Neste mês de maio, a emblemática travesti Cintura Fina completaria 90 anos de idade.
Cintura nasceu em Fortaleza, em 3 de maio de 1933. Sua mãe faleceu no parto, e o recém-nascido foi criado por tias maternas que lhe ensinaram a lavar, passar, costurar e cozinhar. Ela conheceu o pai no início da adolescência, mas foi uma relação fria e momentânea. Desde criança, Cintura já tinha um modo de ser que divergia do que um padrão cisheteronormativo espera de uma pessoa que nasce com pênis: era afeminada e tinha sua atenção despertada para os homens. Com 14 anos de idade, suas tias conseguiram interná-la em um seminário. Após se envolver afetiva e sexualmente com dois primos, ela foi expulsa do local. Com vergonha de voltar para a casa das tias, Cintura passou a viver na zona de meretrício da cidade. Com 17 anos, ela partiu dali rumo ao Sudeste.
Em maio de 1953, com 20 anos, ela chegou a Belo Horizonte e se fixou no Hotel Nova América, onde ganhou a ‘proteção’ da cafetina Tianinha e trabalhou como cozinheira. No dia 25 de julho do mesmo ano, cometeu seu primeiro delito na capital mineira, do qual derivaram rapidamente inquérito policial e processo criminal. Sua ficha de identificação na Polícia Civil de Minas Gerais e imagens dela na época atestam: pele preta, olhos castanhos, um metro e 73 cm de altura, traços femininos, quadril delgado. O codinome foi incorporado à pessoa, que também já assumia uma identidade sustentada por um repertório de elementos atribuídos ao feminino: corte de cabelo, sobrancelhas pinçadas, vestidos e outras peças do vestiário, sapatos e adereços, maquiagem, gestos e atitudes.
A partir de 1953, Cintura Fina se tornará amplamente conhecida da imprensa, da polícia, do meio judicial, de peritos de medicina legal, dos frequentadores da região de meretrício do Centro, Bonfim e Lagoinha. Sua trajetória se sustentou por algumas atividades laborais – cozinheira, faxineira, gerente de pensão, profissional do sexo, alfaiate, enfermeira, gari –; por delitos cometidos – lesões corporais, furtos, roubos, conto do suadouro; por conduções à polícia por vadiagem, escândalo em via pública, desordem, pederastia e para averiguações; por 18 processos criminais como ré e dois como vítima; por certas habilidades – força física, esperteza, destreza para lutar, trabalho manual, mas sobretudo a principal delas: o manejo de navalha; pela religião – inicialmente católica, posteriormente umbandista, protegida de Xangô e Omolu.
Esse conjunto de elementos constituiu uma dinâmica própria na vida de Cintura Fina entre o trabalho, os pequenos golpes, a boemia, os delitos, as delegacias e penitenciárias (em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Uberaba). Seu espírito inquieto, seus bafãos, suas fugas, sua rebeldia – ao lado da proteção dedicada aos mais fracos nas disputas nas ruas, sua liderança, seu afeto, sua gargalhada alta e sonora – vão constituir uma figura ambígua, ambivalente, às vezes indecifrável, às vezes aberta à leitura clara. Ela sempre foi alvo das rondas da Delegacia de Repressão à Vadiagem, fazendo convergir para si vários fatores que potencializavam uma vigilância repressora sobre si: preta, pobre, trabalhadora do sexo, travesti.
Ao longo de sua trajetória de vida, Cintura acumulou 18 ações penais em Belo Horizonte e Uberaba (onde veio a falecer em 18 de fevereiro de 1995) e pelo menos outras duas no Rio de Janeiro. Mas em meio a esse enredo policial, ela passou à lembrança das pessoas comuns como alguém prestativo, solidário, que dava proteção às companheiras cisgênero na zona de meretrício contra a agressão de clientes, que também protegia as bichas afeminadas na zona boêmia. Cintura Fina foi uma pessoa que precisou aprender a sobreviver em meio a injustiças e perseguições, bem como a capitular em determinadas situações para que fosse um pouco mais aceita em um ambiente social hostil à sua presença.
Nos últimos anos, após a publicação do livro Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (editora O Sexo da Palavra), a imagem de Cintura Fina passou a ser revisada e celebrada. A travesti recebeu o título de Cidadã Honorária post mortem de Belo Horizonte; tornou-se elemento componente da letra da música Da Serra ao Bonfim; deu nome a um beco em uma galeria de arte no bairro Santa Efigênia; foi homenageada na manifestação do 8 de Março da capital mineira.
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