O texto que se segue foi publicado em 28 de julho de 2013, no sítio PLC 122, editado e coordenado pelo ativista Marcelo Gerald. Trata-se de elaboração coletiva, de Alexandre Mello Franco Bahia, Marcelo Gerald, Paulo Iotti, Rita Colaço e Thiago Viana, além das participações de Luth Laporta e Luís Arruda. Tanto o conteúdo do sítio PLC 122 quanto o do Eleições Hoje, ambos do Marcelo, foram perdidos. O Marcelo está trabalhando para recuperar tudo o que seja possível. Por se tratar, hoje, de material histórico sobre as lutas pela equiparação da discriminação aos homossexuais, travestis e transexuais ao racismo, ele está sendo aqui publicado.
O PLC122 aumentaria o Estado Penal?
Por Alexandre Mello Franco Bahia, Marcelo Gerald, Paulo Iotti, Rita Colaço e Thiago Viana*
Temos visto alguns militantes defendendo que criminalizar a homofobia e a transfobia significaria aumento do Estado Penal. As justificativas a princípio parecem boas, mas percebemos que há muito desentendimento e várias contradições quanto ao entendimento dessas pessoas.
Alguns afirmam que o PLC 122 aumentaria o Estado Penal – isto é, o raio de persecução penal do Estado, mas essa afirmação é equivocada, o que ativistas LGBT buscam é a “equiparação da homofobia ao racismo”, ou seja, que a discriminação e a ofensa com base na orientação sexual ou identidade de gênero da vítima seja punida da mesma forma que a discriminação e a ofensa contra pessoas com base na cor, etnia, procedência nacional e religião (critérios da atual Lei de Racismo) – os que praticam tais crimes não estão atualmente a salvo da lei (logo, não há acréscimo de novos sujeitos na órbita penal), mas suas ações se enquadram em tipos que expressam crimes “menores”, incompatíveis com o dano que causam. A homofobia e a transfobia são espécies do gênero racismo já que o Supremo Tribunal Federal entende como racismo qualquer ideologia que pregue a inferioridade/superioridade de um grupo relativamente a outro (STF, HC 82.424/RS), no que a homofobia e a transfobia se enquadram, como defendido pelo co-autor Paulo Iotti no Mandado de Injunção 4733, no qual a ABGLT pede que o Supremo Tribunal Federal, entre outras coisas, declare a obrigação constitucional do Congresso Nacional de criminalizar a homofobia e a transfobia como espécies do gênero racismo.
Esse tema das propostas de criminalizar a homofobia e a transfobia apenas com penas alternativas já foi tratado em texto do Paulo Iotti, em que ele pontuou a preocupação com a hierarquização de opressões, que é outra incoerência apresentada por alguns dos defensores do Estado Penal Mínimo, já que não apresentam propostas de rever as discriminações já previstas em lei. Isso porque afirmar que a criminalização da homofobia e da transfobia deveria ser mais branda ou oferecer penas alternativas às de prisão, induziria as pessoas a pensarem que a discriminação e injúria contra negros, judeus ou religiosos seria mais grave que a discriminação e a injúria contra homossexuais e/ou transexuais, já que para as primeiras está prevista a pena de prisão e para os últimos seriam previstas apenas penas alternativas. Não tem como negar isso: o senso-comum do povo vai entender que as discriminações e injúrias punidas com prisão seriam mais graves que as punidas com penas alternativas, isso para não dizer que no Brasil se banalizou a pena alternativa da “cesta básica”, o que fez a Lei Maria da Penha proibir esse tipo de pena para a violência doméstica -não adianta dizer que essa não é a intenção, pois é essa a mensagem que vai passar um texto (objetivamente considerado) que diferencie as punições às discriminações e injúrias por orientação sexual e identidade de gênero relativamente àquelas por cor, etnia, procedência nacional e religião. Vale lembrar que o Brasil é punitivista e embora o Estado Penal Mínimo seja o ideal, algo a ser alcançado para o futuro, nem a mentalidade do brasileiro, nem as leis serão mudadas do dia para a noite. A questão é a seguinte, ou se muda todo o sistema penal brasileiro, para ele deixar de ser punitivista, ou não é justo tratar pessoas LGBT com penas alternativas sem fazer isso para o restante da sociedade: ou se transforma o sistema penal como um todo ou então se criminaliza a homofobia e a transfobia segundo a mesma lógica do Estado.
