Nosso aparelho psíquico nos prega peças as mais vexatórias. Não raro cometemos aquilo que em Direito se chama Erro de Representação. Significa tomar um acontecimento como se outro fosse, emprestar-lhe um significado distindo daquele que tem. As razões e os tipos são vários. Um deles fala de Projeção e é abordado pela Psicologia/Psicanálise.
Como o próprio nome deixa entrever, consiste em atribuir ao outro algo que, na realidade, é inerente ao próprio sujeito. Por não conseguir admitir, suportar, conviver com determinados aspectos de sua personalidade, defensivamente os atribui ao outro. É um processo inconsciente.
“Termo utilizado por Sigmund Freud a partir de 1895, essencialmente para definir o mecanismo da paranóia, porém mais tarde retomado por todas as escolas psicanalíticas para designar um modo de defesa primário, comum à psicose, à neurose e à perversão, pelo qual o sujeito projeta num outro sujeito ou num objeto desejos que provém dele, mas cuja origem ele desconhece, atribuindo-os a uma alteridade que lhe é externa.
> ESTÁDIO DO ESPELHO; IDENTIFICAÇÃO; IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA; OBJETO, RELAÇÃO DE; OUTRO; POSIÇÃO DEPRESSIVA/POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE.”
Cf. Dic. de Psicanálise, Roudinesco & Plon, 603.
É muito comum constatarmos esse tipo de ocorrência no modo de alguns jornais, sobretudo, apresentarem certas notícias. Eles acusam, julgam e condenam com uma simples manchete. Apesar de o Código de Ética dos Jornalistas proibir com veemência esse tipo de conduta.
Um jornalista não pode, sob pena de desrespeitar as determinações éticas fixadas pelo seu Conselho de Regulamentação e Fiscalização Profissional, jogar com a dignidade de outrem. – Embora sejam frequentes notícias desrespeitosas, estigmatizantes mesmo, sobretudo quando se trata de travestis.
Art. 6º É dever do jornalista:
I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
VIII – respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão;
X – defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito;
XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias;
Art. 12. O jornalista deve:
III – tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar;
VI – promover a retificação das informações que se revelem falsas ou inexatas e defender o direito de resposta às pessoas ou organizações envolvidas ou mencionadas em matérias de sua autoria ou por cuja publicação foi o responsável; (Ver a matéria completa aqui.)
Também para o pesquisador lhe são transmitidas normas de conduta, preceitos éticos a serem por ele observados. Por exemplo, técnicas de interpretação de fontes – sejam documentais, iconográficas ou orais -, de modo a que se mantenha atento a esses e outros mecanismos verificáveis na investigação de determinado evento histórico.
No aspecto ético, de modo semelhante ao jornalista, precisa o pesquisador observar que, em razão de seu objeto de trabalho envolver pessoas, seres dotados do direito à imagem, à dignidade, (sobretudo quando vivas) não devem ser expostos ao ridículo, tampouco ter a sua vida pessoal afetada negativamente por conta de uma pesquisa que é realizada, Ainda que ele próprio, informante/ entrevistado, tenha se exposto (por inocência, imprevisão ou boa fé) além do razoável.
Quando vemos, numa pesquisa acadêmica ou numa qualquer publicação, não serem observados tais aspectos todos nós nos enchemos de vergonha e tristeza. É acontecimento de todo e tido por todos como lamentável. Aspectos que se mostram menores, irrelevantes – completamente – ao objetivo principal (da pesquisa ou da notícia); que mais se emaranham numa trama de intrigas, desafetos, venditas, obssesão, perseguição e, mesmo, morte em circunstâncias nebulosas e que se prestam a alimentar versões criminosas – enfim, a nossa tão humana pequenez -, são vistos serem impunemente expostos. São facetas que caem bem em romances de suspense, mas que em leituras outras são colocadas sob interrogação – a que se prestam? quais os reais objetivos? quais os ganhos podem estar em busca quem os promove?
O objetivo de toda esta introdução é recordar a necessidade de um distanciamento crítico no seu espírito, leitor/a, seja para qual seja a leitura.
