Esta exposição foi planejada e criada para celebrar os 55 anos da primeira realização pública do concurso Miss Travesti Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, ocorrido em 27 de novembro de 1966. Para ajudar a compreender um pouco de sua importância, reserve um tempinho para ler esta apresentação.
O século XX no Brasil foi atravessado por eventos artístico-culturais marcados pelo que hoje chamamos de montação, mais especificamente pelo transformismo e a arte de “fazer o travesti”. De modo geral, esse ato de criar um ou uma personagem (muitas vezes de forma paródica com artistas de renome) era caracterizado pelo uso de atributos do sexo oposto por meio da exuberância e do requinte do figurino, da maquiagem, dos adereços e dos ademanes; pela exploração da ambiguidade, incerteza e dúvida; pelo trabalho com um texto por vezes irônico, chistoso, humorístico, satírico, mordaz.
Essa forma artística não surgiu no século XX; pelo contrário, enquanto técnica teatral, ela existiu ao longo da história das artes no Ocidente. No entanto, nosso interesse aqui está restrito a uma ação mais específica que ganhou nova dinâmica no século XX ao ser utilizada por pessoas dissidentes de sexo e gênero: a arte de “fazer o travesti” (independente da identidade de gênero da pessoa) e a criação pelas travestis de uma forma artística de expressão.
Nas décadas de 1920-1930, quando essa manifestação artística passou a ser explorada com mais frequência, êxito e sucesso, ainda não era possível afirmar com clareza e segurança que se tratava de mulheres ou homens cisgêneras/os homossexuais que se apresentavam nos palcos de grandes cinemas ou teatros. Nesse sentido, não ficava claro se o artista que se apresentava com o nome Darwin, ou ainda Aymond (ambos encenando uma personagem feminina), fosse homossexual ou se Fátima Miris (encenando um personagem masculino) fosse lésbica.
Por outro lado, é sabido que pessoas dissidentes de sexo e gênero, naquelas mesmas décadas, já promoviam em seus territórios de sociabilidade e convivência apresentações artísticas baseadas em shows, desfiles, concursos e festas, por vezes combinando algumas dessas modalidades. É o que nos relata, por exemplo, Madame Satã, na abertura de seu livro Memórias de Madame Satã: em 1928, Satã trabalhava como “travesti sambista no teatro Casa de Sapê da Casa de Caboclo. Praça Tiradentes.” e se apresentava como a Mulata do Balacochê.
Ou ainda nos anos finais da década de 1940 no Rio de Janeiro, quando começou a realização do Baile dos Enxutos: evento promovido pelas “bichas” durante o carnaval, no qual era premiada a melhor fantasia.
Até os anos 1950, foi mais comum a realização de shows em casas de espetáculo com artistas transformistas ou “fazendo o travesti” de forma individual. Na virada para os anos 1960, começaram a surgir shows com pequenos grupos e com artistas que viriam a assumir uma identidade de gênero travesti. Aqui começava a se manifestar uma separação que, já a partir de 1964, com a grande repercussão do show Les Girls, se conformaria de maneira mais clara: artistas que “faziam o travesti” continuaram a se apresentar e artistas que tinham a identidade de gênero travesti começaram a se tornar mais visíveis. Muitas vezes ainda, no mesmo grupo conviviam artistas tanto com uma quanto com outra forma de autodesignação.
É possível verificar que eventos caracterizados por certames – ou seja, a escolha da melhor, em desfiles ou concursos, baseado em certos critérios e requisitos – foram muito comuns entre o público de pessoas dissidentes de sexo e gênero. Muito ainda há para ser desvelado, sobretudo quando sabemos que esses eventos se davam tanto em nível público quanto no privado, isto é, em festas particulares promovidas por redes de amigos/as em residências. Ao mesmo tempo, há muito ainda para se descobrir sobre as formas de repressão, violência, censura, ataque, opressão, por parte de populares ou de forças da Segurança Pública, vividas pelos grupos que insistiam em manter essas atividades vivas. Nesse sentido, é necessário também conhecer mais sobre as formas de resistência, orgulho, criatividade, inventividade, resiliência desses mesmos grupos.
Foi nesse contexto, após algumas proibições, perseguições e impedimentos pela polícia, que se realizou publicamente o primeiro concurso de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte. Nas oito salas preparadas para visita nesta exposição, você conhecerá um pouco mais sobre os artistas que “faziam o travesti” e as artistas travestis; shows que ganharam maior repercussão; a visibilidade crescente que esse público conquistou; as formas de repressão a essas manifestações; os concursos de Miss Travesti realizados em Belo Horizonte entre 1966 e 1968; uma homenagem a Sofia de Carlo, que se tornou uma das personagens emblemáticas da vida belo-horizontina desde sua vitória no concurso de 1966 até o início dos anos 1990.
Que todes façam um empolgante trajeto pela exposição.
Curadoria: Luiz Morando
Percurso expográfico e pesquisa: Luiz Morando
Consultoria museológica: Bruno Brulon, Leandro Guedes e Pâmella Provenzano
Tainacan: Leandro Guedes e Pâmella Provenzano
Tratamento das Imagens: Pâmella Provenzano
Página: Rita Colaço
Arte gráfica: Larissa Andrade
Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso, bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.