
O Museu Bajubá tem uma imensa alegria por celebrar neste mês de dezembro de 2024 os sessenta anos da estreia do show Les Girls, que criou a fama para um grupo de artistas travestis no Rio de Janeiro em 1964 e fixou um formato de espetáculo que se tornou referência pelas décadas seguintes.
Esta exposição está dividida em seis eixos temáticos. Antes de conhecê-los, é necessário receber vocês nesta sala de entrada para uma breve apresentação do contexto em que Les Girls surgiu.
É muito importante colocar em perspectiva o termo ‘travesti’ e a expressão ‘fazer o travesti’. Até a virada da década de 1950 para 1960, a designação travesti não estava estritamente ligada a formas de pensar uma identidade de gênero ou de fazer representar uma expressão da sexualidade, como fazemos hoje.
A ciência médica, especialmente a endocrinologia e a sexologia, associava a travestilidade a um desvio da saúde psíquica/sexual de ‘homens’ que se faziam passar por ‘mulheres’. Ou seja, adotavam vestimentas, acessórios, gestos, comportamentos, expressões atribuídos ao sexo feminino. Nesse sentido, estavam reunidos a um conjunto considerado marginal de pessoas que não correspondiam a um padrão cisheteronormativo, como nos referimos hoje.
Em um contexto em que a discussão sobre a construção social de gênero não era feita com a centralidade de hoje, o debate girava em torno do reconhecimento do sexo colado a uma identificação estritamente binária: nasceu com pênis, é homem; nasceu com vagina, é mulher – pronto, acabou! Assim, era muito comum naquela época a expressão ‘fazer o travesti’ como forma de se referir a pessoas que nasciam com pênis, mas performavam socialmente o gênero feminino. ‘Fazer o travesti’ foi uma fórmula empregada em diversas produções discursivas, particularmente nas artes visuais, especialmente no teatro. No Brasil, desde o século XIX, essa forma de exposição artística foi praticada, mas se intensificou ao longo do século XX (por exemplo, nos anos 1920 e 30, Darwin e Aymond eram os grandes artistas do travesti).
A partir de 1953, Ivaná se tornou a grande referência para o que ficou conhecido como ‘travesti artístico’ (para se dissociar do travesti como identidade de gênero – assim mesmo, no masculino, como foi utilizado até o início dos anos 1990 –, amplamente relacionado a diversas formas de suposto desregramento: prostituição, criminalidade, marginalização social, exploração sexual).
Na virada dos anos 1950-60, shows dirigidos, entre outros, por Carlos Machado – como Vive les femmes!, de 1961 –, eram encenados no Rio, projetando Sophia Loren (o gaúcho Irajá Hoffmeister, que também adotou o nome Ektor). Copacabana já era um bairro efervescente, e a Galeria Alaska, já em 1957, tinha um público boêmio diversificado constituído também por pessoas do segmento hoje dito LGBTQIAPN+.
Bem rapidamente, foi esse contexto que precedeu a formação de Les Girls.
Nas abas a seguir, você poderá explorar os eixos temáticos da exposição e se encantar com histórias fascinantes. Elas nos enchem de orgulho, inspiram a ousadia e enriquecem a nossa trajetória.
