Um casamento gay há 73 anos, na Lapa, RJ*
Por Rita Colaço-Rodrigues**
Percebe-se entre nós, mesmo os acadêmicos, certa tendência a dizer primeiro a tudo o que a si lhe parece inaugural. Assim como os adolescentes, que creem firmemente ter o mundo principiado com o seu nascimento, há não poucos os que assim procedem em relação a fatos históricos. Esquecem que descobrir a ocorrência de evento singular, até aquele momento tido como o mais remoto, não impede que alguém em algum outro momento possa encontrar registro mais antigo. Como também confundem inexistência de fontes com a inocorrência do fato.
Assim é, por exemplo, com as cerimônias informais de casamento entre homens. Noticiou-se, com ares de categórica verdade (Ripardo, 2010), que em 11 de dezembro de 1962, na boate Alfredão, em Copacabana, RJ, teria ocorrido o primeiro casamento entre dois homens no Brasil, protagonizado pela atriz e cantora transformista Marqueza e o porteiro da casa noturna, Alfredo Costa (ou Abílio Abranches de Almeida, 25 anos, segundo Luiz Morando).
Luiz Morando, no entanto, localizou um outro registro, de dez anos antes!
Puxa uma cadeira, pega um café ou uma cerveja, e vem conhecer esse babado. Com calma. Saborosamente.
O local
Subindo a Rua Taylor, na Lapa, RJ, após a Rua Conde de Lajes, à esquerda, temos a Rua Visconde de Paranaguá, cujo trecho se transforma numa escadaria, construída entre fins de dezembro de 1906 e maio de 1907, que vai dar em Santa Teresa. Logo avista-se, à direita, a fachada lateral de uma imponente residência de três andares, mais o térreo e o terraço, em amplo terreno, que finda numa encosta que dá para os lados de Santa Teresa. Encontra-se em ruínas, para desespero de todas as pessoas preocupadas com o nosso patrimônio cultural.


Pois, há 73 anos, ela entrou para a história da população hoje dita “LGBTI+” como o registro material que remete às formas de viver de homens homossexuais e das práticas abusivas, ilegais, da polícia.
Imagens na internet, captadas ou publicadas em junho de 2021, trazem algumas de suas partes internas, estropiadas, mas que fornecem a ideia de sua opulência passada – a escada caracol de ferro fundido, a claraboia com vitrais, o vão aberto do elevador…

O prédio aparece, em destaque ne capa e páginas centrais da revista Fon Fon de 1918, como residência de Antonio Pereira Ferraz. Originalmente, seu magnífico terraço dava vista para a Baía de Guanabara – encanto suprimido quase totalmente pelos edifícios posteriormente erguidos na Conde de Lajes.

Há um ponto referencial no Google Mapas, onde constam informações sobre (parte da) história do imóvel. Porém, não são indicadas as fontes. Ali consta que a obra data do
[…] Brasil Império, construído pelo Visconde de Paranaguá [João Lustosa da Cunha Paranaguá, falecido em 9/11/1912]. O projeto sofreu alterações em 1916/1918 por Antônio Pereira Ferraz, que o adquiriu após o falecimento do [anterior] proprietário. Comprado em 1931 pelo industrial português José Antônio de Souza. Hoje é um patrimônio tombado […].
O perfil Rio – Casas & prédios antigos, no Facebook, traz uma imagem belíssima, de autoria de “L. Moraes”, e a informação: “[…] foi construído em 1884 pelo Visconde de Paranaguá. Foi a primeira residência do Rio a ter elevador. […]”