Logo, a proposta seria aceitável APENAS caso fosse revisto TODO o Código Penal e TODA a Lei de Racismo e, para isso, o Movimento Negro, o Movimento Judaico e todos os grupos protegidos pela atual Lei de Racismo deveriam ser consultados, já que teriam que ceder conquistas, mas mesmo que isso acontecesse haveria outra barreira, jurídica, que não poderia ser ultrapassada por nenhum acordo: a nossa
Constituição Federal diz que o crime de racismo é inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão/PRISÃO, ela não dá alternativas, a punição tem que ser a de reclusão (prisão) e não há como mudar isso. Sendo a homofobia e a transfobia espécies do gênero racismo como demonstrado acima, não há como puni-las de forma distinta, sendo que ainda que alguém dissesse que não, a não “equiparação ao racismo”, além de ter a oposição do Movimento LGBT como um todo, desrespeitaria a isonomia e não poderia ser considerada, já que criaria a citada hierarquia de opressões.
Outra afirmação bem comum entre os defensores do Estado Penal Mínimo é que não adiantaria termos penas privativas de liberdade porque poucas vezes racismo deu cadeia no Brasil, mas essa afirmação é simplesmente equivocada e falsa, por dois motivos: (i) basta lembrar a quantidade de “piadas” de menosprezo a negros antes e depois da Lei de Racismo para ver que depois dela ditas “piadas” deixaram de existir – o preconceito contra negros ainda existe e é notório no Brasil, mas a discriminação (a exteriorização do preconceito) inegavelmente diminuiu (temos no Brasil aquela coisa incompreensível chamada de “racismo cordial”, ninguém está negando que haja muito racismo negrofóbico no Brasil, mas ele é disfarçado), logo, a Lei de Racismo inegavelmente/notoriamente produziu esse efeito – efeito simbólico, que seja, mas efeitos simbólicos também são um dos possíveis resultados esperados quando da aprovação de uma lei segundo os cânones mais rudimentares de Teoria do Direito; (ii) um dos grandes problemas da Lei de Racismo é que ela, quando foi criada, falava “apenas” em “racismo” e não em “injúria racial”, uma diferença inventada pelos Tribunais para dizer que “racismo” ocorre apenas quando se desqualifica a coletividade inteira e não quando se desqualifica uma pessoa (individualizada) por sua “raça”, o que se caracterizaria como “injúria racial”, mas como esta não estava prevista na redação original da lei, essa conduta ora era enquadrada na “injúria simples”, de pena ínfima, ora (pior ainda) era considerada como “fato atípico”, ou seja, fato não criminalizado… situação essa que mudou só em 1997 (e a Lei de Raci
smo é de 1989), quando o legislador, se conformando com essa (absurda e de constitucionalidade muito duvidosa) distinção entre “racismo” e “injúria racial”, acabou alterando a Lei de Racismo para punir expressamente a “injúria racial”. Mas cabe reiterar que os críticos desconsideram o fator educativo da lei: o simples fato da lei contra o racismo ser aprovada fez com que ao longo dos anos manifestações públicas de racismo fossem cada vez mais raras e isso não é pouco (e em 1997 isso já estava relativamente consolidado), pois mostrou para a sociedade que ser racista não é aceitável, o racismo dessa forma foi sendo contido (sendo que quando o legislador “sanou” esse problema absurdamente criado pelos Tribunais, a sociedade já estava relativamente educada no sentido da ilegalidade do racismo como um todo).
Claro que a lei penal não exclui a necessidade de outras medidas inclusivas e educativas para que tenha maior eficácia, ninguém discute isso, o que não se aceita é a hierarquização de opressões. Alguns afirmam que o PLC 122 aumentaria o Estado Penal – isto é, o raio de persecução penal do Estado, mas o Estado Penal Brasileiro já pune diversas formas de discriminação, a saber, as cometidas em razão de cor, etnia, procedência nacional e religião, logo, se o Estado Penal já se ocupa da punição de discriminações em geral, deve punir com igual rigor as discriminações e injúrias por orientação sexual e identidade de gênero, já que se tratam de opressões equivalentes (não idênticas, mas análogas) àquelas já punidas pela atual Lei de Racismo. Até porque, à exceção da discriminação homofóbica e transfóbica, os que praticam tais crimes não estão atualmente a salvo da lei (logo, não há acréscimo de novos sujeitos na órbita penal), mas suas ações se enquadram em tipos que expressam crimes “menores”, incompatíveis com o dano que causam e com a gravidade da conduta (ou seja, as ofensas e lesões corporais são punidas atualmente, mas com penas ínfimas, não condizentes com o dano que causam e com a gravidade da conduta)”.