Curadoria: Luiz Morando
Pesquisa, percurso expografico e textos curatoriais: Luiz Morando
Tratamento imagens: Daniel Fraga e Rita Colaço
Educativo: Émerson Rossi
Tainacan: Daniel Fraga
Página: Daniel Fraga
Em 1957, estreou no cinema o filme Les Girls, com direção de George Cukor e estrelado pelo trio de atrizes Mitzi Gaynor, Kay Kendall, Taina Elg e o ator Gene Kelly. O filme tinha a seguinte sinopse: “Depois de escrever um livro escancarando seus dias de dançarina na trupe Barry Nichols and Les Girls, Sybil Wren (Kay Kendall) é processada por difamar sua antiga companheira de palco Angele (Taina Elg). Assim como no clássico Rashomon, de Kurosawa, aqui a narrativa se desdobra em três episódios para contar três pontos de vista. Sybil acusa Angele de ter tido um caso com Barry (Gene Kelly); Angele, em seguida, diz que foi a amiga quem se enroscou com o sedutor dançarino; mas Barry entra na história para dar a sua versão dos fatos.” Tratava-se de uma narrativa simples, com franco apelo sentimental ao público sustentado por histórias de encontros e desencontros amorosos. Mas certamente foi a relação de amizade do trio de personagens femininas – embalada pelas relações de enganos/desenganos, por coreografias suntuosas, composições musicais preparadas por Cole Porter e um figurino glamoroso – o ponto de partida para a criação do show brasileiro. Ainda no final dos anos 1950, a ideia central de três amigas que compartilham venturas e desventuras serviu de base para, em Paris, serem realizados os primeiros espetáculos com travestis explorando e dramatizando situações cotidianas no palco. No Brasil, uma espécie de pré-Les Girls foi apresentado em julho/agosto de 1964, na boate Stop Club, na Galeria Alaska. Era o espetáculo International Set. O show mereceu duas páginas na edição da revista Manchete de 8 de agosto e pareceu ser composto por cinco travestis. Como legenda de uma das fotos, o editor registrou: “Seus pseudônimos artísticos variam entre o cômico e o grotesco: Bijou Blanche, Brigitte de Búzios, Manon Lascaut e Rogéria, Cravo e Pilhéria. Cantam com voz de falsete, mas dão-se ao luxo de jamais desafinar.” Além das quatro, havia também Marquesa, Gigi e Mamália Rodrigues. Em outra legenda, o editor comenta: “Embora alguns dos travestis trabalhem em ateliers de costura, nem sempre os seus figurinos primam pelo bom-gosto. Em compensação, as perucas com que se apresentam no show são impecáveis.” A Revista do Rádio também fez uma matéria sobre o show com o título “Eles imitam elas…”.
No final de julho de 1964 surgiram as primeiras notinhas na imprensa carioca que anunciavam a preparação de Les Girls. No dia 29, Eli Halfoun, do jornal Última Hora, noticiava o trio responsável pela criação do show: roteiro a cargo de Mário Meira Guimarães; criação musical de João Roberto Kelly e direção de Luís Haroldo. Mais à frente, a data inicialmente anunciada para estreia foi 27 de novembro, mas ocorreu com efeito uma semana depois, em 5 de dezembro. O jornal O Globo publicou um anúncio de tamanho considerável nesse dia. Ainda no dia 5, houve uma jogada de marketing inteligente a meu ver: o Jornal do Brasil publicou pequena reportagem divulgando que a renda obtida na noite de estreia seria revertida para as ações das Irmãs Vicentinas, como de fato aconteceu. Inteligente porque associou o trabalho artístico de oito travestis a uma ação beneficente direcionada a um asilo mantido por aquela ordem religiosa. O show, que se tornaria sucesso ao longo dos onze meses seguintes, foi composto pelas travestis Rogéria, Valéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Manon, Nadja, Wanda e Carmen. Ainda atuavam os atores Jean Jacques e Jardel Mello. O espetáculo era aberto com esta letra de música: “Les Girls, oh, Les Girls / ôôô, Les Girls / Les Girls é ter charme / Touché / Se pôr de bem todo dia / Les Girls é amar, é beber / É ser sexy, sexymania / Sou Les Girls / Sou Les Girls.” Em 15 de março de 1965, Les Girls completou a centésima apresentação.
A partir de junho de 1965, as travestis de Les Girls começam a se apresentar com o show fora do Rio de Janeiro. De um lado, o sucesso e a novidade eram muito grandes, o que estimulava uma demanda de público em outros centros; de outro lado, em abril, o proprietário da Stop Club, Francisco Bouzas, começou a ter problemas financeiros e a não honrar os compromissos com a equipe. Tanto foi assim que em agosto do mesmo ano a boate já estava com as portas fechadas. Mas a trupe não deixou a peteca cair: em junho, elas estiveram em São Paulo, no Teatro Paramount; em setembro, novamente em Sampa, no Teatro Esplanada; pela terceira vez na capital paulista, já em fevereiro de 1966, no Teatro Natal. Mas nem tudo foram flores. Houve censura também por onde andaram! À medida que o sucesso era irradiado pelo país e shows eram programados em outras cidades, a reação conservadora começou a operar. Em novembro de 1965, próximo da estreia do grupo em Santos, uma sessão na Câmara Municipal foi encerrada com confusão. Em sua pauta, houve uma tentativa de votar o requerimento do vereador Dirceu de Souza Lima proibindo a realização de espetáculos com travestis na cidade. Em abril de 1966 foi a vez de Porto Alegre: o “juiz Honorino Batelli, da 2ª Vara da Fazenda, denegou mandado de segurança de um teatro local contra a Censura gaúcha, que proibiu o espetáculo das bicharocas conhecido como Les Girls”, de acordo com Stanislaw Ponte Preta. O grupo já tinha uma formação diferente da original, como ainda veremos no Eixo temático 5. Em novembro de 1966, a cidade do Recife também aderiu à censura a Les Girls: o vereador Wandenkolk Wanderley iniciou articulação para impedir a apresentação do show no Teatro Santa Isabel. Em janeiro de 1967, o ápice do sucesso: uma viagem internacional a Punta del Este, onde o grupo se apresentou. Mas sucesso é bom e todos gostam. A crescente fama provocada por Les Girls não demorou a fazer surgir a concorrência. A revista Manchete fez pequena matéria com um novo show de outro grupo de travestis que se apresentavam na boate Top Club.
