Madame Satã: uma parte da história pouco contada

Madame Satã em sua casa na Ilha Grande, em 1974 | Foto de Jorge Peter/Agência O GLOBO

Por Baltazar de Almeida*

Se fosse um cara branco e hétero, e a motivação fosse, sei lá, uma mocinha presa ou sequestrada por agentes espiões, Madame Satã seria o herói ou mocinho de um filme de grande bilheteria dos cinemas.

Mas Madame Satã era preto, abertamente homossexual e, muitas vezes, travestido para expressar sua arte. Viveu em uma época em que ser preto, ser LGBTI+ e ser artista podia significar prisão. E, de fato, significou: foram vinte e sete anos encarcerado, não somente por seus atos, mas por sua existência e por sua recusa em se curvar às normas racistas, homofóbicas e moralistas que tentavam apagá-lo.

Apesar das inúmeras adversidades, João Francisco dos Santos, seu nome de batismo, deixou um legado que transcende sua trajetória de violência e marginalização. Tornou-se um ícone da cultura popular, da resistência preta e queer, da capoeira e da boemia carioca e um ícone da contracultura e resistência.

Vivências na Lapa

Na Lapa, Madame Satã exerceu múltiplas funções: foi segurança, garçom, cozinheiro e capoeirista. Sua habilidade na capoeira e sua destreza com a navalha tornaram-no uma figura respeitada e temida. Treinado por Sete Coroas, um renomado malandro e cafetão da região, Satã aprendeu os segredos da malandragem e técnicas de combate. Após a morte de Sete Coroas em 1923, Madame Satã assumiu seu lugar de destaque na Lapa e na Saúde.  

Carreira teatral e personagens

Além de sua reputação nas ruas, Madame Satã destacou-se no teatro como transformista. Em 1923, participou do espetáculo Loucos em Copacabana, adotando a identidade de Mulata do Balacochê. Suas performances desafiavam as normas de gênero e encantavam o público da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. O nome “Madame Satã” foi inspirado no filme homônimo de Cecil B. DeMille, lançado em 1930. Após vencer um concurso de fantasias, no qual se apresentou como uma “diaba”, um delegado associou sua fantasia ao filme, batizando-o com o nome que o acompanharia pelo resto da vida.  

Sua história não se limita à Lapa, onde reinou como o maior malandro da noite. Ela também se conecta à Ilha Grande, onde viveu um de seus últimos capítulos.

Madame Satã e suas vivências em Ilha Grande

Após anos de prisão, grande parte cumprida no Presídio Cândido Mendes, em Dois Rios, Ilha Grande, Madame Satã decidiu permanecer na região. Fixou-se na Vila do Abraão, onde passou a viver de maneira mais discreta, trabalhando como cozinheiro, lavadeiro e babá. A comunidade local o respeitava, e ele, mesmo longe da efervescência da Lapa, continuou a ser um símbolo de força e autenticidade, participando ativamente das festividades de carnaval de Vila do Abraão, Ilha Grande. Segundo seus relatos no livro Memórias de Madame Satã, foi vencedor do concurso  de melhor fantasia por sete vezes.

Madame Satã se orgulhava de ter criado seis filhos adotivos no Rio e o seu sétimo foi criado em Abraão. De acordo com ele, eram crianças que ele viu e das quais teve pena de sua situação; então, decidiu ajudar a criá-las e fez o que pode por elas.

Seu túmulo, hoje localizado no Cemitério do Abraão, carrega um significado que vai além de um espaço de descanso eterno. Ele representa a luta contra a exclusão social, contra a criminalização dos corpos dissidentes e contra o esquecimento imposto pela história oficial.

A importância de preservar sua memória e legado

Madame Satã permanece como um símbolo de resistência e autenticidade. Sua vida inspirou peças teatrais, músicas e o filme Madame Satã (2002), dirigido por Karim Aïnouz e estrelado por Lázaro Ramos. Sua história é um testemunho da luta contra o preconceito racial e sexual, e sua memória continua a inspirar gerações.

O reconhecimento da trajetória de Madame Satã não é apenas um resgate histórico, mas um ato de justiça cultural. O tombamento de seu túmulo e sua inclusão em um roteiro de Afroturismo Queer em Ilha Grande são formas de garantir que sua memória permaneça viva, inspirando novas gerações a compreender e valorizar a diversidade que construiu (e ainda constrói) a identidade brasileira.

Ao olhar para Madame Satã, não vemos apenas um homem que desafiou as normas de sua época. Vemos a personificação da resistência, da arte e da liberdade – elementos que merecem ser celebrados, protegidos e lembrados.

Baltazar de Almeida é estudante de Licenciatura em Turismo pela UFRRJ, pesquisador de Afroturismo e Turismo LGBTI+. Formado ativista pelo curso “Somos Mais” da Aliança Nacional LGBTI+ (2024), é certificado como Gestor de Turismo pelo Ministério do Turismo e participou do projeto Embaixadorxs – Edição 2024. Atua promovendo diversidade, inclusão e representatividade no turismo.

Pesquise por algo no Museu Bajubá

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso, bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.

Ir para o conteúdo