Dito isto, quero agora apresentar dois textos que expressam distintas leituras acerca de acontecimentos verificados no VII EBGL (VII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas), ocorrido em 1995 na cidade de Curitiba, ocasião em que se criou a ABGLT (Associação Brasileira de Gays , Lésbicas, Travestis e Transexuais, então de Gays, Lésbicas e Travestis).
Embora façam referência a dissensões, conflitos, tratam do processo de construção de uma importante entidade – a ABGLT.
São textos já trazidos a um público amplo: foram ambos publicados em jornal (no jornal Nós Por Exemplo em abril de 1995). Dão seguimento, suas publicações aqui, à proposta de estimular a recuperação da memória/história do MHB/MLGBT.
“Prezados Amigos do NÓS POR EXEMPLO
Não voltem a publicar, por favor, na seção ‘Nós Mulheres’, textos de tão baixo nível como a tal ‘Fábula de uma memória insana do VII EBGL’. Este tipo de texto presta um desserviço a todas nós, lésbicas, e ao próprio movimento brasileiro de gays e lésbicas, pois é pura fofocagem difamatória e mesquinha.
Ninguém impediu a tal Rosinha, merecidamente eleita Miss Uó, de manifestar-se, nem a agrediu fisicamente. Pelo que se sabe, foi ela quem agrediu verbalmente um dos integrantes da comissão organizadora do encontro e fisicamente um dos representantes do grupo Arco-Íris. Aliás, no final do encontro, deu para andar atrás das pessoas proferindo insultos e erguendo a mão como se fosse desferir golpes. Que se há de fazer?
Nenhuma coordenadora de mesa pediu também para quem não estivesse de acordo com a própria se retirasse da plenária. e fato, a coordenadora da mesa disse que quem não tinha interesse de discutir as questões em pauta de forma civilizada, pois havia um bando de baderneiros (Nuances, Coletivo de F…Lésbicas, Rosinhas e Ronaldos) tentando impedir os debates, que fizesse o favor de retirar-se e deixasse as pessoas conversarem em paz.
Não houve ainda nenhum clima de Congresso Nacional, em Curitiba, com distribuição de cargos e votos de cabresto. A maioria dos grupos, presentes no encontro, decidiu criar uma associação de grupos lésbicos, gays, de travestis e simpatizantes com o objetivo de potencializar a luta por nossos direitos. Desde o fim da ditadura militar, brasileiras e brasileiros têm direito à livre associação. (Parece que tem gente saudosa dos tempos do Geisel!!!). A criação da associação não foi votada, pois não dependia do referendo da plenária, mas pediu-se para a ABGLT o apoio do VII Encontro, apoio concedido por consenso. Não existiu, portanto, nenhum voto de cabresto nem política de coronéis.
Enfim, amigos do NPE, que tal mandar a Turma do Uó para o Uó que a pariu e só publicar na seção ‘Nós, Mulheres’ textos de alto astral, com que os grupos de lésbicas estão fazendo ou se propondo a fazer, com artigos sobre questões de interesse geral como sexualidade, maternidade, enrustimento, amor etc… Há mulheres tão interessantes fazendo coisas tão interessantes. Deixemos de lado essas do Uó que se torram e ainda por cima se escondem atrás de pseudônimos esdrúxulos.
Um Abraço.
Míriam Martinho pela Rede de Informação UM OUTRO OLHAR.“
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“QUERO UM TRONO
Conferir o óbvio foi a tônica do VII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas ocorrido em Curitiba de 28 a 31/01/95. Pôde-se verificar de fato a quantas anda a movimentação de grurpos que tentam lutar por uma cidadania plena.
Acredito que qualquer avaliação deva ter em mente a situação momentânea e histórica que o país está vivenciando e, até mesmo, o particular relacionamento entre entidades governamentais e ONGs paranaenses.
Mesmo num passaod recente os 10 mandamentos reinaram nos corredores dos hotéis ou mesmo num quarto reservado. Nesses locais e até mesmo nas ruas eles tem o sabor do desgosto e da apologia das homossexualidades. Mandamentos que desrespeitam os indivíduos e põem num mesmo balaio pessoas que nem sempre gostariam de ser reconhecidas apenas pelo seu potencial erótico; por serem putos ou frescos, sapatonas ou sapatilhas…
Na realidade o que parece reinar na movimentação dos grupos é a necessidade da tomada do poder pelo poder em si, não importando os meios. Criam-se associações e/ou grupos para possibilitar a captação de recursos financeiros que não mal geridos na efetiva quebra dos falsos valores da sociedade mas contudo corroboram no acirramento do preconceito.