O sucesso do primeiro Les Girls abriu passagem para algumas integrantes do grupo iniciar carreira individual fora do país. Ainda em agosto de 1965, Valéria gravou um compacto pela indústria fonográfica Mocambo. Após o cumprimento das diversas agendas em outras cidades no segundo semestre de 1965 e início de 1966, algumas delas foram para Europa, como aconteceu primeiro com a própria Valéria, e depois com Rogéria (convidada por Valéria) e Brigitte de Búzios. Fazia-se necessário suprir o público carioca com um novo espetáculo. A equipe original que criou o primeiro espetáculo voltou a se reunir para um segundo. Com roteiro de Mário Meira Guimarães; criação musical de João Roberto Kelly; direção de Luís Haroldo e figurino de Viriato Ferreira, nascia Les Girls em Op Art. Viriato arrasou no figurino, como as imagens mostram. Inspirado em Courrèges (e eu diria também em Mondrian por meio de Yves Saint-Laurent), a nova geração de girls abalou o Teatro Dulcina, onde fez sua estreia em 17 de março de 1966. O novo show era estrelado por Georgia Bengston, Jane di Castro, Bellah Barrière, Wanda, Vera, Cassandra, Monique e Kristy.
Motivada pelo sucesso do espetáculo Les Girls em Op Art, a revista O Cruzeiro produziu uma reportagem ousada para a época, testando o que hoje chamamos de passabilidade. A reportagem combinou com o grupo de girls um passeio pelas ruas de Copacabana e observou que os transeuntes não percebiam que se tratava de travestis. Participaram da experiência Monique, Vera, Bellah Barrière, Wanda, Cassandra e Geórgia Bengston. A saudosa Jane Di Castro, falecida em outubro de 2020, relatou que a produção do ensaio não foi tão tranquila quanto as imagens sugerem. Em dado momento, os transeuntes perceberam que eram travestis que circulavam à luz do dia e começaram a constranger as meninas. Imediatamente, elas entraram em uma Kombi que as esperava em um local combinado!
Já no final dos anos 1960, dois produtores de Les Girls se apropriam do nome: Carlos Gil e Jerry di Marco. Eles montaram outros espetáculos e começaram a circular pelas capitais do país, com corpos artísticos diferentes. Assim, os espetáculos foram se moldando, adaptando-se às necessidades, à demanda do público, às mudanças culturais e políticas que ocorriam no país, ao mesmo tempo em que perderam em qualidade, suntuosidade de figurinos e se tornando mais escrachados. Ao longo dos anos, a liderança de Jerry di Marco e Ira Velasquez foi determinante para a continuidade do grupo. Em 1979, um novo show debutou com o nome Vive Les Girls, que, em uma de suas turnês, foi apresentado em Belo Horizonte na segunda quinzena de janeiro e na primeira de fevereiro. Desse espetáculo participaram Ira Velasquez, Nádia Kendall, Aloma, Sandra Mara, Sofia Loren, Lola, Sofia di Carlo, Valéria, Marizeth e Jerry di Marco. A história de Les Girls merece ser resgatada com mais detalhes. Em um momento em que várias forças de coerção – policial, judiciária, moral, religiosa, familiar – agiam para oprimir e reprimir as travestis, proibindo-as de sair ou de se apresentar em público, aquele grupo inicial, de dezembro de 1964, tomou para si a tarefa de comprovar suas habilidades e versatilidades artísticas. Fica aqui um sincero agradecimento à Divina Valéria e, em memória, a Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Manon Lascaut, Nádia Kendall, Wanda, Carmen e Jane Di Castro.