O ativista Dario Neto em seu artigo
O Movimento LGBT e o Casamento Civil Igualitário utiliza-se de um texto de Hannah Arendt para justificar o seu entendimento pessoal de que a pauta dos movimentos LGBTs deva ficar adstrita à conquista do casamento igualitário.
Eis o texto que o autor seleciona e emprega a modo de epígrafe:
“O direito de casar com quem quiser é um direito humano elementar comparado ao qual ‘o direito de frequentar uma escola integrada, o direito de sentar onde lhe apraz num ônibus, o direito de entrar em qualquer hotel, área de recreação ou lugar de diversão, independentemente da pele, cor ou raça’ são realmente secundários. Mesmo os direitos políticos, como o direito de votar, e quase todos os outros direitos enumerados na Constituição, são secundários em relação aos direitos humanos inalienáveis ‘à vida, à liberdade e à busca da felicidade’ proclamados na declaração da Independência; e a essa categoria pertence inquestionavelmente o direito ao lar e ao casamento”. Hannah Arendt – Reflexões sobre Little Rock, p. 271. (Negrito de minha autoria, RC)
A partir desse privilegiamento de um item na pauta da luta por igualdade social e jurídica dos negros estadunidenses que faz Arendt, Dario traça um paralelo entre aquelas lutas e as demandas atuais dos movimentos LGBTs nacionais. E, nesse “paralelo”, ele conclui ser um “equívoco político” “a nossa inversão de pauta”.
Sem deixar claro quem foi e quando se teria estabelecido a pauta primeira e quem e onde, depois, deliberou pela sua inversão, Neto pontifica:
“Na medida em que, o individuo não possa constituir família, todos os outros direitos lhe serão violados e, uma vez reivindicados, serão entendidos como privilégio.”
Antes, porém, afirma:
“Da luta por direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade, passou-se para a criminalização não somente da violência física vergonhosa que tem aumentado no Brasil, mas qualquer discurso vexatório e injurioso contra LGBT. Tendo a concordar com Arendt que o impedimento ao casamento de pessoas do mesmo sexo é a mais abusiva das violações e, nesse sentido, todas as outras violações tornam-se secundárias.” (Negritos de minha autoria)
No meu curso não concluído de bacharelado em História me ensinaram que não é possível comparar maçãs com cebolas. Quer isto dizer que não posso impunemente comparar duas realidades distintas cultural e historiamente falando. Em outras palavras, não é possível a comparação entre movimentos distintos, com atores, pautas e formas de estigmatização distintas, localizados em contextos cultural e historiamente distintos.
Hannah Arendt defende, naquele contexto da integração forçada das crianças negras nas escolas imposta pelo governo federal dos EUA, a via do direito ao casamento interracional como ponto prioritário, comparativamente à integração forçada das crianças nas escolas.
E aqui, o que temos nós, brasileiros, em 2012?
Temos em primeiro lugar que aquilo que Dario chama de movimento LGBT é, na realidade, uma associação nacional que representa APENAS a opinião de um aglomerado de Ongs com baixíssimo número de integrantes efetivos, ou seja, uma entidade que peca por sua frágil representatividade; portanto, um “movimento social” sem povo, voltado para a prestação de serviços em determinadas áreas da assistência social, por substituição ao Estado; sem base de sustentação – somente os poucos dirigentes das ongs vez que o seu “público-alvo” disperso – porque mero usuário de serviços – não tem o direito de participar das deliberações das referidas associações.
Temos, ainda, que o direito civil de associação (é o direito a constituir família é uma das modalidades do direito de associação) apenas surge DEPOIS do “direito inalienável à vida”. Este, um direito constitucional; aquele, um direito fixado pela legislação civil, infraconstitucional. E mesmo nesta, na legislação civil (Código Civil), a definição de pessoa capaz de direitos e obrigações (o comumente denominado sujeito de direitos) é dada logo no Livro 1, Título I, ao passo que o Direito pessoal de constituir família apenas é tratado no Livro IV, Título I.