O Encontro, que deveria ser uma troca de experiências e fortalecimento do contato de todos os grupos acabou num leilão de cargos para a Associação criada. Esta perdeu o caráter que desejávamos no encontro anterior, em São Paulo, e assumiu um caráter centralizador de decisões de interesse de todos. Assim, em função da cooptação de muitas lideranças, deixamos de cobrar efetivamente do estado a sua responsabilidade na política social.
Nessa ‘dança de marionetes’ sentimos que a identificação na luta contra o preconceito e as discriminações passa mais por uma identificação ideológica, de pensamento, de concepção de vida do que uma identificação por orientação sexual.
A má fé e o enrustimento levam algumas lideranças a venderem a alma ao diabo. Tentam no seu discurso pronto e debilitado fazer-nos crer que o inimigo está lá fora: é heterossexual e usa óculos escuros. Não precisamos desses que tentam, na sua falsidade e ignorânica, justificar o por quê existimos, porque somos o que somos [sic]. Não precisamos reforçar a normatização das relações homoeróticas para mais facilmente sermos assimilados nessas novelas de porcelana falsa das grandes emissoras de TV.
Precisamos, sim, de mais respeito e participação de todos. Nota-se que nesses encontros, as pessoas são deliberadamente utilizadas como ‘ovelhinhas de presépio’. Não opinam e inclusive anulam o seu direito ao voto; visto a votação na 1ª plenária do Encontro. Pode?
Isso é fruto da micropolítica cotidiana nos próprios grupos em suas origens, nas suas ccidades. Reflete a hierarquização do poder e das responsabilidades. Delega-se poder a outrem e anula-se. Vivemos a história do outro. Vivemos a história do outro, na sua sombra, enquanto somos úteis, depois… azar! Somos descartáveis? Deixamos assim que prepotentes nos representem.
grupos que sequer discutem pontos essenciais à formação de uma Associação (estatuto, por exemplo) e que esperneiam por podres podderes merecem nossa confiança?
Como indivíduo, luto por uma socialização dos conhecimentos para a melhooria na qualidade de vida de todos: ‘homossexuais, bissexuais, heterossexuais’ e todos aqueles que não estejam contemplados nesses rótulos.
Não dá pra aceitar o auto-preconceito. Temos que urgentemente propor alternativas de ação dentro dos grupos através, por exemplo, de efetivas relações igualitárias. Mas também temos de propor alternativas de ação extra grupos: em relação às suas campanhas, muitas vezes com um caráter normatizador; nas ações cotidianas, rediscutindo o conteúdo de panfletos e outros impressos e também as relações dos grupos com outros movimentos socia
is.
Enfim, eles nos representam?
O não agir dará espaço aos populistas que procuram em qualquer partido uma tentativa de ascensão individual, esquecendo o princípio do respeito às diferenças.
Chega de viados hipócritas que já estiveram )estão) [sic] no poder e desrespeitaram os direitos humanos em geral, inclusive das próprias ‘amigas’ em prol de sucesso e dinheiro público nos seus projetos pessoais.
Os grupos e pessoas contrários a essa politicagem barata, encarando as suas realidades e limitações, devem esforçar-se para trocar idéias e experiências procurando formas efetivas de combate ao preconceito e inclusive, mostrando os paradoxos, colocar esses zumbis em suas covas.
Glademir Lorensi, Coordenador Geral do NUANCES“
Referências:
Os textos transcritos foram publicados ambos na página 6 do jornal Nós Por Exemplo, ano IV, nº 22, abril de 1995.
ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Jorge Zahar, RJ, 1997.
GIANETTI, Eduardo. Autoengano. Companhia das Letras e Companhia de Bolso [esgotado]. Digitalizado para amplo acesso. Disponível em http://www.fgospel.com.br/portal/img/bd/536.pdf.