Ao longo do tempo o imóvel serviu a diversas finalidades, após a moradia dos dois primeiros proprietários – como “casa de cômodos”, na década de cinquenta; e em ocupações várias, em épocas mais recentes, por estudantes, artistas e adeptos de um viver mais despojado: ateliê de artistas plásticos, restaurante vegano, cineclube, bar com karaokê, lançamento de livro seguido de debate… Enquanto “casa de cômodos”, aparece como cenário de um crime passional envolvendo homens homossexuais: “Os personagens do crime levavam vida anormal” (O Jornal, 16/06/1956, capa).
Ele é citado na internet como “Palacete dos Amores”, em referência ao homônimo poema de Manuel Bandeira, publicado em 1948, que, ao que parece, seria uma homenagem às horas de prazer que ali passara quando no local funcionava um prostíbulo de luxo (Bandeira, 1948). Há um perfil, no Facebook, com o mesmo nome. Traz anuncios e registros de atividades de 2016 a 19 de janeiro de 2020. Tem 1.600 seguidores.
O babado
Na noite do sábado 22 de março de 1952, porém, o imóvel protagonizou uma história memorável: O comissário Deraldo Padilha, responsável pela Seção de Repressão ao Meretrício e Lenocínio da Delegacia de Costumes e Diversões, no RJ/DF, atendendo a denúncia anônima sobre barulho excessivo, se dirigiu ao palacete. Arrombando a porta da residência, com a truculência que lhe era comum, ao entrar, ele e sua equipe encontraram homens adultos participando de uma festa particular, na residência designada como apartamento de número dois (na verdade, quartos alugados como unidades independes). Na segunda-feira, dia 24, o jornal O Globo noticiava – e, nos dias seguintes, vários jornais de Minas Gerais replicaram – a prisão de “mais de 60 pessoas” segundo um, e “mais de 20 homens”, segundo outro.
Segundo a reportagem, tratava-se da celebração do casamento entre dois dos presentes. Quatro moradores do local tinham cedido o imóvel para a festa. Não há menção a prática delituosa qualquer, porém. Mesmo assim, o notoriamente arbitrário Deraldo Padilha levou todos para a delegacia, no estilo “prisão para averiguações”. Os jornais falam que foram presos; um, que também foram autuados, sem esclarecer em qual infração ou crime. Há muita imprecisão e fantasia nos textos. Não há como saber, apenas pelos jornais, se foram mesmo autuados – a polícia sempre agiu criativamente para punir os indesejáveis, mesmo na ausência de tipificação penal. A punição aidiconal, como de costume, foi repassar a notícia para a imprensa, que não teve o menor escrúpulo, sempre agindo para destruir reputações.