Tanto no ordenamento constitucional nacional quanto nos direitos humanos internacionais, o primeiro direito, aquele que torna-se axial de todo ordenamento jurídico ocidental, é o direito à vida, à vida digna, o que significa livre de qualquer constrangimento ou estigmatização. Daí porque direito fundamental. Precisamente porque nele repousa o fundamento da vida política, do estado juridicamente organizado. Em nossa vigente Constituição da República, ele figura no Título II, artigo 5º, caput, tendo sido já mencionado no Título I, art. 1º. Já o direito à livre associação, figura no inciso XVII. Enquanto isso, a Família é tratada apenas no Capítulo VII do Título VIII, artigos 226 e seguintes.
Temos também – esqueceu-se de esclarecer Dario -, que a decisão de apresentar um projeto de lei buscando a regulamentação jurídica das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo foi uma iniciativa exclusiva da Deputada Marta que, após ter a ideia, buscou conversar com os ativistas hegemônicos para fins de seu encaminhamento, com o que a ABGLT concordou.
Tratou-se, como se vê de uma decisão unilateral, de cima pra baixo. Ninguém consultou “o segmento”, a população de gays, lésbicas, travestis e transexuais – Até porque, como muitos hegemônicos afirmam até hoje, a ABGLT não tem porque ouvir ou esclarecer nenhum LGBT que não integre alguma de suas associadas, embora isso não esclareça toda vez que era instada a se pronunciar como se “representante dos homossexuais, travestis e transexuais brasileiros” fosse.
Decidiu-se dentro de quatro paredes que seria bom aproveitar o mandato federal de uma parlamentar cuja trajetória sempre se pautou na questão da sexualidade, apresentar uma tal proposta, haja vista tratar-se de uma parlamentar do PT, partido que desde o início fez constar em seus Estadutos a luta em defesa dos direitos das pessoas homossexuais.
Não se tratava em absoluto de uma demanda formulada pelas subculturas homoeróticas. De forma nenhuma. Podia, se muito, ser uma demanda interna, silenciosa, de todos aqueles que se viram repentinamente envolvidos no grande abismo de preconceitos, discriminações, não reconhecimento, apropriação de bens, decorrente da condição médica de seus parceiros e, de
pois, de seu óbito. O que em nada retira a validade da demanda. Apenas lhe posiciona em seu local de origem e segmento verdadeiros.
Já a luta pela não discriminação, vale dizer, a luta por uma vida digna, livre de humilhações (que é precisamente o bem que o PLC 122/06, anteriormente denominado
PL 5003/2001, visa proteger) é muito, muito mais antiga.
Ademais de muito antiga, significa a luta pelo direito humano mais elementar de todos, que é o direito à vida, à vida digna. Todos os demais direitos lhe são secundários.
Ninguém pode pleitear o casamento civil igualitário ou qualquer outro direito civil ou fundamental se não tiver garantido, antes, o direito à sua própria vida. Se a existência física em situação de dignidade não for garantida, nenhum outro direito pode vir em socorro.
Para as travestis, por exemplo, custa crer que qualquer ativista ou pessoa minimamente ciente de sua realidade, possa supor que o casamento civil igualitário se constituia em demanda mais urgente do que o direito à uma vida livre de discriminação.
Sobretudo após o advento da unânime decisão proferida pelo STF na ADPF 132, que garantiu a extensão do instituto jurídico da união estável aos parceiros do mesmo sexo, reconhecendo a essas conjugalidades o status de família, sendo possível, em decorrência a sua conversão em casamento. Decisão esta que possui poder vinculante, vale dizer, que todos os juízos tem o dever de observar.
Travestis e demais homossexuais mais “visíveis”, sobretudo se pobres – sabemos todos –, compõem a parcela mais ostensivamente segregada e desqualificada, alvo de toda sorte de violência – de expulsões de casa, alvos de acosso, apedrejamento, espancamento, forçado corte de cabelo; atirados do trem em movimento; “currados” por policiais; obrigados a limpar as delegacias de polícia (FIGARI, 2007, p. 372-373*).