Outra argumentação contra o sistema punitivista seria a de que a cadeia que temos hoje não recupera o criminoso, afirmação da qual não há como discordar, mas essa é outra discussão em torno da qualidade de nossas cadeias e sobre a inserção do preso na sociedade. É uma discussão necessária que precisa ser tomada pelo Congresso e setores da sociedade, mas afirmar que “a prisão não adianta nada” e não tentar mudar essa realidade é aceitar tudo como está sem mover um dedo para mudar a situação… A se tomar tal argumento, dever-se-ia, a bem da verdade, abolir toda e qualquer penalização restritiva de liberdade. Quando forem propostas penas alternativas para todos os crimes (e sobre os crimes de ódio temos o problema jurídico citado da Constituição mandar punir o racismo com cadeia) será necessário rever não só o Código Penal, como um todo, como a Lei de Execuções Penais, pois o trabalho de ressocialização do preso deverá ser revisto e novas alternativas devem ser propostas. Com isso afirmamos que o PLC122 é o ideal e é o que é possível para o sistema penal que temos hoje no Brasil: se um dia caminharmos para um sistema menos punitivista aí sim poderemos falar em penas alternativas e com isso não estamos dizendo que elas seriam melhores ou piores. Poderiam sim ser positivas, desde que não virassem simples conversões em cestas básicas (tanto que a Lei Maria da Penha proibiu essa forma de pena, já que Maria Berenice Dias bem diz que era barato bater na mulher, bastava pagar uma cesta básica e pronto… pois bem, não dá para aceitar ser barato bater em pessoas LGBT…).
Há ainda os que se opõem à pauta da criminalização dizendo que deveríamos focar em pautas propositivas, como as do casamento igualitário, que seriam mais eficazes, mas não há como dizer que isso seria uma “regra universal”: em alguns países o casamento foi reconhecido primeiro, em outros primeiro veio a criminalização da homofobia e da transfobia. Na
África do Sul o casamento é reconhecido há anos e
grande parte da população ainda acredita que LGBTs não deveriam ter direitos… É claro que reconhecer direitos humaniza e faz com que a sociedade veja o cidadão LGBT como sendo igual ao heterossexual, mas há que se punir quem insiste em discriminar/ofender, sendo que reconhecer direitos não anula a necessidade de coibir crimes. Outro exemplo interessante de se avaliar é o caminho perseguido pelo Chile: lá a criminalização veio primeiro e a discussão caminhou rapidamente, pois havia muita vontade política, bem como o exemplo dos EUA, onde existe a criminalização por lei federal (o Matthew Shepard Act) mas não o casamento igualitário em termos federais (só alguns poucos estados o permitem, outros permitem leis de “união civil”, outros proíbem qualquer forma de proteção a casais homoafetivos, outros simplesmente não falam nada sobre o assunto).
Lutar por um Estado com penas mais leves e socializadoras é legítimo e algo a ser buscado, mas há que se ter consciência dos limites e de como isso pode (e deve) ser alcançado, sendo que não é justo que LGBTs sejam cobaias de tentativas de implantação de penas alternativas (que penas alternativas? Qual experiência mundial concreta é usada como parâmetro? Por que só as discriminações/ofensas/etc por orientação sexual e por identidade de gênero e não todas as outras? Por que só elas sem mudar o sistema penal como um todo?). Sendo que cabe lembrar que o Movimento Social (organizado) LGBT e mesmo ativistas independentes entendem a criminalização da homofobia e da transfobia como sendo prioritárias e que deve ser feita nas mesmas bases da atual Lei de Racismo, o que não desmerece outras medidas educativas e o casamento igualitário. São pautas complementares, nenhuma delas esgota o assunto ou resolve todos os nossos problemas isoladamente – elas são complementares e devem ser defendidas concomitantemente.
* Alexandre Mello Franco Bahia Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia – Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela UFMG; Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto e na Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado.
* Marcelo Gerald é psicólogo e ativista LGBT. Militante representante dos sites Eleições Hoje e PLC122.
* Paulo Roberto Iotti Vecchiatti é advogado, constitucionalista, Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru (2010), Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP (2008) e autor do livro ‘MANUAL DA HOMOAFETIVIDADE. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos.
* Rita de Cassia Colaço Rodrigues – Doutora em História Social e Mestre em Política Social pela UFF; Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela UFRJ; ativista social autônoma em direitos humanos; responsável pelos blogs Comer de Matula e Memória / História MHB / LGBT; colunista do portal Brasília em Pauta; delegada Sindical; integrante do Comitê Carioca da Comissão Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro – CEDs-Rio.
* Thiago G. Viana – Advogado, Presidente do Conselho Jurídico da Liga Humanista Secular do Brasil – LiHS, Pós-graduando em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG, Presidente da Comissão de Direitos da Diversidade Sexual, Membro da Comissão de Estudos Constitucionais, Institucionais e Ac
ompanhamento Legislativo e da Comissão de Jovens Advogados, todas da OAB/MA.
* Participaram dessa discussão também os ativistas Luth Laporta, estudante de Serviço Social, constrói a Assembléia Nacional de Estudantes – Livre (ANEL) e é militante da Cia. Revolucionária Triângulo Rosa e Luís Arruda Militante do setorial LGBT do PSOL, advogado, Ex-colaborador do All Out, um dos administradores do Grupo Ato Anti-Homofobia.