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Babados da hora

TECENDO O GÊNERO, O CORPO E A VIDA: As Travestis na Batalha pela Igualdade

Procurei pela internet a versão em PDF do livro A Batalha pela Igualdade – A Prostituição de Travestis em Porto Alegre, organizado por Alexandre Böer, idealizado pela IGUALDADE – ASSOCIAÇÃO DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS DO RIO GRANDE DO SUL e publicado em 2003. Não encontrei. Pena. Teria sido grande iniciativa socializante do conhecimento produzido.
Fica a sugestão. Quem sabe, não é mesmo?

Como já havia feito referência em postagem anterior, vejo a iniciativa dessa publicação como de grande importância, na medida em que recupera, através dos relatos das próprias personagens, as memórias de suas trajetórias de vida. Embora permeadas pela violência e estigmatização, são, igualmente impregnadas pela capacidade de resistência e de construção de laços de apoio e afeto.

Recuperar tais relatos de vida possibilita desvelar formas de sociabilidade e de ocupação do espaço público desenvolvidas por segmento populacional ainda fortemente marcado pela sua exclusão da História Social. Daí minha iniciativa de transcrever aqui alguns de seus trechos. Seja como estímulo a que se venha a disponibilizar a íntegra do livro em PDF, seja como incentivo a que outras igualmente tomem a palavra e, em primeira pessoa, ocupem este espaço, trazendo as suas experiências de vida.

Afinal, este é precisamente um dos objetivos deste blog!

O livro abre com a narrativa da trajetória de Rubina, travesti de 70 anos (em 2003) que, ainda na década de 50 e 60 do século passado, “foi a primeira bicha a alugar quartos para programas” – nicho de mercado que seria, durante o regime militar, massivamente ocupado pelos motéis.

“Sua primeira casa funcionou [de 1967] até 1973 e, logo depois, abriu outra … e que só fechou em 1976. No andar de cima era seu atelier de costura, pois tambem era modista, trabalhando na criação e desenhos de roupas e figurinos. …

“Mas Rubina teve que fechar sua casa porque a polícia queria extorquir – queriam que eu desse 400 cruzeiros na época, por semana ou por mês, não me lembro. Mas eu não ganhava isso, como é que eu ia dar? Aí fechei, fechei e acabei a função! – conta ela.
“…
“No início [anos 50] as travestis não transformavam o corpo, não usavam sequer hormônios, era puro truque, como diziam, às vezes usavam enchimentos de espuma para moldar as roupas no corpo – não existia peruca, era cabecinha Joãozinho. Era franjinha, eu deixava o cabelo crescer um pouco… eu sempre fui normal [sic], porque eu trabalhava, né? De noite eu me transformava, festa, coisa e tal, ou pro boteco, daí me pintava, ajeitava o cabelinho na testa, aquela coisa – Nesta época a polícia reprimia as bichas que se vestiam como mulheres – Ah, na rua tu tinhas que andar de machinho, né? Se pintasse a cara, qualquer coisa, e fosse num bar, eles te prendiam. Eu cansei de sair pintada com blusão de mulher… e ter que ir no banheiro lavar a cara e virar o blusão.
“Para Rubina, ser normal era não usar hormônios, nem silicone, que, segundo ela, a febre de tomar hormônios chegou em Porto Alegre no final da década de 50, com a vinda do grupo Les Girls. – Foi o primeiro grupo de travestis com tetas de hormônio. Elas estavam com show em Porto Alegre e iam pro Uruguai e umas meninas tiveram na minha casa. Foi as primeiras tetas que eu vi. Tinha a Valéria, a Rogéria, tinha uma preta muito bonita… – Rubina conta que foram elas que começaram a receitar hormônios a e [sic] Rogéria, hoje conhecida nacionalmente, às vezes, ficava em sua casa. Já o uso do silicone ela sequer se lembra ao certo quando começou – eu não me lembro mais, acho que foi lá por 75, 78, que começou as bichas com silicone. Lembro que era a Márcia Caolha que colocava.
“…
“Certa vez foi para Pelotas abrir o Carnaval no baile gay “Nós, em Festa”, que era famoso. Em frente à danceteria Multishow a população, munida de cadeiras e chimarrão, aguardava a entrada dos foliões que, dependendo da produção, eram aplaudidos ou vaiados – Tinha as bichas de Pelotas, eu fui pra lá, eu, a Valéria, a Loba, a Nenê, que tinha surgido e era lindíssima, ela era uma mulatinha sabe? Que foi um escândalo! Eu fui de maiô, não me deixaram entrar no salão. Eu tive que ficar num camarote, a nega Nenê se meteu com um médico, cirurgião plástico, foi um escândalo, quis botar a porta do hotel pra baixo, porque a nega se trancou não queria sair. E a gente era proibida de levar homem pro hotel. – Rubina, quando desfilava nos concursos de fantasias se apresentava com o nome de Rosângela, mas não funcionava – ninguém me chamava de Rosângela, era Rubina pra cá, Rubina pra lá (risadas).
“…
“Depois teve o Mourisco, na Independência. … A gente se virava lá onde é o viaduto, a polícia vinha, a gente corria pro Mourisco, mas a polícia entrava lá. Eu fui presa várias vezes dentro do Mourisco, as travestis iam presas – Rubina recorda de uma vez em que foi abordada pela polícia no Mourisco, devido a sua vestimenta feminina. – Eu uma vez cheguei numa festa lá e fui barrada pela polícia federal. Eles disseram: isso aqui o quê que é? Tu veio todo cheio de paetê, de lantejoula, de brilho? E eu disse: Ah, eu passei aqui pra ver se… que eu tenho um primo que frequenta esse bar, pra pegar a chave de casa com ele, que eu não tenho. Daí tinha uma bicha atinada que foi lá dentro e veio: tá aqui a chave. – Para Rubina, era apenas mais um trote que ela costumava dar na polícia – Ah, eu já dei tanto trote na polícia. Mas eu não tinha medo de polícia – afirma. “

Referência
Böer, Alexandre (org.). A Batalha pela Igualdade: A Prostituição de Travestis em Porto Alegre. Porto Alegre: Igualdade, 2003, págs. 33-36.

Aproveito para também indicar:
Benedetti, Marcos. A Batalha e o Corpo: Breves Reflexões sobre Travestis e Prostituição. Em:
http://www.ciudadaniasexual.org/boletin/b11/Breves_reflexoes_sobre_travestis_e_prostituicao.pdf

Silva, Rosimeri Aquino da. Passeando no Centro de Porto Alegre com uma Travesti. Revista Eletrônica Labrys, jun./dez. 2006. Em: http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/riogrande/rosimeri.htm

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