Pelo estágio atual das pesquisas, desde da década de 1970, as bichas e as travestis, sobretudo, mas também em alguma medida as sapatonas, as marimachas, vale dizer, o espectro economica e culturalmente mais descapitalizado do universo LGBT, tem sido alvo de ações de claro e comprovado extermínio – ouça-se, no Rio de Janeiro, os ativistas dos grupos da Baixada Fluminense; assistam aos documentários de Vagner de Almeida
Basta um Dia e
Crimes de Ódio; leiam ademais da ampla bibliografia composta por livros e artigos de autoria do antropólogo Luiz Mott, os livros de
ARRUDA, Roldão. Dias de ira: uma história verídica de assassinatos autorizados. São Paulo: Globo, 2001. – Investigação jornalística sobre uma série de assassinatos de homossexuais que assustou a cidade de São Paulo em 1986, de MACHADO, Luiz Carlos. Descansa em paz Oscar Wilde. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, e de SILVA, Hélio R. S. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; ISER, 1993.
Remonta ao ano de 1956 os registros disponíveis sobre iniciativas de parcelas desse segmento da sociedade brasileira por não discriminação; por vida digna, em última palavra. É de Minas Gerais que os jornais noticiam, entre 1956 e 1966, movimentações de “degenerados”, “introvertidos” e “mocinhas masculinizadas” de Belo Horizonte, em sua maioria frequentadores da praça existente no interior do Parque Municipal, para organizar uma associação.
Em 1966 tais notícias se fazem acompanhar do nome da entidade – Libertados do Amor. Segundo informa o Diário de Minas, o objetivo seria, à semelhança da Associação de homossexuais sediada em Amsterdã, Holanda, que solicitou à ONU “um exame, sem preconceitos”, da questão homossexual, no sentido de “que os homossexuais sejam considerados seres humanos normais que contudo externam suas paixões de maneira distinta”, encaminhar ao governador um “memorial, implorando um pouco de complacência dos homens do governo aos problemas da “classe”.”
Em janeiro de 1968 a notícia retorna ao jornal. O Diário de Minas anuncia que “os costureiros e figurinistas da praça alugaram uma casa, bolaram os estatutos, registraram o clube, e já se reúnem diariamente para a defesa de sua classe.
Se acaso considerarmos não factíveis tais notícias vindas nos jornais de Belo Horizonte, havemos de considerar a latência expressa por meio de um artigo de Carlos Figari, de O Snob, do Rio de Janeiro, em março de 1969, intitulado “Protesto”, no qual era imaginada uma manifestação massiva em Brasília, reivindicando “direitos civis da boneca brasileira”, com faixas em letras góticas, com dizeres entre outros: “Abaixo Padilha – Viva Rogéria!”
Ou, de forma muito mais incisiva, no mesmo jornalzinho, em sua página 48:
A fase é de politizar culturalmente. […] o que nos leva a todos nessa projeção é um ideal comum de humanos a humanos mostrar que nos insurgimos contra uma marginalização que procuram nos impor que o homossexualismo seja apenas uma fome escusa e degradantes de vielas noturnas, ou de luzes coloridas sob o burlesco fantasioso dos palcos de teatros onde alguns travestidos lantejoulam sua realidade, ou de um comportamento sexual exótico, ou ainda uma passividade mórbida (O Snob, nº 1, 1969 apud COSTA, 2010, p. 48).
Em julho de 1972, em Belo Horizonte, MG, e em São Paulo, Capital, Édson Nunes dá início ao seu ativismo possível. Pela via da organização de Simpósios de Debates sobre o Homossexualismo, busca por intermédio das falas de “autoridades” – religiosos, médico e psiquiatra -, ao seu modo e segundo aquilo que estava ao seu alcance, a vocalização por parte de especialistas e demais autores de discursos de verdade, uma representação menos desqualificadora, mais humanitária, mais integrativa desses cidadãos de segunda classe.
Lamentavelmente, porém, como era de se esperar, na grande imprensa, nos periódicos de circulação nacional, os jornalistas preferiram se prestar ao papel de selecionar suas fontes e noticiar os eventos através de falas dos palestrantes os mais conservadores. Nesse projeto, apenas os jornais locais cuidaram de dar uma cobertura mais fidedigna aos eventos.