No dia 24 de março, segunda-feira (em 1952 como em 2025), os nomes completos, profissões, locais de trabalho e endereços residenciais de trinta e um homens estavam nas páginas de um dos maiores jornais do país, sendo republicados na Tribuna da Imprensa e em outros periódicos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Com os acréscimos fantasiosos e ridicularizadores de sempre. Em O Globo, a notícia foi publicada em página ímpar, no topo, à direita (de melhor visualização), acompanhada de duas fotografias com os detidos, sem a menção do nome do fotógrafo. Por elas pode-se constatar que estavam todos com vestimentas usuais.
Em pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, em relação aos periódicos do Rio de Janeiro, localizei a notícia nos jornais Diário Carioca (25/03/52, p. 8), sob o título “A Volta de Padilha”, em página par, numa discreta coluna à esquerda, sem os nomes dos envolvidos; Tribuna da Imprensa, no mesmo dia 24, também em página par, no final da mesma, ao centro, maior e com um título mais chamativo – “20 rapazes presos quando celebravam ‘casamento’” –, trazendo a relação com os nomes, endereços e qualificações dos demais, todos na mesma ordem, o que dá a entender tenha sido fornecida pela polícia (24/03/52, p. 6). A matéria acrescenta que foi a “reentrée” do Padilha, de regresso de umas “curtas férias” e que os detidos foram conduzidos para a Delegacia de Costumes e Diversões.
Entre os presentes, servidores de ministérios (Aeronáutica, inclusive), empresas públicas e até do “Serviço Parlamentar no Palácio do Catete”; ourives, comerciários, industriário, ascensorista, mecânicos, contínuo, decorador e mais outra variedade de ocupações constava nas qualificações dos detidos. Detalhe que guarda semelhança com os achados de José Fábio Barbosa da Silva (2005, p. 41-212), em uma rede paulistana de homófilos no final da mesma década: os grupos de sociabilidade homossexual masculina, na época, se compunham por integrantes com variadas posições de classe. Na experiência relatada por José Fábio estavam presentes as antagonizações decorrentes.
Pode-se imaginar o estrago que essa divulgação fez na vida profissional, familiar e social dessas pessoas. Era prática comum, infelizmente. Os jornalistas, sempre ávidos por sensacionalismo, expunham sem pudor as pessoas envolvidas em ocorrências. Apenas com a Constituição de 1988 os direitos da personalidade passaram a ser respeitados. Mas, ainda hoje, na internet, vemos pessoas reclamando porque não puderam ter acesso aos nomes e aos rostos das pessoas conduzidas à delegacia. São as permanências da nossa história colonial da humilhação pública como punição exemplar.
Deraldo Padilha aparece, na imprensa, em 21 de junho do mesmo ano, quase três meses passados, como exonerado do cargo, a pedido do próprio. Permaneceu nele nove meses apenas. Não se sabe se realmente se exonerou ou foi convidado a se exonerar. Também não há como saber, nessa breve investigação, se essa saída teria relação com as prisões arbitrárias da noite de 22 de março – dadas talvez as redes de relações de alguns dos envolvidos. Mas a afirmação de que Padilha foi exonerado da Seção de Repressão ao Meretrício e Lenocínio da Delegacia de Costumes por determinação do presidente Eurico Gaspar Dutra, como veiculado em página na internet, sim, é possível dizer que não procede, segundo o apurado nessa pesquisa: Dutra governou de 1946 a 1951, Padilha atuou na seção dessa especializada em 1952. O período em que ele esteve afastado, segundo notícia localizada, deveu-se a umas pequenas férias, retornando no dia dessa diligência. Quando ele se exonera, passa a chefiar uma equipe “secreta” da polícia de trânsito, fiscalizando motoristas de coletivos e taxis. O que parece apontar para uma “geladeira” – transferência de algum servidor incômodo para setor de menor exposição ou desprestigiado, distante, como forma de punição informal. Em menos de um mês o General Ciro Rezende Padilha, Chefe de Polícia, o exonerou – não cumpriu o programa que ele determinou.
Mesmo nos meses subsequentes aparecendo diversas notícias sobre apresentação de queixas-crime contra as suas práticas arbitrárias, ele seguiu atuando. E no início da ditadura civil-militar de 1964 apresentava uma obssessão peculiar: perseguir, bater e prender viados, bonecas e travestis na Cinelândia, conforme os relatos de Jane Di Castro e Aguinaldo Silva. Mas o seu estilo violento e arbitrário era elogiado pelos jornalistas e, certamente, por parcela significativa da população, como ainda hoje assistimos.
___
* A localização da notícia sobre as prisões no palacete da Rua Visconde de Paranaguá, 16, nos periódicos de Minas Gerais e em O Globo, é de autoria de Luiz Morando, a quem agradeço a generosidade de sempre com a socialização de suas fontes. A pesquisa adicional e o tratamento dado são, porém, de minha autoria.
**Historiadora.
Referências
20 RAPAZES presos quando celebravam ‘casamento’”. Tribuna da Imprensa, 24/06/52, p. 6. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_01&pesq=%22Rua%20Visconde%20de%20Paranagu%C3%A1%22&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=8133
A VOLTA de Padilha. Diário Carioca, 25/03/52, p. 8. Disponível em:
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_04&pesq=%22Rua%20Visconde%20de%20Paranagu%C3%A1%22&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=13417.
Archivo do Districto Federal: Revista de documentos para a história do Rio de Janeiro – 1894-1954, p. 430. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=064548&pesq=%22%20de%20paranagu%C3%A1%22&pasta=ano%20189&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=3232
BANDEIRA, Manuel. O Palacete dos amores. Mafuá do Malungo, 1948, Global. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/57465/o-palacete-dos-amores.
CANTORA JANE di Castro faz relato sobre perseguição durante a ditadura: ‘Me bateram, me torturaram’. Jornal Extra, Rio de Janeiro, 30/08/2019. Disponível em:
https://extra.globo.com/famosos/cantora-jane-di-castro-faz-relato-sobre-perseguicao-durante-ditadura-me-bateram-me-torturaram-23915208.html.
Google Mapas. Disponível em: https://maps.app.goo.gl/69hpbgC2cAPuaF2w6.
Jornal A Notícia, Rio de Janeiro, ano XIV, n. 106, 6 e 7/05/1907, p. 6. Disponível em:
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=830380&pesq=%22rua%20visconde%20de%20paranagu%C3%A1%22&pasta=ano%20189&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=13687.
MATOU O companheiro com golpe de punhal no coração. O Jornal, 16/6/1956, capa. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=110523_05&pesq=%22Rua%20Visconde%20de%20Paranagu%C3%A1%22&pasta=ano%20195&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=43933
MODERNOS DE ROUPA velha no Casarão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano CI, n. 235, 29/11/1991. Revista Programa, semana de 29/11 a 5/12/1991, p. 42. Disponível em:
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_11&pesq=%22Rua%20visconde%20de%20Paranagu%C3%A1,%2016%22&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=63033.
MORANDO, Luiz. Há 50 anos – dia a dia LGBT. 26/11/1967 (domingo). Perfil no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/share/p/1BN3x6uUDy/.
NOVE MESES durou Padilha. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, ano II, n. 314, 21/06/1952, p. 4. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&pesq=%22Deraldo%20Padilha%22&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=8585.
O COMISSÁRIO acabou com a estranha festa nupcial. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, ano XXVIII, n. 7.936, 24/03/1952, p. 3.
Palacete dos Amores. Perfil no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/palacetedosamores?locale=pt_BR.
Rio – Casas & prédios antigos. Perfil no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1386608888152954&id=201622759984912&set=a.201631156650739&locale=pt_BR .
RIPARDO, Sérgio. Estante GLS: “As Bodas do diabo”, assim revista noticia 1º casamento gay do Brasil. Folha Uol, 2/11/2010. Disponível em: http://www.folha.com.br/lv824445
SILVA, Aguinaldo. Turno da noite: memórias de um ex-repórter de polícia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2016, p. 66.
SILVA, José Fábio Barbosa da. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário. In: GREEN, James N.; TRINDADE, Ronaldo (orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2005. p. 41-212.
