Mundanas, pederastas e travestis - força de trabalho gratuita para a polícia
Por Luiz Morando*

Quem pesquisa sobre as populações consideradas marginais, e mais especificamente aquelas consideradas dissidentes de sexo e gênero, conhece uma realidade de autoritarismo em diversos níveis voltada contra elas. Os discursos e as ações produzidos contra essa população têm uma voltagem alta no que toca ao desrespeito, à desumanização, à violência, à discriminação. Seja no campo policial, jornalístico, jurídico, judicial, moral, religioso, o posicionamento dessas “autoridades” é acompanhado de atitudes de exposição pública à humilhação, ao vexame, à intolerância, ao isolamento, aos sofrimentos físico e psicológico.
São vários os relatos orais de pessoas dissidentes de sexo e gênero avançadas em idade que mencionam diversas formas de agressão à integridade física, moral e psíquica em sua juventude, nos momentos em que estão construindo processos de sociabilidade.
No caso específico das ‘forças de segurança pública’, sempre foi notório, ao longo das décadas, o esforço de ‘sanear’ o espaço público e livrá-lo da presença de mundanas, anormais, meretrizes, pederastas, travestis.
Essas ações vinham sempre justificadas pela atribuição de vadiagem a essas pessoas ou de outras acusações, como desordem pública, ultraje ao pudor, falta de decoro, perturbação da ordem. Ao serem levadas às delegacias, aquelas pessoas eram obrigadas a trabalhar durante o período de detenção, exercendo atividades consideradas domésticas no recinto da instituição policial.
Sempre foi difícil (senão impossível) localizar documentos oficiais que legitimassem essas práticas, conferindo-lhes certo grau de legalidade. Porém, elas sempre foram exercidas às claras e mantidas como uma tradição nas delegacias de polícia.
Nesse sentido, conseguimos reunir duas pequenas matérias da imprensa de Belo Horizonte que ajudam a confirmar que essas práticas existiram de maneira acordada entre as diversas delegacias de polícia desde a década de 1930 na capital mineira.
Reproduzimos aqui as duas matérias para que você possa ler e conferir o grau de arbitrariedade revestida sob a capa de legalidade policial. No primeiro texto (mantida a grafia da época), de 10 de setembro de 1937, a manchete já deixa claro que ‘mulheres mundanas’ serão forçadas a trabalhar quando forem presas. A iniciativa, colocada em prática pela Delegacia Especializada de Costumes, “em combinação” com a Guarda Civil, é elogiada pelo órgão de imprensa. Não resta dúvida de que seja um acordo entre autoridades à margem da lei.
Trinta anos depois, em 22 de junho de 1967, o segundo texto expõe a imagem de uma mulher encerando o chão de uma delegacia. O breve texto é claro na forma de normalizar essa iniciativa, garantindo que aquela prática, iniciada formalmente trinta anos antes, já havia se tornado uma tradição nas repartições policiais. Durante o período de detenção, fica claro que mundanas, pederastas e travestis são usados como força de trabalho gratuita (escrava?) ao poder público policial.
Estado de Minas, Belo Horizonte, ano X, n. 3.340, 10/09/1937, p. 12
Moralizando a zona bohemia
As mulheres que promoverem escandalos serão presas e forçadas a trabalhar
Uma medida elogiável vae ser posta em pratica, a partir de hoje, pela polícia da Delegacia de Costumes.
Doravante, de acordo com uma combinação realizada com o dr. Gumercindo do Valle, superintendente da Guarda Civil, todas as mulheres da zona bohemia que provocarem escandalos, desautorando (sic) policiaes ou promovendo desordem e conflictos serão presas e entregues à Delegacia de Vigilância, que se incumbirá de dar-lhes trabalho.
A zona bohemia offerece, actualmente, um aspecto que muito depõe contra os nossos foros da civilização.
Ainda ante-hontem, tal é o respeito que ali se tem pela autoridade, varias mulheres se reuniram e espancaram a valer o guarda n. 47, ferindo-o bastante.
O policial foi medicado no Prompto Socorro.
Desta forma, se a Delegacia de Costumes não puzesse em pratica enérgicas medidas, as mundanas repetiriam sempre a proeza, munindo-se para espancar policiaes.
29 MULHERES PRESAS
Na madrugada de hontem, a policia realizou uma “batida” na zona bohemia, detendo 29 mulheres que se portavam escandalosamente.
As decahidas não foram, porém, enviadas para o trabalho dos campos agrícolas que o Estado possue na capital, por não terem sido ainda advertidas. De agora em deante, entretanto, as autoridades, segundo nos declarou o dr. Miguel Gentil, agirão com rigor.
Diário de Minas, Belo Horizonte, ano XVIII, n. 5.351, 22/06/1967, p. 9
Delegado dá trabalho a mulheres
A ociosidade de muitas mulheres pelas ruas, vem sendo um dos pontos de ação da Delegacia de Costumes, que deseja acabar com o fato, identificado como vadiagem, na Lei de Contravenções Penais. Depois de prender e soltar muitas mulheres, o delegado Sebastião Franco e o subinspetor José Martinho Drumond viram que muitas delas voltam a andar pelas ruas centrais sem o que fazer. Assim, desde ontem, todas as mulheres presas no “trottoir” recebem uma tarefa no Departamento de Investigações: lavar o chão, encerar o piso dos cinco andares do prédio, passar óleo nos móveis ou limpar os sanitários. Esperam as autoridades que o castigo faça com que as praticantes do “trottoir” procurem serviço.
*Luiz Morando é co-fundador do Museu Bajubá, onde exerce a vice-presidência e a coordenação da Estação Belo Horizonte.