Assim, no dia dezesseis, um domingo, o jornal Estado de Minas notícia o simpósio. Embora o título e seção no interior da matéria apontem para um enfoque supostamente mais conservador, reforçando as vigentes representações desqualific
adoras, o conteúdo do texto caminha em sentido oposto. Após referir a opinião do Psiquiatra Paulo Saraiva, que mencionara a existência de muitas correntes explicativas, elenca os diversos palestrantes no evento, todos com opiniões relativamente favoráveis. A primeira após Saraiva diz: “E Joaquim Afonso Moretzsohn, diretor da Clínica Pinel, completa: – Em muitos casos, a cura não é mudar o comportamento da pessoa, mas conduzi-la à sua própria aceitação.” O último cujas opiniões são citadas na matéria, “o pastor Márcio Moreira, da II Igreja Presbiteriana” afirma que “o homossexual é digno da graça de Deus e do amor do próximo, para que ele possa se reencontrar no plano da criação. Quando falham os recursos científicos, interfere a graça divina” (Estado de Minas, 16/07/72, p. 11).
Ainda para o mesmo ano de 1972, o antropólogo, professor, ativista e pesquisador Luiz Mott também fez menção à existência de registros sobre “um frustrado congresso de homossexuais de Caruaru, no sertão nordestino”, anteriormente a esses simpósios de Belo Horizonte (MOTT, 2007). O etnólogo traz transcrições de matérias publicadas em três dias diferentes no jornal Tribuna da Bahia (13/4/72, 5/5/72 e 6/5/72). Trata-se de um Congresso a ser realizado no dia nove de junho de 1972, na cidade de Caruaru, PE, para discutir a homossexualidade. O evento, que estaria sendo organizado pelo padre Henrique Monteiro, a Igreja Ortodoxa Italiana, terminou por produzir grande “celeuma” na cidade.
Mott, em lista de discussão virtual onde trouxe a fonte, logo chamou a atenção para o conteúdo da fala de Daniele, constante na matéria publicada no dia cinco de maio. Segundo a transcrição da notícia, a matéria do Tribuna da Bahia se refere à Daniele como “uma boneca que desmunheca a todo instante. A sua figura é uma agressão.”
Entretanto, pelo conteúdo da fala de Daniele, percebe-se o seu nível de consciência política e de informação a respeito do movimento Gay estadunidense. A sua análise estrutural e conjuntural é digna de nota, a merecer boas meditações por parte de muitos ativistas atuais, que se arvoram em oráculos:
Não seria um Gay Power nos moldes das organizações americanas e da Europa, onde a reação à homossexualidade é mais declarada e mais violenta a reação. No campo do trabalho estamos marginalizados, somos apenas cabeleireiros, costureiros ou artistas. A nossa sexualidade é um estigma; se não a encobrimos somos reprimidos. E mesmo no Brasil, vejo um agregamento de homossexuais neste sentido como mais uma coisa viável. Não imediatamente, mas alguns passos já pode[m] ser dado[s] nesta direção. Na Bahia, no Rio e São Paulo e em centro[s] maiores. […]
Nos acusam de só pensar em sexo – claro, reprimidos na nossa sexualidade, de certo modo isto tem fundamento – é o nosso estigma. A formação de grupos é seriamente afetada pela necessidade do homossexual de se encobrir, pressionado por fatores culturais. Mas [os] grupos dos que tem coragem de assumir já está [sic] crescendo e estes grupos na Bahia já são um fato. E estes grupos já vem forçando a aceitação dos homossexuais ou em algumas áreas em que é forçoso agir. Educação sexual dado nas escolas é um problema sério. Isto por causa de pessoas preconceituosas e mal capacitadas que divulgam idéias erradas sobre o homossexualismo. “Esta é uma doença séria que precisa ser evitada a todo custo” – é assim que encaram o problema. Outra coisa no programa dos homossexuais que começam a se organizar é a assistência social dos homossexuais. Com médicos, psicólogos, etc. Esta assistência teria o papel também de amparar o jovem expulso de casa, procurar mercado de trabalho etc.
