

JAGUAR. Como se tornar um travesti super-star. O Pasquim, Rio de Janeiro, ano XIV, no 731, 30 jun a 07 jul. 1983.

Jane Di Castro: “Sou síndica do meu prédio há anos. Sou a prova de que travesti não é bagunça”. 04/03/2019. Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/entretenimento/jane-di-castro-sou-sindica-do-meu-predio-ha-anos-sou-a-prova-de-que-travesti-nao-e-bagunca/amp/

Morre Jane Di Castro, artista travesti pioneira na cultura

https://www.facebook.com/eula.rochard/videos/4507731912630234/ A partir dos 22 minutos.

https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/leandra-leal-leva-purpurina-para-enterro-de-jane-di-castro-hoje-no-jardim-da-saudade.html

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2020/10/6014251-corpo-de-jane-di-castro-e-enterrado-no-jardim-da-saudade.html

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