O conteúdo de sua fala surpreende, igualmente, ao apresentar tópicos do “programa” reivindicativo “dos homossexuais que começam a se organizar”: a inserção da educação sexual nas escolas; programas de acolhimento aos que foram expulsos de casa; de assistência social, com serviços médicos e psicológicos; e de inserção no mercado de trabalho. Tópicos de uma agenda política que apenas com o Programa Brasil sem Homofobia, em 2004 e as Conferências Nacionais de Políticas Públicas para pessoas LGBTs (2008 e 2011), os movimentos LGBTs foram capazes de sistematizar e de buscar concentrar esforços para a sua implementação.
A fala de Daniele surpreendente ainda mais pelo fato dela viver numa cidade do interior do Nordeste, a 135 quilômetros de Recife, a capital de Pernambuco; numa época em que a circulação de informação se fazia de forma bem mais difícil e lenta e sob um regime de governo extremamente patrulhador e censório. Sem falar no contexto político daquele período do regime ditatorial. Afinal, fazia apenas cinco meses que Lamarca e Barreto haviam sido assassinados pelos militares no sertão da Bahia (dezembro de 1971) e a censura atravessava o seu momento mais agudo.
Em 1977, o jornal artesanal Gente Gay, editado por Agildo Guimarães, no Rio de Janeiro. traz na página treze um artigo do editor no qual, por ocasião da eleição para vereadores, ele chama a atenção para a necessidade de os homossexuais terem representação parlamentar, “a fim de defender nossas cousas e pessoas”.
No primeiro encontro dos grupos de militância, ocorrido no Rio de Janeiro, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em dezembro de 1979, as discussões trazidas giravam em torno de um trabalho de combate à violência contra as mulheres, contra a reprodução dos papéis de gênero, como apresentado pelo Grupo Lésbico-Feminista; a questão carcerária, trazida e já trabalhada pelo grupo Beijo Livre / Brasília; a liberação sexual da população em geral.
Dentre as propostas apresentadas, Marcelo, do Grupo Auê / RJ,
“pediu que se iniciasse uma campanha para obter uma pequena alteração no Capítulo da Constituição Federal em que se proibe a discriminação por sexo, para que passasse a figurar por opção sexual; e que se abrisse a luta para que o homossexualismo deixasse de ser c
atalogado no capítulo das ‘doenças mentais'”. (Negritos do original. Lampião da Esquina, janeiro de 1980, nº 20)
Essas duas propostas, endossadas nos encontros subsequentes, terminarão implementadas pelos ativistas da primeira geração.
A luta no Congresso Constituinte pelo direito à não-discriminação será levada pelo bacharel em Direito João Antônio Mascarenhas, do grupo carioca Triângulo Rosa. Ali, o Movimento vê a sua demanda contemplada no 1º e 2º Substitutivo da Comissão de Sistematização – vez que, embora não trouxesse a expressão “orientação sexual”, fixava expressamente como crime inafiançável toda e qualquer modalidade de “discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, sendo formas de discriminação, entre outras, subestimar, estereotipar ou degradar pessoas por pertencer a grupos étnicos ou de cor, por palavras, imagens ou representações, em qualquer meio de comunicação” – art. 5º.
No entanto, esse texto termina modificado ao final, garantindo-se apenas uma proteção “meia boca”, na medida em que mantém a proibição de discriminar, independentemente do motivo, e determina que “a lei [complementar] punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI, artigo 5º).
Mas para o que interessa aqui – a comprovação de que tanto os proto-ativistas quanto o Movimento Homossexual Brasileiro sempre se posicionaram no sentido de reivindicar de forma prioritária, o direito à vida digna, vale dizer, à vida sem desqualificação, o que implica na reivindicação do direito humano elementar que é o direito ao reconhecimento sociojurídico – a luta dera resultado. Pois, ainda que não obtivesse imediatamente a classificação do delito (crime hediondo), mantinha a vedação de toda e qualquer modalidade de discriminação, independentemente do motivo e remetia para a legislação complementar o dever de fixar a respectiva sanção, sem a qual nenhuma norma proibitiva tem eficácia.
A ABGLT revê seu posicionamento
A partir das inúmeras críticas recebidas através das listas e redes virtuais, a ABGLT teve a dignidade de rever a sua posição monolítica que se assentava na condução de um único ítem em sua agenda política: – A aprovação de um projeto de lei que em si já trazia uma visão inferiorizante, na medida em que pleiteava a oficialização do status de segunda classe – apenas o direito à parceria civil registrada.
Assim, sobretudo após o ajuizamento da ADPF 132, vimos a entidade hegemônica no cenário político nacional posicionar-se de maneira equânime em prol de ambas as reivindicações (o projeto de lei antidiscriminação, PLC 122 e a reivindicação do casamento civil), superando, assim, a antiga visão binária, antagonista, compreendendo que é possível lutar em ambas as frentes de combate.
Por último, causa um certo estranhamento a defesa que faz Dario Neto – que em certo sentido é compartilhada pelo próprio deputado federal Jean Wyllys (confira os vídeos de sua entrevista ao programa televisivo Jogo do Poder, aqui) -, pois são, ambos, filiados a um partido que tem precisamente o socialismo como valor. Tem o socialismo como valor e decide advogar uma causa que possui um nítido conteúdo patrimonialista, individualista, como se fosse a senhora de todas as causas de Direitos Humanos; aquela capaz de nos trazer a panacéia.
Por outro lado, o ativista autônomo e independente Carlos Tufvesson, que sempre foi um defensor ferrenho da pauta do casamento civil igualitário como “a” pauta do movimento, sendo não raro acusado – inclusive por esta que escreve – de apenas se preocupar com os interesses patrimoniais do seu segmento de classe, esquecido que as travestis, por exemplo, não constituem patrimônio e muito raramente conjugalidades a serem beneficiadas pelo casamento igualitário, hoje reconhece que a luta pela dignidade, vale dizer, a luta pelo instrumento jurídico determinado pela Constituição da República para sancionar práticas discriminatórias e violências físicas. Hoje Carlos Tufvesson é um dos grandes aliados na defesa do enfrentamento à questão da homofobia, em todas as suas formas de expressão e, inclusive, através da aprovação do PLC 122. Isso não o impede de, concomitantemente, defender e lutar pela aprovação do Casamento Civil Igualitário.
Por último, cabe uma pergunta bem elementar:
– A quem interessa dividir em dois blocos antagonistas os nossos tão frágeis movimentos LGBTs?
– Baseado em qual estratégia o PSOL busca, agora, antagonizar-se com uma agenda política para xs LGBTs que absolutamente não pertence, tampouco foi elaborada exclusivamente pelos ativistas hegemônicos – leia-se ativistas petistas?
Parece que Dario Neto tanto quanto o deputado Jean Wyllys estão esquecidos de que quem fez a ABGLT rever sua posição no que respeita ao substitutivo construído por Marta Suplicy e Toni Reis a partir de negociações com a bancada evangélica, retomando-se finalmente o texto do substitutivo construído pela então deputada Fátima Cleide, foram os e as ativistas autônomos LGBT que, através de suas redes sociais e blogs, puderam expressar todo o seu descontentamento com a maneira que a ABGLT e Marta Suplicy estavam conduzindo a questão.
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**Agradeço aos professores e pesquisadores Luiz Morando e Luiz Mott a socialização das fontes sobre o ativismo de Édson Nunes, o proto-ativismo belorizontino e pernambucano.
*A prática da polícia de deter “pederastas”, “bonecas” e “bichas” ao que parece era disseminada pelo país, presumindo-se houvesse adesão por parte das camadas populares, vez que a mesma era noticiada à maneira de um “justiçamento” muito comum pelos jornais populares: “Quatro homossexuais, ‘cláudia’, maysa’, ‘marcela’ e ‘anita’ foram presas com a sua senhoria [mesmo a polícia sabendo que elas não tinham nada a ver com o tráfico praticado pela senhoria], e após fazerem a limpeza da delegacia, liberados.” (Negritos de minha autoria.). Cf. jornal Tribuna da Bahia, 10/03/1972, em transcrição realizada por Huides Cunha, quando Coordenador do GGB, e gentilmente cedida por Luiz Mott.